Os Livros Ardem Mal

Yeats

Posted in Comentários by Luís Quintais on Sexta-feira, 29-02-2008

Yeats

Toda a gente fala do novo filme dos irmãos Coen. Menos gente fala de Cormac McCarthy que escreveu No Country for Old Men (ainda que muita gente fale certamente disso). Mas muito menos gente (quem, afinal?) fala do poema de Yeats que começa assim: «That is no country for old men.» O poema tem por título «Sailing to Byzantium» (lembram-se?), e nem sequer McCarthy o cita (uma epígrafe?) no seu livro.

Luís Quintais

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Filmar Carlos de Oliveira (II)

Posted in Crítica by Osvaldo Manuel Silvestre on Quinta-feira, 28-02-2008

extrasol

Sobre o Lado Esquerdo. Um Filme para Carlos de Oliveira, de Margarida Gil (MGil), abre com um plano de fornos de cal em plena laboração: o plano é magnífico, pela reverberação do calor nas paredes e no solo, e pelo seu impacto cromático. De imediato, passa-se para o interior da casa: um homem (Luís Miguel Cintra) escreve à máquina e ouve-se o poema «Estalactite», emblemático da segunda maneira de Carlos de Oliveira (CO). A câmara sobe e percebemos que estamos num estúdio, pois das paredes da casa passamos à teia do tecto do estúdio. Mais para cima, a imagem funde e estamos numa praia com cordão dunar. Volta-se ao estúdio, a câmara exibe um cenário desarrumado, ouve-se um dos poucos textos autobiográficos de CO e a câmara exibe-nos a maquete, que «ilustra» o texto: «Meu pai era médico de aldeia, uma aldeia pobríssima: Nossa Senhora das Febres» (reconstituo de memória, com a ajuda de umas notas). Esta última cena é de uma inteligência deveras fulgurante.

A maquete, bem como o cenário da casa, induzem o mergulho em Finisterra e, em simultâneo (?), na obra de CO. Não tanto porque tais dispositivos de facto mimem algo, mas antes porque nos surgem, na sua materialidade oficinal, como signos, em modelo 1/1, do próprio princípio mimético, cuja password sabemos ser Finisterra. As personagens que se aproximam da maquete, a tocam, acariciam ou manipulam, não produzem assim qualquer tipo de enunciado sobre a relação entre maquete e mundo. «Simplesmente» contemplam, como coisa íntima, o enigma do real e o enigma, ainda maior, dos modelos, brinquedos, truques e fetiches de que lançamos mão para nos certificarmos, quais crianças grandes, de que o real existe. Esta implicação material do próprio princípio mimético é ainda visível na implicação de pessoas como Manuel Gusmão, Fernando Lopes ou Laura Soveral no filme, como personae de personagens diversamente oliveirianas (Gusmão, por exemplo, será «o inventor de jogos»). Por outras palavras, não parece haver um exterior ao mundo representado, já que tais actores se representam a si mesmos como personagens provindas do interior desse mundo ou das franjas em que, por intermédio delas, ele se indecide como auto-reflexão ou redescrição (crítica ou fílmica). A passagem, pelo menos num plano, da casa em estúdio à casa de Ângela e Carlos de Oliveira, mais reforça esta ambivalência que se destina a mergulhar-nos ainda e sempre na vertigem do sistema-Finisterra.

Esta promiscuidade ontológica entre personae e mundos é a ideia forte do filme e é também a sua maior dificuldade. Raramente os planos do mundo exterior ao cenário «aguentam» o confronto com os da cena em estúdio; e as traduções diegéticas de cenas de Finisterra em plena natureza – os peregrinos – tendem ao ilustrativo e falham como que inevitavelmente. No centro de tudo esplende a maquete e o sistema solar que sobre ela se suspende, como um sol negro que absorve o mundo exterior e fetichiza o próprio princípio mimético que o filme explora, numa espiral auto-mimética sem fim. Não importa, nesta lógica, que Manuel Gusmão não seja uma personagem de Finisterra, Fernando Lopes não seja deste filme e Laura Soveral também não. Porque, se este é um filme «para Carlos de Oliveira», todos eles são, de um modo ou de outro, personagens, de direito, do filme. Tal como todos os leitores de Oliveira, que se não alcançam sê-lo de facto, têm um direito inalienável a devir personagens do filme de MGil, que muito ostensivamente os convida a tal. Resta saber se os dois filmes – o filme sobre Finisterra e sobre CO e o filme para CO – podem conviver num só sem mutuamente se danificarem.

Osvaldo Manuel Silvestre

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Manuel Gusmão: o ensino da literatura e a política da demagogia

Posted in Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Terça-feira, 26-02-2008

CVs

Na entrevista já referida a Textos e Pretextos, nº 10 (2007), Manuel Gusmão aborda, com meridiana clareza, o que está em causa na desqualificação do texto literário como instrumento de ensino da língua materna. Leia-se, com a devida atenção:

Julgo que a tentativa para diminuir o ensino da literatura enquanto tal, enquanto uso artístico de uma língua natural, e enquanto acesso à complexidade dos usos da linguagem, pode conduzir a desastres. Por um lado, o sucessivo adiamento para escalões superiores do encontro com a literatura fará com que muitos abandonem o sistema de ensino sem chegarem a ter contacto com a literatura e nem possam ter a opção de saber ou decidir sobre se a literatura lhes serve ou não para alguma coisa. Embora não se reduza a isso, a literatura tem a ver com a complexidade do próprio sistema linguístico a que ela acrescenta a complexidade das convenções, das regras, dos protocolos dos géneros literários e da ‘linguagem literária’, entendida enquanto um conjunto aberto de formas de comunicação e invenção verbais. Este adiamento do confronto com a complexidade frustra a descoberta e o exercício de destrezas daqueles que são ‘protegidos’ da complexidade ou da experiência da dificuldade. ‘Proteger da complexidade’ é uma fórmula altamente autoritária. Nela se casam a demagogia mais rasteira e o elitismo mais hipócrita. No fundo, isto representa a tentativa de seleccionar socialmente, de uma forma brutal, aqueles que terão acesso à possibilidade de se encontrarem com a literatura, no sistema educativo. Ligado a este problema, há o da possibilidade de preferir. O exercício da preferência implica a possibilidade de conhecer e de não apenas escolhermos aquilo que gostamos, mas de sermos também escolhidos por aqueles que se tornam os nossos textos, as nossas obras de referência. Excluir dos curricula a oportunidade da experiência da preferência estética é uma forma mais de amputação dos possíveis e de inculcar a submissão. (pp. 124-125)

Numa altura em que, em consequência da reforma de 2003, e no que toca ao ensino da língua materna no Ensino Secundário, nos encontramos naquela posição em que os portugueses iluminados apreciam encontrar-se – ou seja, na vanguarda da Europa, já que em nenhum grande país da Europa o texto literário sofreu a defenestração de que, por cá, foi objecto -, importa enfatizar o cunho politicamente reaccionário de uma reforma que entende que a disciplina de língua materna se destina a produzir «literacia funcional», sendo o ponto culminante desta revisão a criação de uma nova e imprescindível competência, a «transaccional», que permite aos e às estudantes aprenderem coisas tão indispensáveis para a sua formação como fazerem relatórios, redigirem actas, CV’s, reclamações… E tudo isto na aula de português, que decididamente assumiu uma vocação de camelo de 3 bossas, se é que 3 são suficientes para tal fardo. [continua aqui >>>]

Osvaldo Manuel Silvestre

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A perigosa experiência da origem

Posted in Comentários by Luís Quintais on Segunda-feira, 25-02-2008

NubaLeni Riefenstahl interessou-se pelos Nuba depois do seu contacto com uma fotografia de George Rodger, um dos fundadores da Magnum. Nessa fotografia de lutadores Nuba publicada pela National Geographic em 1951, o vencedor surge-nos aos ombros do vencido, numa dramatização do poder e da derrota que nos poderá parecer destituída de qualquer mínimo civilizacional. Riefensthal terá talvez encontrado aí um índice perfeito da glorificação do corpo e da política-pelo-corpo que a perseguia desde o início da sua carreira de actriz-cineasta.

Para o que interessa aqui, importa dizer que Rodger foi o primeiro fotojornalista a entrar em Bergen-Belsen onde haveria de captar imagens que correram mundo através de revistas como a Time e a Life. Tais imagens mudaram seguramente a nossa percepção do que poderá ser o humano e o inumano, e fizeram-nos também pensar como nunca antes na necessidade e na urgência do infigurável.

Rodger conta-nos como durante a sua visita a Bergen-Belsen deu por si a compor imagens esteticamente atraentes de pilhas de corpos e de corpos espalhados entre árvores e edifícios do campo, como se se tratasse de naturezas-mortas. Perturbado com esta experiência, Rodger ter-se-á voltado para África e, em particular, para os Nuba, de forma a libertar-se do odor pestífero de tal experiência.

Conduzida pelo olhar de Rodger, Riefensthal fez dos Nuba a sua decisiva obsessão de cineasta e de fotógrafa no pós-guerra. A sua relação com os Nuba põe a descoberto um dos aspectos mais insidiosos do seu trabalho. Revela-nos, justamente, as perigosas encruzilhadas da exoticização e da projecção fantasiosa.

Se pensarmos que tal relação tem uma espécie de motivo original – a sua ur-doxa – na fotografia de Rodger, dir-se-ia que a exoticização e a esteticização andam quase sempre de braço dado. A experiência do exótico e a experiência do estético são experiências da origem, e, como sabemos, toda a experiência da origem é potencialmente perigosa, potencialmente intoxicante.

A insensibilidade contextual de Leni Riefensthal pode ser aferida através da sua primeira expedição em território Nuba. Em 1962, Riefensthal segue os passos da expedição Nansen coordenada pelo antropólogo Oskar Luz da Universidade de Tubingen, e o mal-estar entre os antropólogos da expedição torna-se muito evidente. Como sugere Steven Bach na sua biografia de Riefensthal já recenseada por mim aqui, o trabalho de Leni denunciava uma vontade de construção da realidade Nuba que os antropólogos só poderiam repudiar:

Como a única mulher entre os cientistas, ela pode ter gerado más vontades sexistas, mas a sua independência era disruptiva. A sua busca fervorosa de imagens «do que é belo, forte, saudável» conflituava com os objectivos dos antropólogos de obterem documentação metódica e não mediada. Ela era franca quanto ao seu desinteresse por nativos usando andrajosos calções de ginástica impostos pelo islamismo que «não os fazia parecer diferentes dos negros das grandes cidades». (…) O dramático sentido de imagética de Leni impregnou a versão que transmitiu ao seu diário sobre o que viu (…):«Mil ou duas mil pessoas caminham a balançar à luz do sol-poente num espaço aberto rodeado de muitas árvores. Pintados de uma forma estranha, fantasticamente adornados, parecem criaturas de outro planeta.» No relato mais calmo e menos colorido de Luz, a respeito do mesmo momento, os membros da expedição meramente se dirigiram a um cacho de cubatas e apresentaram-se aos mais velhos da aldeia com a ajuda de uma mensagem gravada que explicava o seu objectivo no dialecto local. (pp. 374-5)

A experiência da origem é coincidente com a experiência do encantamento. As inflexões modernas do trágico prendem-se, afinal, com o modo como esta experiência do encantamento não foi afinal rasurada, mas, pelo contrário, multiplicada através de «tecnologias do encantamento» muito particulares, para usar a expressão do antropólogo Alfred Gell. Aí avultam indubitavelmente a fotografia e o cinema, que são também, e se me permitem a expressão, tecnologias de reinvestimento na origem. Sem este reinvestimento, as condições históricas que conduziram ao extermínio seriam talvez improváveis – e Leni Riefensthal é o exemplo maior disso mesmo, e é por isso que o seu trabalho nos traz desconforto.

Terá sido a tomada de consciência da monstruosidade deste problema que levou um fotojornalista, George Rodger, a trocar a Europa pela África. Mas poluído por tal monstruosidade, haveria de ser por ela perseguido, como se os seus olhos não a dispensassem (talvez tivessem cegado em Bergen-Belsen se a tivessem dispensado).

Riefensthal haveria, por seu turno, de corresponder ao seu sopro e ao seu vestígio.

Luís Quintais

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Espinosa (III)

Posted in Autores, Comentários by Pedro Serra on Domingo, 24-02-2008

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Há dois aspectos desta segunda edição de La fea burguesía que provocam alguma perplexidade. Uma perplexidade que, todavia, não deixa de ter consequências produtivas no que se refere à leitura da obra. O primeiro deles é a capa do romance, sendo bem mais feliz a de 1990. Um São Jorge matando o Dragão é substituído, agora, pelo recorte da representação de Adão e Eva. De um ponto de vista, digamos, temático, a substituição iconográfica ajusta-se plenamente ao romance, é certo. A capa lê o romance enquanto romance que tem por fulcro a instituição matrimonial e familiar. Contudo, a primeira capa, sendo mais alusiva, parece-me graficamente muito mais instigante. O romance é também, precisamente, uma espécie de combate épico e quimérico contra o mal absoluto.

O segundo dos aspectos que nos deixa algo perplexos é a soma de um apêndice que não constava da primeira edição. Este apêndice integra dois pequenos capítulos autónomos: «José López» e «Juan Eugenio». Noutra oportunidade direi sobre algumas determinações importantes do espólio editado de Miguel Espinosa, e do processo complexo de gestação e publicação das suas obras. O gesto de introduzir agora estes dois novos capítulos, se muito possivelmente obedece a conveniências do mercado editorial, não deixa de ser sintomático de uma obra como a de Miguel Espinosa que foi sendo elaborada aquém de uma destinação editorial férrea. Seja como for, os capítulos «José López» e «Juan Eugenio», do meu ponto de vista, truncam a unidade ficcional do conjunto narrativo, centrado como mencionei no primeiro post em diferentes avatares da domus aurea burguesa.

Este foi, sem dúvida, um tema do tempo, um problema do tempo. Pelos idos da elaboração do romance, por exemplo, era publicado por uma notável ensaísta catalã, María José Ragué Arias, um conjunto de entrevistas intitulado Proceso a la familia española (1979). «Processo à família espanhola» é o que temos, precisamente, nas ficções Castillejo e Cecilia, Clavero e Pilar, Krensler e Cayetana, Paracel e Purificación, Camilo e Clotilde… Contudo, se no livro de Ragué Arias se pensa a instituição matrimonial num quadro utópico, a obra de Miguel Espinosa devolve-nos um núcleo familiar conspurcado, expulsão do éden, ninho progressivamente corroído, que sugere aliás enterramento in vivo, esterilidade uterina e crime doméstico. No centro da óikos, no âmago da domus aurea burguesa, a irradiação do crime, um crime que fascina os indivíduos, que os lança no entre-lugar do privado vs. público, sonho (pesadelo) vs. vigília, sujeito vs. Estado, confissão vs. manifesto, aspectos a que me referirei noutra ocasião. Um processo que, evidentemente, tem uma notória tradução política, ao ser a «família» fundamento ideológico da ditadura, ou não fosse etapa histórico-social legendada pelo dictum «Deus, Pátria, Família». Elenco de casais certamente incompleto – qual a soma dessas ficções matrimoniais? – mas que, sem obviar as diferenças das determinações contextuais dos romances em causa, nos convida a pensar a «intimidade familiar» como arca pectoris da sociedade espanhola do tardofranquismo.

O novo apêndice não deixa de ter as suas valências de leitura. Dramatiza, do meu ponto de vista, o que a nova imagem da edição de 2006 não anuncia de modo explícito. José López e Juan Eugenio voltam a encenar a dialéctica truncada Camilo/Godínez, colocando em evidência um elemento inscrito no cerne do universo ficcional espinosiano: são figuras reais, com quem Espinosa conviveu, transpostas para a ficção. O combate mortal de Miguel Espinosa, neste sentido, fez-se contra os Juan Eugenios:

No diríamos que una llama que consume arde en su vista, sino en su estómago; como personaje del Greco, el cuello torcido, la cabeza en ascensión, parece un hombre sin intestinos ni grasas, oquedad de la carne, fuego sagrado…

Pedro Serra

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Manuel Gusmão: cognição & cinema

Posted in Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Domingo, 24-02-2008

Benjamin falava da «distracção» induzida pelo cinema nos nossos hábitos perceptuais e via aí, talvez com excessivo optimismo, o elemento não só salutar como revolucionário desse (então) novo medium. Manuel Gusmão, em entrevista publicada no nº 10 da revista Textos & Pretextos, fala de uma privatização da máquina-cinema ou, se se preferir, de uma internalização dela pelo nosso aparelho perceptivo. É da sua poesia que fala, mas é também, e creio que sobretudo, de um devir-cinema do mundo:

Mas eu também tenho a mania de pensar que todos nós somos uma espécie de cinema ambulante, isto é, que todos nós temos uma espécie de cinema na cabeça que consiste numa máquina que projecta num ecrã onde vemos a imagem, numa sala escura com pessoas lá dentro. (pp. 117-9)

Não consigo deixar de pensar que, num momento em que o cinema é muito nitidamente uma arte assassinada pelo devir tecnológico que aliás o fez nascer – o Home Cinema não é já «uma sala escura com pessoas lá dentro», a própria sala escura tem cada vez menos pessoas lá dentro, a histeria tecnológica dos Multiplex, bem patente no som ensurdecedor, é um último estertor –, aquilo que ele historicamente foi nas salas escuras, na nossa cabeça e na ordenação dos espaços de lazer das nossas cidades, é e será cada vez mais material e devir literário e poético. Ou seja: uma projecção que mora cada vez mais na nossa cabeça; um dispositivo que cumpriu o seu papel histórico; um ponto de passagem para novas e ainda mais vertiginosas modalidades de percepção e cognição; uma preciosa memória afectiva. E política, já agora, uma vez que convém não esquecer que o cinema é uma arte do tempo das grandes revoluções (políticas e artísticas). Mas se calhar é disso que realmente falam as palavras de Manuel Gusmão.

Osvaldo Manuel Silvestre

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Filmar Carlos de Oliveira (I)

Posted in Crítica by Osvaldo Manuel Silvestre on Domingo, 24-02-2008

Margarida Gil

Pude assistir ontem, na Biblioteca Municipal de Cantanhede, a uma projecção da obra de Margarida Gil (MGil) Sobre o Lado Esquerdo. Um Filme para Carlos de Oliveira, com guião de Manuel Gusmão (MG). Dividido em 5 partes – 1. Finisterra; 2. Ofício Nocturno; 3. Descida aos Infernos; 4. O Inventor de Jogos; 5. Pastoral: Cinema e Dedicatória -, o filme de MGil surpreende, desde logo, por nada ter a ver com o género documental. Do género, apenas duas breves entrevistas, projectadas antes do filme propriamente dito, com Manuel Augusto e Fernando Santos, habitantes ambos de Febres, contemporâneos de Carlos de Oliveira (CO) e, no caso do segundo, médico que longamente praticou no consultório e na casa que antes pertenceram ao pai e à família de CO. Este intróito, filmado de acordo com as convenções miméticas do documentário – plano frontal, cenário milimetricamente realista: Manuel Augusto de samarra, ao pé da lareira, Fernando Santos de bata -, parece prometer aquilo que o corte na projecção e a exibição do genérico do filme logo dão a ver: que este ainda de facto não começou e que o intróito tende antes ao extra protocolar em edições em DVD (que esperemos não tarde).

A filiação do filme é antes na tradição da Arte e Ensaio, se tal designação é ainda hoje recuperável, e é difícil, ao vê-lo, não reflectir sobre a fortuna cinematográfica da obra de CO. Uma Abelha na Chuva (1971), de Fernando Lopes, era uma leitura do romance que pressupunha, (i) do lado do espectador, a leitura prévia da obra, cujos materiais eram sintacticamente descompostos e recompostos e, em bom número, dispensados pelo realizador; (ii) a leitura, pelo realizador, da restante obra romanesca e da crítica dela, recuperando, para um momento relevante, a suposta filiação camiliana de CO; (iii) a leitura dessa restante obra romanesca e da poesia de CO, especialmente patente em momentos não-diegéticos preenchidos com planos provindos da obsessão e descrição geológicas de Casa na Duna, Pequenos Burgueses ou da poesia de Sobre o Lado Esquerdo e Micropaisagem. A que haveria que acrescentar o apelo, então momentoso, do cinema de Straub, entre outros. Por outras palavras, Fernando Lopes lê Uma Abelha na Chuva, em grande medida, a partir da revisão crítica a que CO por aqueles anos vinha submetendo a sua obra (pois é nítido que as versões da obra romanesca com que opera são as revistas), e a partir da sua poesia então mais tardia.

MGil, com a decisiva contribuição de MG, opta por reler a obra com e a partir de Finisterra. O que resulta daqui é um objecto fascinante, muitas vezes belíssimo (lembro por exemplo o plano, cromaticamente saturado, de um lento caracol na casca rugosa de um pinheiro, enquanto se ouve um excerto da obra de CO), mas tão denso de referências e remissões internas quanto o filme de Lopes o fora para Uma Abelha na Chuva. Ou mais ainda, uma vez que o filme de Lopes, desde o título, ainda que aí de forma algo enganadora, tinha como objecto um romance e, supostamente, uma história. O filme de MGil, porém, não é a transposição de Finisterra, mas antes, a partir desta, uma revisitação profunda dos temas, obsessões e materiais construtivos da obra de CO. A sensação de labirinto e perda é tão forte, para o espectador desprevenido, como a da percepção de uma rigorosa cartografia da obra, para o leitor mais frequentador da mesma. O que é ajudado ou reforçado pela opção do guionista, corroborada pela realizadora, de apenas utilizar texto do próprio CO, o que elimina à partida uma voz exterior ou transcendente à obra – é esse o momento ético do filme de MGil -, fazendo da figura do «mergulho» na sua lógica profunda a verdadeira senha de acesso aos segredos do filme.

Osvaldo Manuel Silvestre

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Espinosa (II)

Posted in Autores, Comentários by Pedro Serra on Sábado, 23-02-2008

Miguel Espinosa

Em síntese e descrição possíveis, La fea burguesía de Miguel Espinosa como que reconduz o foco narrativo a um lugar ascético, rasurando o gestus interpretativo, o olhar do theoros. Ao mesmo tempo, objectiva aquele objecto em princípio menos objectivável: a linguagem. Língua burguesa estática, intratável pela interpretação, daí a sua opacidade e dureza. Cristalizada no seu momento performativo, a língua burguesa envelhece no seu hic et nunc enternizado. Língua passada presente. A língua burguesa devém objecto estético, sendo que ela mesma é objecto estético, aliás de curso universal absoluto. O que Espinosa nos propõe é um mundo social estetizado, e autonomizado como estética, independendo de um sentido. Não há sentido latente na língua burguesa. Ela significa aquilo que literalmente significa. Lembra, de algum modo, uma injunção adorniana, concretamente a de que o literal é a barbárie. Daí a importância do pacto narrativo da segunda metade da obra. Como escriba, o narrador transcreve ipsis verbis a palavra estetizada burguesa. Godínez é bem o objecto correlativo do escritor que, mediador funcional inter-classista – proletariado/burguesia – se cumpre também (e ainda) como sujeito autónomo. É, a sua, uma crítica indiscernível de uma auto-crítica à consciência burguesa. A língua burguesa é reconhecida como monumento, sim. Mas tal reconhecimento, diríamos, enfim, na esteira benjaminiana, pressupõe ainda algo como a antecipação da sua ruína.

Nem Balzac, nem Dostoievski nesta poética do romance de Miguel Espinosa; um modelo assumidamente realista, mas sem pulsão mimética. Este realismo é poético ao ser, fundamentalmente, produção de auto-referencialidade que transforma o discurso social que constrói a realidade: «si el novelista no transforma el lenguaje que oye en lenguaje literario, no recoge nada de lo real, capta el silencio de la apariencia». Enquanto realismo poético, o projecto estético de Miguel Espinosa produz uma textualidade que assenta na dialéctica de dois termos: por um lado, na objectivação absoluta do real enquanto produto do uso socialmente consensuado da linguagem; por outro lado, no estranhamento desse real por uma linguagem romanesca autoral que se sustenta na auto-referencialidade. Completa este quadro estético, a sua subsunção a uma distribuição moral totalmente objectivada: o fascismo é o mal absoluto, essa maldade absoluta é a absoluta realidade do fascismo; a utopia negativa é a dissolução desse absoluto pelo estranhamento. Dissolução que é especialmente notória em La fea burguesía, ficção implacável na negação de um horizonte de reconciliação social.

Valerá ponderar aqui a noção que o próprio Espinosa propôs para definir um romance anterior – na verdade o romance do corpo ficcional deste escritor -, Escuela de Mandarines (1974). O universo ficcional espinosiano configura uma «utopia negativa», pois «intenta exponer lo que no debe ser, mediante el método de abstraerlo de la sociedad real, donde se encuentra, y, una vez aislado, exagerarlo para otorgarle el valor estético y elevarlo a un antimodelo». Os termos da utopia negativa, enquanto projecto de renovação do romance, devolvem-nos uma explícita ética do estético que não deixará de ter matriz modernista. É na produção de uma auto-referencialidade intrinsecamente negativa que Espinosa cumpre o desígnio de uma arte social contra a sociedade. Esta ética da forma – uma ética da forma que pode ser lida como pulsão latamente clássica que introduz o inactual num tempo realizado, tempus pós-moderno – tem também um vínculo possível com as versões fortes do formalismo modernista.

Pedro Serra

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Espinosa (I)

Posted in Autores, Notas by Pedro Serra on Sábado, 23-02-2008

Miguel Espinosa

Miguel Espinosa (1926-1982) terá escrito La fea burguesía entre 1971 e 1975. Romance ainda revisto em 1980, já só seria publicado na versão final em 1990. Edição póstuma, pois, que acaba de conhecer uma segunda edição (2006), novamente pela chancela da editora Alfaguara. La fea burguesía articula uma singular poética do romance, poética apostada na representação da burguesia, também referida como «clase gozante». «Classe» não obedece a um sentido estritamente materialista, nem o universo social representado se subsume a uma dialéctica de classes, antes à cristalização do seu cancelamento. O romance é constituído por duas partes. A primeira delas, sob o título de «Clase media», é integrada por cinco histórias independentes. Cada um desses núcleos narrativos centra-se num casal, sendo que cada um dos cinco casais nomeia as diferentes histórias: Castillejo e Cecilia, Clavero e Pilar, Krensler e Cayetana e Paracel e Purificación. A segunda parte do livro, por seu turno, tem por título «Clase gozante». É composta por apenas um capítulo, mais longo que os anteriores, subtitulado com os nomes próprios de um outro casal, Camilo e Clotilde.

Sublinho, de momento, um único aspecto formal deste romance, concretamente aquele que estrutura o pacto narrativo da segunda parte do livro. O narrador de «Clase gozante» é um narrador em primeira pessoa, o contador da história é precisamente a personagem Camilo. O pacto narrativo desta segunda metade de La fea burguesía implica que a voz ficcional que se dirige ao leitor seja um burguês exemplar. Esse leitor potencial, e este é um ponto importante, é ficcionado pelo próprio romance. A história é contada por Camilo, figura paradigmática da classe hedonista, a uma outra personagem, Godínez, indivíduo que se situa, de um ponto de vista social, nas margens do círculo propriamente burguês. Enquanto Camilo é um alto funcionário do aparelho burocrático do Estado – epítome, pois, da alta classe média que sustentou e foi legitimada pelo franquismo – Godínez pertence a um stratum social também referido como classe média, mas que não se manifesta absolutamente como «clase gozante». Na verdade, a peculiaridade da personagem reside precisamente no facto de nunca poder vir a aceder a esse círculo social de eleição. Godínez é – e este termo é o termo usado no romance – um proletário. Ser proletário significa prioritariamente, dentro dos limites nocionais do romance, que Godínez é exposto à fealdade burguesa mas que nunca encarnará esse mal absoluto.

E, todavia, a condição de ouvinte e tentado pela sedutora língua de Camilo não esgota o estatuto ficcional de Godínez. Constatamo-lo apenas no último parágrafo do romance, parágrafo que explicitamente situa Camilo e Godínez numa cena de tentação. Camilo é o tentador e Godínez o tentado. Camilo fala – narra, é o narrador – e Godínez escuta, isto é, é tentado pelo discurso da voz autoritária do primeiro. São estas as palavras finais do romance:

Un hombre fue tentado, por otro hombre, a inclinarse por lo que no podía alcanzar, dada su naturaleza, lo cual entraña la más alta tentación ya que conduce a la desesperación. El tentado empero, resistió la seducción mediante la acción de escucharla y transcribirla, retratando con ello el tentador y apartándolo de sí.

Notável este turn of the screw final do romance! Godínez não apenas ouve o relato de Camilo: Godínez é, também, responsável pela sua transcrição. Escrever as palavras da vida social alienada, da fealdade burguesa, significa simultaneamente ceder/resistir à alienação.

Miguel Espinosa (2006), La fea burguesía. Madrid: Alfaguara, 312 pp. [ISBN: 842046984X]

Pedro Serra

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Ruy Duarte de Carvalho ou do contrato social (II)

Posted in Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Sábado, 23-02-2008

Mucubala

Uma outra forma de abordar o contrato social em RDC é a que passa pela questão do direito natural. Em Como se o mundo não tivesse leste há vários passos em que o direito vigente surge como derrogação (colonial) da ordem natural da propriedade:

– Chega um branco aqui e ocupa a terra. Protege-o uma legislação a que basta, para dar cobertura à sua prepotência, delimitar à volta algumas áreas e declará-las reservadas para os chamados vizinhos de regedoria. O resto é declarado terreno livre do Estado e apto, portanto, para ser requerido e ocupado, a troco, apenas, de um compromisso de aproveitamento que o requerente nunca, ou quase nunca, tem a intenção de respeitar. (p. 38)

A esta versão do direito como normatividade que dá cobertura à prepotência opor-se-ia, à primeira vista, uma ordem alternativa, inscrita ontologicamente na natureza e para cuja descrição poderíamos recorrer a um verso famoso de «Noção Geográfica» (in Das Decisões da Idade, 1972-1974, na rearrumação de Lavra), o poema com que RDC contribuiu para uma épica do continente: «Habito um corpo móvel de paisagens». Esta descrição, porém, perturba qualquer tentativa de «inscrição» numa ontologia da natureza, já que nos diz de uma paisagem móvel. A fixação posterior de RDC num território angolano muito localizado não abala essencialmente esta descrição, na medida em que o território do Namibe é sempre descrito em função da sua população móvel e o próprio observador não consegue nunca imobilizar-se plenamente numa posição de sujeito (ponto que Luís Quintais tem justamente enfatizado). O direito natural desempenha antes em RDC uma função crítica em relação ao direito positivo vigente; mas, ou não fosse o autor um etnógrafo, o estado de natureza pressuposto, em modo especulativo ou teórico, pelo jusnaturalismo, nunca é reivindicado pelo autor senão em regime tropológico: existe nos mucubais uma relação metonímica com a natureza que os coloca em estreita contiguidade com ela. Mas isto não chega sequer a permitir que se transforme essa relação numa comparação – «os mucubais são como a natureza» – e, menos ainda, numa metáfora: «Os mucubais são a própria natureza».

Os mucubais são uma sociedade e regem-se pois por um contrato. RDC, aliás, não idealiza esse contrato nem o coloca numa posição de exterioridade absoluta em relação ao resto da nação: por outras palavras, não há aqui lugar a robinsonadas. O que há, sim, é uma representação da sociedade civil em função do conteúdo da descrição do estado de natureza, naquela versão metonímica antes referida, produzido por RDC: é porque se postula a positividade dos traços constantes da «natureza» dos mucubais – e, claro, é porque se admite que os mucubais têm valor de exemplo – que se defende, de modo implícito e, por vezes, explícito, que a ordem político-jurídica deve, muito racionalmente, confirmar e consolidar essas qualidades.

Finalmente, os mucubais são ainda uma metonímia da natureza na medida em que praticam uma ecologia da subsistência. E assim, em vários pontos da sua obra (em passagens fortes de Os Papéis do Inglês e, claro, em Vou lá visitar pastores), RDC defende, com uma convicção que não podemos deixar de considerar política, uma hermenêutica não-moderna dessa ecologia. De facto, à luz das categorias decisivas da racionalidade instrumental moderna, a ecologia dos mucubais está condenada à desqualificação por todos aqueles que respondem à escassez material com índices de desenvolvimento. É neste ponto que o etnógrafo se transforma num pedagogo, quase sempre inenfático; e é este o ponto em que os mucubais funcionam como toda uma pedagogia, se não da natureza ao menos do respeito pela auto-regulada, e muito limitada, capacidade de absorção (ou de «consumo») dela. O resto, são os excessos destrutivos da modernidade: o luxo e o lixo.

Osvaldo Manuel Silvestre

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Madame Bovary, 150 anos depois

Posted in Comentários by A. Apolinário Lourenço on Quinta-feira, 21-02-2008

Madame Bovary

Concretizaram-se, no ano há pouco terminado, cento e cinquenta anos sobre a publicação em livro de Madame Bovary, o genial romance de Flaubert. Estranhamente, a efeméride passou entre nós praticamente despercebida, apesar da enorme influência que essa obra e o seu autor exerceram sobre a literatura portuguesa, a partir do final do século XIX.

Para Eça de Queirós, em particular, Gustave Flaubert foi permanentemente um mestre e um modelo. Logo em 1871, quando o futuro autor d’Os Maias apresentou no Casino Lisbonense a sua conferência sobre o realismo na arte, com um discurso demasiado colado ao do livro de Proudhon intitulado Du Principe de l’art et de sa destination sociale, os parágrafos mais originais foram justamente aqueles que dedicou a Madame Bovary. A conferência, como se sabe, é apenas conhecida pelos relatos da imprensa da época (neste caso, o Diário Popular de 15 06 1871):

Para exemplificar a doutrina do realismo, citou o Sr. Eça de Queirós Madame Bovary, o célebre livro de Gustave Flaubert, no qual o adultério tantas vezes cantado pelos românticos como um infortúnio poético que comove perniciosamente a susceptibilidade das almas cândidas, nos aparece pela primeira vez debaixo da sua forma anatómica, nu, retalhado e descosido fibra a fibra por um escalpelo implacável. O efeito é surpreendente e terrível.

Constatamos, assim, que foi a leitura de Madame Bovary que fez Eça compreender a superioridade civilizacional e ética do Realismo sobre o Romantismo. Outros autores, como os irmãos Goncourt e Émile Zola, em França, sentiram, perante Madame Bovary, um deslumbramento idêntico ao de Eça. E enquanto Edmond et Jules de Goncourt criavam, com Germinie Lacerteux, uma espécie de Bovary das classes baixas, Zola procuraria, igualmente a partir do romance de Flaubert, desenhar o modelo técnico-narrativo do romance naturalista.

Alguns críticos gostam de recordar as cartas de Flaubert em que este se considerava crítico e opositor do realismo. Contudo, o realismo de que se distanciava o autor de Salammbô não era o «realismo» em abstracto, mas a prática romanesca de autores integrantes do «grupo realista» que gravitava em torno de Champfleury e de Courbet. Na revista Réalisme, saiu em 1857 uma crítica demolidora de Madame Bovary. O autor da crítica, o também romancista Edmond Duranty, advogava que o discurso literário deveria ser em tudo idêntico ao discurso coloquial e denunciava o romance de Flaubert por ser «feito a compasso, com minúcia; calculado, trabalhado, feito de ângulos direitos e, definitivamente, seco e árido». Ao contrário de Champfleury e Duranty, Flaubert era um esteta, que trabalhava o discurso com uma paixão obsessiva, logrando atingir, como disse Roland Barthes em O grau zero da escrita, «um sexto sentido, puramente literário, interior aos produtores e aos consumidores da Literatura». Contudo, como escreveu William Paulson a propósito de outro importante romance de Flaubert, A Educação Sentimental, a sua «preocupação com o estilo, longe de o distrair relativamente às dimensões histórica e social da sua obra, era acompanhada por uma obsessão idêntica pela fidelidade ao mundo exterior ao texto», que o levava, por exemplo, à leitura intensiva dos jornais da época em que situava a acção dos seus romances e à visita demorada aos cenários romanescos, tomando, para cada um dos seus livros, muitas dezenas de páginas de fichas de trabalho.
[continua aqui >>>]

António Apolinário Lourenço

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Dilatar o logos pela lei da paródia

Posted in Crítica by Miguel Cardina on Segunda-feira, 18-02-2008

guardadorretretes.gif«Algumas palavras ladrar-vos-ão-ão na cara», avisa Pedro Barbosa as «excremências» às quais dedica O Guardador de Retretes, cuja recentíssima 4.ª edição foi agora disponibilizada pela Afrontamento. Trinta anos passados sobre o texto original, os latidos podem ter perdido, com o tempo, alguma da corrosibilidade, mas o estilo – feito do jogo constante entre a inventividade subversiva e a simulação de uma oca grandiloquência académica – continua a deliciar.

Estávamos em 1976, com o ar ainda carregado de certezas rutilantes, quando foi publicado este (anti-)estudo sobre a sapiência escondida no anonimato das casas-de-banho. Nele se respigam e analisam desabafos, comentários, poemas, aforismos ou proclamações feitas naquele lugar-momento «que os bons costumes sempre escarneceram, vilipendiaram, cobriram de ignorância» e que tem a virtude de colocar todos os homens – a retretologia feminina é pouco abordada – em pé de igualdade.

Com o objectivo confesso de «provocar a indigestão intelectualista», Pedro Barbosa desenvolve um soberbo exercício da arte de mal-dizer, marcado pela pulsão iconoclasta que os ventos pós-1968 foram semeando. A filiação nesta ambiência soixante-huitard é notória, tanto na crítica mordaz à instituição universitária (na linha das intervenções-choque efectuadas pelos situacionistas), como na denúncia da cultura dominante, feita através do recurso a uma realidade discursiva marginal – a «portografia retretológica» – aqui trabalhada com evidentes, e por vezes sublimes, traços de ironia e humor.

Ao mesmo tempo que desfere um forte ataque ao agostiniano repúdio pelo corpo, o autor caricatura um tipo de racionalidade hermética e auto-referencial, utilizando para isso a descontextualização do estilo e a consequente activação do ridículo como arma. Daí que Pedro Barbosa defina o texto, nas primeiras linhas do prefácio a esta edição, como a «ficção de um ensaio». Ficção, portanto, e como tal apelando à transfiguração daquilo que é dito à superfície. Mas em tempos de (algum) pluralismo metodológico e de abertura a objectos científicos menos ortodoxos, não é possível ler este O Guardador de Retretes sem se ser atravessado por uma perplexidade: e se alguém academicamente levasse a ideia a sério?

Pedro Barbosa (2007), O Guardador de Retretes. Porto: Edições Afrontamento. 109 pp. Com posfácio de Manuel Frias Martins. 1.ª edição: 1976 [ISBN: 978-972-36-0920-2]

Miguel Cardina

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Máquinas de Escrever

Posted in Crítica by Manuel Portela on Segunda-feira, 18-02-2008

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A mediação digital alterou a ecologia dos dispositivos de mediação técnica, reconfigurando as relações entre diferentes meios. As tecnologias de representação e de simulação cooperam e competem num processo acelerado de remediação, isto é, de emulação de uns meios por outros e de migração de uns meios para outros. Esta mutação generalizada na ecologia da mediação tecnológica é o tema da obra Writing Machines de N. Katherine Hayles, originalmente publicada em 2002. Ao contrário da teorização de Baudrillard, que imagina uma progressiva substituição teleológica das representações (isto é, mediações com referente no mundo real) por simulações (isto é, mediações sem referente, como acontece em Matrix, por exemplo), Hayles descreve o processo em curso como de remediação contínua e dinâmica de uns meios por outros: representações por simulações por representações por simulações, etc. Neste mundo digital, Writing Machines procura encontrar um vocabulário crítico que permita dar conta quer dos processos de virtualização e simulação cada vez mais ubíquos, quer da materialidade das representações, na sua natureza textual, científica, técnica, industrial. Trata-se de encarar a mediação na sua dupla face de simulação e de representação em simultâneo.

Para isso usa como modelo três artefactos literários inter-média: a obra electrónica Lexia to Perplexia, de Talan Memmott; o livro de artista A Humument, de Tom Phillips; e o romance tipográfico House of Leaves, de Mark Z. Danielewski. Nestas obras, exemplos da criação como investigação da natureza multimediada do sentido, a co-dependência entre a obra e o medium acentua a natureza material da textualidade e da significação. De resto, a forma gráfica e narrativa de Writing Machines chama ela própria a atenção para as relações entre a página de papel e a página electrónica, e entre o discurso teórico e a historicidade particular que se oculta nesse discurso. Hayles estrutura a sua obra como um ensaio, mas usa ao mesmo tempo os procedimentos da autobiografia, servindo-se para isso da mediação de uma narradora, a quem chama Kaye. A esta mediação narrativa acrescenta-se a mediação gráfica de Anne Burdick, cujo grafismo simula na página de papel características da tipografia digital do écrã electrónico. Ou seja, a obra de Hayles adopta na sua forma expositiva e argumentativa procedimentos de representação e de simulação equivalentes àqueles que analisa noutros meios e noutras obras. A persona de Kaye é usada para contar a estória da sua aprendizagem individual do processamento simbólico, desde o primeiro contacto com os livros na infância até às simulações de animação digital.

Um dos conceitos que estrutura esta teorização da materialidade textual e hipertextual é a noção de tecnologia de inscrição. Aos dispositivos que geram modificações materiais que podem ser lidas como sinais, Hayles chama tecnologias de inscrição. A literatura seria, num certo sentido, uma dessas tecnologias. Os textos literários que interrogam os dispositivos materiais que os produzem geram circuitos de retro-alimentação entre o mundo imaginário gerado pelos significantes e o dispositivo material em que esse mundo imaginário se corporiza. Esta propriedade auto-reflexiva é constitutiva da semiose literária em geral, mas surge de forma acentuada em obras que ligam verbalidade e materialidade. A estas obras Hayles chama tecnotextos, explicitando nestes termos o sentido do seu título: «‘Máquinas de Escrever’ designa as tecnologias de inscrição que produzem textos literários, incluindo prelos de imprimir, computadores e outros dispositivos. ‘Máquinas de Escrever’ é também aquilo que os tecnotextos fazem quando expõem os mecanismos que conferem realidade física às suas construções verbais.» (26)

A análise das três obras referidas serve como ponto de partida para investigar a relação entre os componentes verbais e não-verbais da literatura e da arte electrónica, mostrando como a materialidade das inscrições determina o mundo representado através da interacção comunicativa que as inscrições estabelecem com o/a leitor/a: «Não é por acaso que textos electrónicos como Lexia to Perplexia, livros de artista como A Humument, e romances tipográficos como House of Leaves imaginam sujeitos que se formam com e através das tecnologias de inscrição que estas obras usam. As máquinas de escrever que criam fisicamente sujeitos ficcionais através de inscrições também nos ligam enquanto leitores aos seus interfaces, impressos ou electrónicos, que nos transformam ao reconfigurar as interacções que estabelecemos com as suas materialidades. Inscrevendo ficções consequentes, através das inscrições que escrevem e que as escrevem, as máquinas de escrever redefinem o que significa escrever, ler, e ser humano.» (131)

Manuel Portela

N. Katherine Hayles (2002), Writing Machines, Cambridge, Mass: MIT Press. 144 pp. [ISBN 0-262-58215-5]

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JG Ballard: observações incivilizadas

Posted in Autores by Luís Quintais on Domingo, 17-02-2008

BallardSaiu este ano o trigésimo livro de JG Ballard. Miracles of Life. Shanghai to Shepperton é a autobiografia que irá certamente fechar o percurso de um dos inevitáveis e notáveis escritores modernos. Ballard é aquele que emblematiza melhor o perfil distópico do progresso científico e da razão para todos. E disse «fechar» porque sabe-se que a motivação para esta autobiografia encontrou-a Ballard no facto de lhe ter sido diagnosticado um cancro em estado avançado. A aguda percepção da sua morte próxima, pois. Não vou escrever aqui (para já) sobre este livro genuinamente comovente (o que não é, como muitos pensarão, algo de insólito em Ballard). Gostaria apenas (e para já) de aqui deixar alguns fragmentos de uma entrevista que Ballard deu a Paulo Moura em 2004 para a Pública (7 de Novembro):

«Que podem fazer os políticos?
Não podem fazer nada. Estão presos ao conceito tradicional de política. Veja a Administração americana. Ainda está agarrada aos conceitos do século XX. Pensam sempre em termos de navios de guerra, tanques, ataques aéreos. É a América de 1945 com muito mais tecnologia, mas a mesma filosofia: se alguma coisa corre mal, bombardeia-se os gajos. Ora isto não se compadece com o mundo que temos. E depois os políticos ainda pensam que o seu papel é organizar a sociedade de forma mais justa e razoável. Também tem de ser isso, mas não só. Vocês já se viram livres da realeza, não é verdade?
Sim, em 1910.
Boa jogada. A monarquia está desacreditada. Mas a república também. Bem como a Igreja. Bom nos EUA, 60 por cento das pessoas voltam-se para a Igreja, numa busca desenfreada do irracional. Eles têm uma indústria de entretenimento desde 1930. Uma prosperidade enorme e ainda a crença de que se trabalharem podem ter uma vida melhor. Mas o que será essa vida melhor? A Disneylândia? Mais consumo?
Não é isso que as pessoas continuam a procurar?
Tem de haver algo mais na vida do que apenas consumir coisas. Isso foi um bom ideal até certa altura, mas agora é um projecto que está esgotado.
A civilização ocidental vai então acabar?
A filosofia da Luzes, nascida com a Revolução Industrial, com a sua promessa de riqueza, prosperidade, já deu o que tinha a dar. O Iluminismo é um projecto acabado. Está nas suas últimas fases e as pessoas estão a voltar-se para o irracional. Para a religião, como nos EUA ou na Arábia Saudita, ou para o irracionalismo político, como os grandes projectos utópicos do século XX, o comunismo e o fascismo, que originaram dois gigantescos pesadelos…
Estará para nascer mais algum grande projecto utópico?
Eu vejo a possibilidade de o consumismo, para sobreviver, sofrer uma mutação. Transformar-se numa espécie de versão soft de fascismo. Há muitas similitudes. Os princípios psicológicos que lhe subjazem são os mesmos.
O consumismo não pressupõe a liberdade individual?
Não. É um tipo de autoritarismo, porque é um sistema de promessas. Compre isto e terá a felicidade. É uma promessa ideológica. A publicidade é um meio de dominar as nossas mentes, de forma autoritária, prepotente, sem argumentos racionais. As pessoas sabem isso e aceitam, porque gostam de obedecer.
Não se pode dizer que seja um optimista quanto à natureza e futuro da humanidade. Até que ponto a sua infância na China, durante a guerra, num campo de concentração, influenciou a sua visão do mundo?
Vivi em Xangai durante a ocupação japonesa, até aos 16 anos. Tive de crescer muito depressa. Aprende-se muita coisa, com essa experiência de viver, durante uma guerra, sob controlo inimigo. Ser civil e estar completamente à mercê deles. Ser uma criança e ver os pais também à mercê, inseguros. Sem terem comida para nos dar, cheios de medo. É absolutamente assustador. Ensina-nos para sempre que não podemos tomar nada por garantido. E que o mundo em que vivemos é muito mais perigoso do que parece.
É, de certa forma, um mundo fictício.
É um cenário. É assim que eu o vejo. Como um cenário de um filme, que pode ser derrubado em dez minutos, para ser substituído por outro.»

Luís Quintais

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Crimes e prémios

Posted in Crítica by Osvaldo Manuel Silvestre on Domingo, 17-02-2008

Purga em AngolaUm livro estranho, porque frequentemente mal escrito; e um livro estribado numa série de preconceitos ideológicos demasiado evidentes. Mas um livro importante, pelas duas ou três coisas que deixa estabelecidas de forma não direi definitiva – a ocorrência é daquelas cuja modalidade de existência subtrai, em muitos casos para sempre, testemunhos e evidência – mas muito mais definida: 1) que em resultado do 27 de Maio de 1977, em Angola terão sido mortas cerca de 30 000 pessoas, com o pretexto de serem simpatizantes de Nito Alves (um massacre, que o seria sempre mesmo que esse número descesse para metade ou um quarto, números sempre superiores aos do Chile de Pinochet); 2) que Agostinho Neto, que afirmou a propósito da intentona: «Não haverá contemplações. Certamente não vamos perder tempo com julgamentos», assinou documentos autorizando execuções e, no mínimo, foi complacente com muitas outras; 3) que nos tristemente famosos interrogatórios aos detidos colaboraram, de forma variada e com graus diversos de empenhamento, escritores como Pepetela, Costa Andrade, Manuel Rui ou Luandino Vieira. Ou seja, dois futuros prémios Camões. É certo que Pepetela já tratou em romance o «desencanto da revolução». E que Luandino se tornou «o recluso de Cerveira» e não aceitou o prémio. No que andou muito bem, pois há algo de inaceitável na associação do nome de Camões – ou seja: o nome da poesia – a quem pactuou com a infâmia (ponto já referido, de outro modo, por Rui Bebiano).

Os intelectuais apreciam sempre referir, a propósito de ética intelectual e liberdade de expressão, casos como o de Ossip Mandelstam, que em 1942 compôs, sem nunca chegar a escrevê-lo, um poema sobre um tirano que ordena execuções sem parar e as saboreia «como um georgiano come framboesas». Estaline soube, reviu-se facilmente no retrato e deportou o poeta para o exílio interno na cidade de Voronezh (não sem antes ter famosamente perguntado por telefone a Pasternak se Mandelstam era «um mestre»: a resposta afirmativa de Pasternak terá ajudado a que a penalização tenha sido «só» essa). E, mais tarde, fez pressão para que o poeta compusesse uma ode à sua pessoa, o que este acabou por fazer. É curioso como o grau de exigência ético-moral dos intelectuais baixa em função de certos contextos, neste caso pós-coloniais, que não parecem susceptíveis de suscitar indignação ou sequer reflexão, senão décadas depois e sem que isso afecte visivelmente comportamentos e reputações (coisa muito diferente, já agora, do que sucedeu com Jorge Luís Borges, que por bem menos se viu privado do mais que merecido Nobel – o que, esclareço, me parece justo). Em todo o caso, permito-me desejar que o Prémio Camões nunca seja atribuído a Manuel Rui.

Creio que tudo isto chega para recomendar a leitura deste livro.

Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus (2007), Purga em Angola. Nito Alves, Sita Valles, Zé van Dunem, o 27 de Maio de 1977. Porto: Asa. 208 pp. [ISBN: 978-972-41-5372-8]

Osvaldo Manuel Silvestre

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Guerra Incivil

Posted in Recensões by Pedro Serra on Sábado, 16-02-2008

La Guerra Que Nos Han ContadoA páginas tantas, no livro La guerra que nos han contado. El 36 y nosotros (2006) de Jesús Izquierdo y Pablo Sánchez León, os autores reclamam «Um mapa ou um dicionário» a fazer. Dicionário que, formulam, «no es un vocabulario. Tampoco es un elenco de términos dispuestos por orden alfabético». Ressonâncias foucaultianas, pois, neste dicionário de uma ordem discursiva que os historiadores concebem como complexa pragmática vocabular que refracta um «mundo que se nos insinua por detrás de esas palabras permanec[iendo] opaco». Jesús Izquierdo e Pablo Sánchez León, diríamos, propõem um dicionário de palavras em regime moderno, um dicionário de palavras que matam, palavras guerreiras. Eric Hobsbawm começa o seu tríptico de estudos dedicados ao período da história ocidental que vai de 1789 a 1914 – da Revolução Francesa até à eclosão da Primeira Guerra Mundial – destacando a importância das palavras para o conhecimento do mundo moderno, para o conhecimento da «Modernidade»: «As palavras – assevera o autor de The Age of Revolution são testemunhas que muito frequentemente falam mais alto que os documentos». A Modernidade, neste sentido, enquanto complexa etapa de profundas transformações, é perspectivada como um acontecimento que implica a significação e a poiesis verbal. O «mais alto» que as palavras falam requer, para ser audível, mais do que arquivo documental – se bem que seja, sem dúvida, necessário –, a captação dessas mudanças significativas e dessa poética da significação.

Talvez que sempre se nos estejam a contar guerras; talvez que todo o presente, futuro do passado, seja predicado na infinita narração da incontornável violência bélica. Um dos lances fundamentais do livro La guerra que nos han contado estriba-se no facto de que as palavras da Guerra de 36-39 foram continuadas por uma «guerra de palavras». Jesús Izquierdo y Pablo Sánchez León vão desdobrando este quiasmo. Não menos notória é a cartografia do comportamento da discursividade coeva em determinados momentos álgidos: o ano de 31 e o advento da República, os anos de 34, 36 e 39. Igual tratamento é dado, ainda, à discursividade «académica» que sobreveio e nos vai sendo interrogada na sua opacidade e seus agonismos, agonismos determinados por implacáveis escatologias. O dicionário a fazer é o dicionário destas ordens discursivas.

A demanda, por parte dos autores, de um dicionário certamente impossível, obedece, em última instância, a um imperativo ético. Próximos dos textos e da sua subordinação a um gesto interpretativo, a pulsão da escrita de Jesús Izquierdo e Pablo Sánchez León é modulada como acto cívico. Historiadores, sim, mas é todavia a partir da construção de uma «cidadania» ainda por vir que pensam e escrevem La guerra que nos han contado. El 36 y nosostros. O historiador não ocupa um lugar auto-complacente – como tão-pouco supõe auto-complacência a memória e a história a que nos convidam –; é, em suma, um lugar ético. Não se trata de uma ética relativista, antes é entendida fundamentalmente como operador heurístico. Um lance metodológico que responde cabalmente à necessidade de «estranhar» o passado, à necessidade de lê-lo sabendo-o opaco. O livro vai reflectindo en abyme sobre o trabalho historiográfico de um modo propedêutico. A suspensão do juízo moral é extensão da pulsão crítica necessária para situar as “palavras de guerra” e a “guerra de palavras” no seu contexto histórico. Ainda, o momento propriamente interpretativo-explicativo é articulado em função do lugar moral ou cívico – o lugar do cidadão – que é precisamente o sujeito que escava um abismo entre o presente e o passado com que o presente continua a ter que enfrentar-se. O momento culminante é aquele em que os autores reclamam, como corolário do seu trabalho, um direito, o seguinte direito: «Éstos son los motivos para ser cautelosos a la hora de seguir hablando de la guerra de 36 como una guerra civil. Somos nosotros los que denominamos aquel proceso con este nombre; al hacerlo estamos, no obstante, hablando de nuestra guerra, no de la suya, la de nuestros antepasados y abuelos que pelearon en ella o fueron sus víctimas. Para evitar seguir impostando a quienes la vivieron en nombre de quienes la contamos, en este libro hemos optado por dejar de emplear esa denominación de ‘guerra civil’ habitual en todos los relatos del último medio siglo. Es una opción a la que creemos tener derecho». Não é apenas uma questão de palavras, as questões de palavras nunca são só de palavras. Sem sujeitos «civis», a guerra foi «social» ou «de religião». Assim, onde se vai lendo Guerra Civil, deverá ler-se Guerra Social ou Guerra de Religião. Ou, ainda, Guerra Incivil.

Recordar a linguagem é o cerne do livro La guerra que nos ha contado. El 36 y nosotros. Recordar a linguagem é repetir a linguagem na sua diferença. Em todo o caso: a palavra – enquanto revólver carregado, enquanto dinamite – é-nos mostrada no centro dos processos históricos. Jesús Izquierdo e Pablo Sánchez León, ‘netos’ da Guerra Incivil de Espanha, escrevem para recuperar a irrecuperável língua da infância: «Nosotros en cambio estamos convencidos de que sin el concurso de esas palabras no se podrían haber hecho las cosas que se hicieron. Las que contiene este texto tienen cierta relevancia para la peripecia de dos niños que de pequeños leyeron –o creen haber leído– que su colegio fue destruido por una ‘hordas marxistas’, ya que arroja una importante luz acerca del sentido de aquella estela conmemorativa, y de paso de toda la racionalidad subyacente a esas palabras que mataban». Jesús Izquierdo y Pablo Sánchez León, no seu livro, re-lêem/repetem a memória dessa infantil placa [esp. estela] do ‘Colegio Ramiro de Maeztu’, uma placa que é como aquela concha de que falava Nietzsche: «Um instrumento de sopro feio para a vista: primeiro é preciso soprá-lo».

Jesús Izquierdo e Pablo Sánchez León (2006), La guerra que nos han contado: 1936 y nosotros. Madrid: Alianza Editorial. 320 pp. [ISBN: 84-206-4813-2]

Pedro Serra

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Bilal ou a neuropolítica

Posted in Notas by Luís Quintais on Sábado, 16-02-2008

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Sempre me fascinou a importância que Baudelaire tem para Bilal. Assim, por exemplo, em A feira dos imortais (1980), o fim do regime fascista de J. F. Choublanc coincide com a loucura de Nikopol, cuja figura servira um dia os desígnios de vingança e poder do deus Horus que lhe tomara o corpo, roubando-lhe o arbítrio e a decisão.

O que é interessante aqui não é somente o modo como Bilal usa o tema eminentemente baudelairiano da possessão para falar de poder e de metamorfose (metamorfose política também, porque sem a possessão de Horus-Nikopol não seria possível chegar ao fim do terrível regime fascista de Choublanc), mas também o modo como, através desse tema, faz inverter o par loucura/sanidade inicial. Isto é, a relativa sanidade (e ironia) de Nikopol e a “desrazão” do sistema político de Choublanc do início dão lugar à relativa sanidade do sistema político (que coincide com o fim do fascismo) e à “desrazão” de Nikopol.

Este último já não é o possuído (Horus retira-se do seu corpo) do início, mas o condenado a viver entre Baudelaire e o humor. A manifestação do progressivo colapso da mente de Nikopol está no facto dele se limitar a recitar o lírico moderno (o primeiro poeta moderno?) e a ser sacudido por violentas gargalhadas.

Horus retirou-se e deixou-lhe o cadáver mais que esquisito das “flores” de Baudelaire inscrito no seu cérebro. E se aceitarmos que Baudelaire é o primeiro poeta moderno (o criador de uma poesia metropolitana que nos destituiu de vez de todas as declinações pastorais), então é como se a metrópole e tudo o que ela representa de complexo, estranho, e mortal lhe tivesse tomado de assalto a arquitectura cérebro-mente.

Bilal parece querer dizer-nos, afinal, que o que importa ver, desenhar, escrever, e pensar está algures escondido em Nikopol, sendo as palavras de Baudelaire e as gargalhadas demenciais de Nikopol a chave de acesso à vida secreta nas grandes cidades.

Tudo o resto seria ordem e justiça – dias felizes pois, e como se sabe os dias felizes não têm história.

Luís Quintais

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Ruy Duarte de Carvalho ou do contrato social (I)

Posted in Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Sábado, 16-02-2008

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Quando, em 1977, Ruy Duarte de Carvalho (RDC) publica o seu livro seminal Como se o mundo não tivesse leste, a literatura angolana, como aliás as das outras recentes nações africanas de língua oficial portuguesa, entregava-se à tarefa de edificação imaginativa da nação, quase sempre recorrendo para tal ao arsenal da tradição épica, em prosa ou verso. São conhecidos os frutos dessa (com)pulsão: exaltações guerreiras e revisitações críticas do passado, recuperando ou reinventando personagens, da rainha Ginga aos jagas da lenda e do mito.

A resposta de RDC a este tropismo é, dir-se-ia, oblíqua e, na aparência, desinvestida. Contudo, bastaria o título do livro de 1977 para se perceber que o autor faz, agora em prosa, uma proposta de «Noção geográfica» não menos decisiva do que a da cor(e)ografia poética desse nome incluída em A Decisão da Idade, de 1976. Esta proposta ou proposição, esclareça-se, é suficientemente avessa à lógica simbólico-política da literatura angolana de então para não nos surpreender a efectiva ausência de recepção de que foi objecto à data e depois. Se a leio bem, desde o título, não se trata de recompor uma cartografia amputada; mais radicalmente, parece estar em causa a própria impossibilidade (ou a desejável impossibilidade) de cristalização de uma cartografia dos territórios da nação. É este o ponto em que título e obsessão geográfica, espacial, cartográfica, se revelam ilusórios e enganadores, já que a minudência representacional do território nunca coincide em RDC com uma ideia (insuportavelmente naïf) de coincidência expressiva de território, representação e nação. Pelo contrário, e é por aqui que o potencial crítico da sua obra vai operando, RDC sugere, na própria escolha (se é que podemos falar de escolha) dos seus espaços electivos, que se a nação é território, os próprios territórios que a compõem têm de ser laboriosamente conquistados para um esforço de imaginação comunitária – e, como sabemos, em cada nação se verifica um desigual investimento dessa imaginação nas parcelas que compõem o todo territorial, das capitais às periféricas.

Os problemas não se ficam por aqui, porém, pois é a própria pré-condição do ideal de comunidade nacional que a estratégia de RDC visa, senão sabotar pelo menos dar a ver nas suas fragilidades constitutivas (tectónicas e arquitectónicas, seria caso para dizer). Do que se trata, em rigor, é do problema do contrato social de uma nação africana emergente – e dos danos que a ideia, constitutivamente moderna, do contrato social, e, antes dela, da própria ideia de contrato, pode causar a povos com uma relação de exterioridade ou excentricidade com a própria noção de «ratificação» de um contrato fixo com um todo de que são o Outro.

Por outras palavras, é como se a obra de RDC, na sua conjuntura em 1977, colocasse uma questão de que seguramente não possuiria à data todas as coordenadas e implicações: pode uma nação emergente dispensar uma ideia forte de contrato social? Mais ainda: pode uma nação africana, atravessada por conflitos decorrentes de perspectivas inconciliáveis do contrato social, dispensar a própria premência do contrato, sabendo-se, como se sabe, que em muitas nações pós-coloniais é o Estado, enquanto vínculo contratual, que se atribui a tarefa de ir cimentando a nação? A resposta é obviamente negativa, se assim a colocarmos: não pode. Mas o que RDC faz ao «eleger» o Namibe e os mucubais como objecto, mundo, alegoria, consiste em dar a ver a esterilidade de um conflito sem lugar para todos aqueles que, ao contrário das ideologias pré-modernas que fazem coincidir sujeito, sangue e direito, e ao contrário das versões modernas que se centram no território, com todo o seu edifício e quadrícula jurídico-administrativa, há – tem de haver – lugar para pensar um modelo de contrato e de cidadania no qual os mucubais e a sua errância (aliás, limitada) não sejam o parasita do corpo social mas a sua verdadeira instância crítica.

Como se o mundo não tivesse leste: porque mapas e contratos não são a coisa-mundo mas acabam por ser mais mortíferos do que essa coisa, afinal sobredeterminada por eles. E porque os mucubais estão como estão nesse mapa (ou seja: nunca estando inteiramente à disposição de uma representação) porque só assim, admitindo os pontos cegos de qualquer mapa e de qualquer contrato, se podem evitar os desvarios do contrato social moderno. É isto, também, o triunfo da literatura-de-fronteira de RDC: uma etnografia que procura as linhas de fuga da tradução política do primado do étnico sobre o contratual; um contrabando que sabota a «assinatura» ratificadora do contrato em nome do princípio da falsificação do nome de um sujeito que acumula nomes para não ser nenhum a tempo inteiro: autor de relatórios, etnógrafo, romancista, poeta, nómada, enfim, angolano de parte incerta. E é aqui, no mais fundo e recôndito desta falsificação do nome, que mora o compromisso ético e político de RDC para com esse contrato que leva o nome de «Angola». É isto a literatura em RDC e pena é que esta proposta tenha tido tão poucos e distraídos leitores em 1977 e nas décadas seguintes. Mas esse, como se sabe, é o destino da literatura.

Osvaldo Manuel Silvestre

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Dobra e escala: anotação sobre Ruy Duarte de Carvalho

Posted in Notas by Luís Quintais on Sábado, 16-02-2008

Namibe

Quando leio Ruy Duarte de Carvalho sou assaltado por uma certeza: estamos perante um escritor na fronteira, um escritor em que o “interior” e o “exterior” estabelecem relações de contiguidade que só podem ser descritas topologicamente.

Deleuzianamente, dir-se-ia que o Ruy é um escritor das dobras, das plicas, em que a psicologia profunda se encena na sua recursividade constante com o território, com a geografia, com a paisagem.

Não é por acaso que ele usa o artifício do diário de terreno do etnógrafo para falar em nome de uma possibilidade: a da linguagem mais descritiva e neutral sobre uma paisagem nos transportar para uma região de opacidade em que aquilo que está em causa é a “auto-colocação” do sujeito que se propôs mapear um mundo que o excede, que o excederá sempre. Toda a transparente adequação da linguagem ao que o cerca é, para ele, a porta de entrada para aquilo que está aquém ou além disso: uma densa viagem de descoberta em nome próprio. É fundamentalmente para isso que ele usa a etnografia. Como Leiris o faria. Quem mais?

Assim nada melhor do que usar um exemplo maior da sua escrita para pensarmos este aspecto. Refiro-me a «Diário (1993-1998)», contido em Lavra. Poesia Reunida 1970/2000. Aí escreve-se logo na primeira entrada:

«1. Moçâmedes // rendido ao torpor de um domingo à tarde e a dois passos de uma rua que tantas vezes recordo, e me remete ao fim da infância, os sons lá fora – crianças que brincam, um carro ou outro que passa, um cão que ladra – transportam-me a um passado que afinal é outro, de adulto já, entre os vinte e cinco e os trinta anos, saído de calulo e acabado de chegar à catumbela, despejado também num quarto de passagem tão alheio como este e da mesma forma alerta porque atento à novidade dos sons, da luz e de cheiros inabituais. e assim entro no sono, projectado de súbito para cima pela sensação de que me observo e meço, e ao fazê-lo me descubro observado e observador, e quem observo é o resultado de tanta combinação fortuita, mas inexorável, que um outro qualquer (fugaz) momento do passado, de sono ou de vigília, teriam feito um outro qualquer de mim. mas a hipótese (que subitamente me iluminava) de poder isolar (identificar e preservar) um eu observador para vários eus obsevados, é ela mesma a despertar-me e assim se anula e me decepciona.»

O que este texto convoca é uma reapreciação de quaisquer tentativas de enquadramento de uma descrição num universo neutral de referências. Essa ausência de neutralidade do observador é anatomizada. O exercício parece uma fenomenologia da percepção à la Merleau-Ponty. Parece. O observador «rendido ao torpor» de uma tarde de domingo, descobre na rua da sua infância a rua da sua idade adulta («entre os vinte e cinco e os trinta anos»), e (sinestesicamente) «alerta» à luz, aos cheiros, aos sons, tal qual como antes, também aí «despejado num quarto de passagem tão alheio como este». Vê-se então a entrar no sono e «projectado de súbito para cima pela sensação de que me observo e meço», e, nesse preciso momento, ocorre uma intensificação da lógica fractal que parece ser afinal a grande lição do fragmento.

O sujeito que se debruça sobre as fontes da percepção e da memória desdobra-se, re-plica-se ad infinitum. Aquele que observa é afinal observado, e por aí fora. A (falsa) estabilidade de um para vários é, aliás, o que conduz a um despertar (aqui) contrafeito e decepcionado, em que o des-dobrar se assume como a única realidade de que deve partir – e de que parte, aliás – a literatura (este é significativamente o primeiro fragmento do notável diário).

Duas coisas pois: (1) O Ruy alucina o texto, para nos mostrar, como diria certeiramente Philip K. Dick (e cito de memória), que a fronteira entre a alucinação e a realidade é outra alucinação; (2) O Ruy escreve numa literatura multi-escalar cuja tradição ele mesmo inventou.

Luís Quintais

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O limite da palavra: anotação sobre «Ludwig W., em 1951» de Manuel António Pina

Posted in Notas by Luís Quintais on Sexta-feira, 15-02-2008

Um nome, uma data. Ludwig Wittgenstein morreu em 1951, justamente. E o poema de Manuel António Pina (publicado pela primeira vez em Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança de 1999, pp. 10-11) devolve-nos o coincidente limite: a morte e a impossibilidade de dizer. O poema é aqui a linguagem da morte, ou a sua alegoria, porque é a linguagem do que não pode ser dito ou tão-só do reconhecimento de que só podemos balbuciar mesmo quando julgamos dizer. Estranha esta coincidência que faz da palavra e da morte o mesmo tema. Injustificável esta exigência a que o poema dá corpo de dizer o que à partida não poderá ser dito nunca. Assumir isso, e porém procurá-lo, como se o poema fosse apenas o vestígio disso. Há uma melancolia extrema na poesia de MAP que tem a ver com o modo como ela nos reenvia para a consciência do seu desamparo. LW é uma figura de eleição para compreendermos isto, porque em LW o drama que se encena é o do limite da palavra: sem ela não há azul, mas nem todo o azul do mundo cabe nela, sem ela não há dor, mas nem toda a dor do mundo cabe nela.

Luís Quintais

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30 anos depois (III)

Posted in Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Quinta-feira, 14-02-2008

finisterraSe as grandes obras são «cadernos de encargos» para os leitores futuros, Finisterra. Paisagem e Povoamento parece ter a capacidade de renovar ciclicamente o conjunto de encargos que disponibiliza, ao sabor das solicitações de novas gerações de leitores (ou de leitores que a história renova). Desse ponto de vista, a obra é uma instância mais daquele princípio geral segundo o qual os clássicos não o são por uma fundação prévia, mas sim porque nós continuamos a lê-los (àqueles que vão sobrevivendo), sempre de maneira diferente e sem nenhuma garantia, aliás, de que continuaremos a fazê-lo.

Finisterra é uma obra justamente famosa pela sofisticada teoria da representação que activa e encena, desdobrando-a, por alíneas, (i) no desenho infantil, (ii) na pirogravura, (iii) na fotografia, (iv) no animatógrafo, (v) na maquete. A infindável plasticidade com que a obra acolhe novas versões e teorias da mimese revisitou-me há dias, quando contemplava a planta, realizada em AutoCAD, de um edifício em 3D. Não me ocorreu naquele momento, nem sequer nos dias seguintes, que o facto específico de se tratar do desenho daquela que será, como se espera, a futura Fundação Carlos de Oliveira, em Febres, Cantanhede, pudesse ter sido determinante na sensação, que me tomou, de estar de novo a mergulhar no interior da vertigem-Finisterra. Porque Carlos de Oliveira viveu naquela casa, que poderia pois ser uma possível versão da casa de Finisterra, uma casa que aliás não consigo de todo imaginar.

O ponto, contudo, é este: ao contemplar, deslumbrado, a planta do edifício em 3D – um edifício mais belo do que qualquer edifício empírico – apercebi-me de que estava a assistir ao triunfo da máquina-Finisterra sobre a pálida e imperfeita realidade fenomenal. Porque a versão da casa em 3D está obviamente contida na historicidade técnico-artística do «programa» de Finisterra. As 3 dimensões são o que vem necessariamente depois da maquete, na sequência, que o romance instaura e explora, da história e do progresso das técnicas de representação. Com a diferença de que enquanto a maquete prolonga a ordem empírica do representado (como também a fotografia), que apenas contrai ou reduz por modelização, as 3D instauram uma solução de continuidade entre essa ordem e a da representação. As 3D são uma versão da realidade (uma antecipação) que em rigor nunca existirá, pois nenhuma realidade poderá estar à altura desta formalização, que procede – ponto decisivo para uma obra como a de Oliveira – por desmaterialização (sou tentado a escrever: por traição).

O espantoso é que esta é uma forma «cheia», ou não fosse tridimensional, e por isso fenomenologicamente esmagadora. Um edifício em 3D não faz prisioneiros: absorve-nos na sua voragem, que é, digamos, a um tempo a da utopia das formas e a dessa forma radical da utopia política moderna que é a arquitectura enquanto sonho visível. É neste sentido que a literatura é a versão imemorial de que dispomos daquilo que as 3D nos deram enfim a ver: um mundo tão ideal quanto formalmente saturado, isto é, belo, senão sublime. E é nesse sentido também que a literatura não pode deixar de ser uma forma de resistência a versões tão alucinatórias da mimese como as 3D, já que a literatura, como a arte em geral, é simultaneamente alucinação e (ou sobretudo) resistência dos materiais.

Poderei ainda sugerir que o leitor alucinado que há em mim lamenta não ter podido nunca visitar os recessos da casa de Finisterra em 3D? Ou, e assim termino, que Finisterra é um romance concebido («programado») e executado em AutoCAD?

Osvaldo Manuel Silvestre

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A verdade do veneno

Posted in Notas, Recensões by Ana Bela Almeida on Quarta-feira, 13-02-2008

docglas.jpgUm médico estende ao amigo uma caixa de cigarros, para que este se sirva, após generoso jantar. O amigo agradece e responde: «Este cigarro tem bom ar. Deve ser bom. Ainda bem, porque eu já começava a ficar preocupado. Sendo médico, tu saberás que os melhores cigarros são os mais venenosos. Estava com medo que me fosses oferecer um daqueles que não prestam.»

O fait divers passaria despercebido, se o médico não fosse o Doutor Glas, personagem cujo nome serve de título a este romance do sueco Hjalmar Söderberg. Meia dúzia de páginas antes, o médico tinha estendido uma caixa a um outro conviva de mesa num café, o clérigo Gregorius, que passado pouco tempo caíra redondo, vítima de enfarte. Em vez de cigarros, Gregorius aceitara tomar o comprimido vivamente recomendado pelo médico como sendo bom para melhorar o mal-estar e as palpitações que se seguem a uma refeição. Era um comprimido de cianeto.

O que pode levar um respeitado médico de família, dedicado à profissão, a induzir um paciente a tomar cianeto e, deste modo, executar um assassínio? Em que circunstâncias pode um médico, aliado da vida, encontrar na morte a resposta mais ética?

Neste romance em forma de diário vamos acompanhando os dilemas do Doutor Glas, na procura de uma verdade moral, como um carrossel, impossível de apreender. Como diz o seu amigo Merkel: «A verdade é como o sol, o seu valor depende inteiramente da distância a que estamos dele.»

Quando da sua publicação em 1905, na Suécia, Doctor Glas causou escândalo por apresentar um médico que defende a eutanásia e o aborto, práticas que apenas não exerce por hipocrisia, mas a questão da morte neste romance estende-se bem para além disto. O Doutor Glas nunca cederá às inúmeras súplicas de pacientes grávidas contra vontade; nem se pode chamar “eutanásia” ao que acontece. Quando Helga Gregorius o procura no consultório para que a ajude a livrar-se das atenções sexuais do clérigo Gregorius, o marido indesejado, e poder assim viver livremente o romance com o seu jovem amante, está longe de imaginar o alcance deste pedido. Está longe de saber que, para este homem solitário e virgem, que se define como um observador da vida dos outros, este será um chamamento à acção e, por assim dizer, à vida. Assistimos ao seu sofrido debate interior, e vemos como num processo próximo do de Raskolnikov de Dostoievski, surgem os argumentos contra e a favor do assassinato, e como toda a lógica o decide a agir. A defesa do amor dos dois jovens constitui, para o Doutor Glas, uma questão de vida ou morte. No entanto, o Doutor Glas, na sua inexperiência, não se apercebe da sua própria distância do sol. Não sabe que com a morte do clérigo, o amante de Helga rapidamente se desembaraçará desta para casar com outra, e que Helga acabará grávida, abandonada, sem nunca mais lhe dirigir palavra. O seu é um erro de cálculo que surge da inexperiência do amor, da distância que o leva a pensar o amor como uma questão de vida ou morte. A verdade é o maior dos venenos, aquele que lhe irá queimar as entranhas: «A pequena quantidade de verdade que te é útil, recebe-la a troco de nada; e se está cheia de mentiras e erros, isto também é para teu bem; não diluída, queimar-te-ia as entranhas.»

Nota: As citações são de tradução minha.

Hjalmar Söderberg (2002), Doctor Glas, Anchor Books Edition, New York, pp.150 Prefácio de Margaret Atwood. Traduzido do sueco para o inglês por Paul Britten Austin

Ana Bela Almeida

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Códigos de (má) conduta

Posted in Polémica by Osvaldo Manuel Silvestre on Quarta-feira, 13-02-2008

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O recente episódio da resenha não-publicada (ou melhor: censurada) de Dóris Graça Dias (DGD) a Rio das Flores, de Miguel Sousa Tavares (MST), no Expresso, é apenas a última ocorrência de um estado de coisas a que ninguém escapa ileso nos média portugueses. Muito brevemente, eis o talvez essencial sobre a questão:

1. Da qualidade ou não da resenha. De acordo com alguns – Henrique Monteiro, desde logo, MST, claro, e ultimamente o próprio Conselho de Redacção do jornal, além de outros opinadores – o texto em causa confunde resenha com ataque pessoal, pelo que não cumpre a função de uma resenha. É um mau espécime do género, digamos, razão pela qual bem andou o solícito director do Expresso ao não permitir a sua publicação em papel (o que já não sucedeu on line: muito haveria a dizer sobre a net como espaço de alívio da má consciência – deve ser esta a versão jornalística da «catarse» aristotélica). Ora, sejamos claros, por que é que a qualidade da resenha é uma falsa questão? Porque (i) lendo o texto, não me consigo aperceber de uma diferença qualitativa notória entre este e todos os outros que DGD vem publicando no Actual. A sua presença regular é aliás um indício evidente do vácuo crítico do Actual desde há demasiado tempo, situação obviamente sufragada por quem dirige o jornal, não se percebendo pois por que razão este texto deva ser considerado especialmente mau; porque (ii) se uma boa resenha é, como pretende o director do jornal em comunicado entretanto publicado, um texto que pratica «o respectivo enquadramento, por exemplo: Onde se passa a acção da obra? Quais as suas personagens? Qual o tempo histórico que abarca?», isto só significa que o director agora auto-promovido a doutrinador da crítica não só desconhece toda a história da crítica moderna, como seguramente consideraria inaptos para a função críticos como Harold Bloom e Eduardo Lourenço (fico-me por aqui) – assim como consideraria muito apto um Vasco Pulido Valente, que num texto tão demolidor quanto criticamente vesgo arrasou o romance de MST precisamente por lhe fazer as perguntas que Monteiro propõe para o novo decálogo da crítica; porque (iii) se a questão é o ataque mais ou menos feroz, não se percebe como foram publicadas algumas resenhas das mais marcantes de um António Guerreiro, por exemplo; porque (iv), enfim, a maior ou menor qualidade do texto, como a sua natureza supostamente pouco ética, não afecta o ponto essencial, a saber, que houve um efectivo acto de censura. Do ponto de vista deontológico, ter-se permitido que MST lesse o texto antes da sua putativa publicação é mesmo algo que dispensa comentário.
[continua aqui >>>]

Osvaldo Manuel Silvestre

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«Até se lhe embrulhava o estômago»

Posted in Crítica, Notas by Rui Bebiano on Terça-feira, 12-02-2008

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Em Os Amores de Salazar, Felícia Cabrita procurou desenhar para o austero ditador o reverso do familiar perfil fradesco. Uma «vida de D. Juan» feita de indícios, de suposições, de artifícios de imaginação, e, claro, também de uma dose de verdade que se perde na efabulação. Apresentado como remate de uma investigação de raiz, o livro mereceu mesmo, de Diogo Freitas do Amaral, um prefácio elogioso que o fez passar por obra reservada aos «historiadores imparciais» do futuro. E transformou-se rapidamente num êxito editorial.

Apresentado como resultado de década e meia de experiência jornalística vivida no contacto directo da autora com as parcelas das antigas colónias portuguesas, Massacres em África segue uma estratégia de construção aparentemente distinta. Mas cujo resultado prático acaba por se lhe assemelhar.

O livro aproxima alguns dos momentos mais sangrentos da história recente da África que se entende em português. Desde os massacres de Batepá, São Tomé, e da chacina da UPA, em 1961, ao de Wiriyamu, Moçambique, e aqueles que se seguiram ao golpe angolano de 1978, incluindo-se ainda informações sobre a morte violenta e inglória de Jonas Savimbi. Felícia Cabrita refere-os recorrendo a algum material de arquivo e a um conjunto de entrevistas, concedidas por testemunhas directas, sobreviventes e também executantes. A estes se refere quase sempre, aliás, com alguma compreensão, associando-os a actos que circunstâncias passadas determinaram mas que, de alguma forma, o tempo entretanto decorrido libertaria da responsabilidade histórica.

A escrita é fluente mas fácil, reconstruindo sem aparentes inibições os espaços sobre os quais a jornalista não possui informações. A busca do efeito melódico, a procura do impacto imediato da frase em prejuízo da sua beleza ou do seu rigor, definem um tom que prolonga o do livro sobre o Salazar «parte-corações». E o testemunho oral, veículo essencial para a construção de uma obra desta natureza que materializa a parte mais substancial do trabalho apresentado, resulta insuficiente, pois permanece imperfeitamente identificado, localizado e datado. Confrontado com estas falhas, o leitor vê-se então forçado a confiar plenamente na versão que lhe é contada. Coisa que, como é sabido, só por si não chega para aquilatar do valor documental de um determinado texto. Muito menos de um texto como este, que se reporta a uma das áreas mais sensíveis da memória e do rastro do nosso passado colonial

Pena é que a maior parte das pessoas que os irão ler julgará este livro, tal como aconteceu com o anterior, como um livro de história. Que de facto o não é: trata-se de uma compilação de reportagens aligeiradas sobre um tema que merecia maiores cuidados, inclusive do ponto de vista jornalístico. Talvez resulte razoavelmente como guião de um documentário concebido para a televisão ou para circular em DVD, e para ver apenas uma vez. Mas não como um livro para ficar.

Felícia Cabrita (2008), Massacres em África. Lisboa: A Esfera dos Livros. 346 pp. [ISBN: 978-989-626-089-7]

Rui Bebiano

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Sessão de 11 de Fevereiro

Posted in Vária by OLAMblogue on Segunda-feira, 11-02-2008

Algumas imagens da sessão de 11 de Fevereiro de Os Livros Ardem Mal, com Manuel António Pina. Aqui.

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Notas sobre a obra infantil de Manuel António Pina (I)

Posted in Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Segunda-feira, 11-02-2008

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Não é excessivo afirmar que com a publicação, em finais de 1973, de O País das Pessoas de Pernas para o Ar, de Manuel António Pina (MAP), nasce uma certa versão da literatura infantil portuguesa. É difícil qualificar tal versão, tanto mais que a estranheza histórica e estética da ocorrência reside justamente na sensação que se apodera do leitor – que, no meu caso, o foi com um recuo temporal de cerca de duas décadas – de estar perante um objecto que simultaneamente anuncia a modernidade da nossa literatura infantil e o seu inexorável passamento na data já tardia de 1973 (e lembremos que MAP editará, passados poucos meses, a sua estreia poética em livro, estreia essa colocada explicitamente sob o signo do tardio: Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde).

Convenhamos que também para a nossa literatura infantil era já um pouco tarde. É certo que houvera o «período áureo» dos anos 30, segundo a recente reconstrução historiográfica. E depois, sempre em progressão descontínua, a partir de 1950, os nomes enfim robustos de Sophia, Matilde Rosa Araújo e Luísa Ducla Soares, entre outros menores. Não obsta a que até aí a nossa produção infantil, com as excepções que permitem narrativizar a sua história, viveu ou de «literatura conquistada» ao património «adulto» ou da recodificação infantil do romanceiro – as duas estratégias historicamente reconhecíveis no percurso desta literatura emergente.

Nada disso, porém, preparava o leitor para o livro que Pina edita em 1973 e que, a mais de um título, é uma entrada por efracção no ecossistema de uma literatura infantil que não dispunha de nenhum tipo de contexto para esse livro. O livro de Pina distribui-se simetricamente por dois grupos de histórias: o primeiro, em torno de uma menina de nome Sara que, na primeira história, tem um passarinho chamado Fausto que vai conhecer mundo e se apercebe de que há locais em que as pessoas andam de pernas para o ar; e que, na segunda, tem um peixinho vermelho que, quando morre, vai «alimentar» uma flor vermelha plantada por Sara no local onde o peixinho está enterrado, flor essa a que a menina põe o nome de Alice Lidell. O segundo grupo de histórias é um dos grandes momentos da tradição blasfema da literatura portuguesa no século XX, tradição lançada pelo poema VIII do «Guardador de Rebanhos», de Caeiro, que MAP explicitamente cita na primeira história, «O menino Jesus não quer ser Deus». «O bolo e o menino Jesus», enfim, é uma brevíssima jóia blasfema, explorando, com requintes de crueldade, a dimensão antropofágica da eucaristia.

Digamos, então, que Pina entra na nossa literatura infantil por uma porta que ela não possuía e que, em rigor, são muitas e dão para muitas mais (muitas delas não abertas até hoje). A porta é a grande tradição activada por Lewis Carroll, e abri-la significa fechar a tradição local da literatura infantil portuguesa, a que o livro de Pina, e os livros seus posteriores, votam uma manifesta indiferença. Poderá tal indiferença parecer sobranceria, no caso de Sophia, mas a verdade é que onde esta se preocupava em criar, palavra a palavra, um edifício da ilusão, MAP parece partir do princípio de que o valor facial dessa ilusão é, em 1973, já muito reduzido. E que a ilusão maior é a que consiste em supor que é ainda possível continuar a edificar palácios encantados, mesmo (ou sobretudo) em contexto infantil. Digamos que é este o ponto em que duas concepções da criança, da literatura para ela e da educação da imaginação se desencontram. Pina vem depois e vem tarde, mas isso não parece ser aflitivo, tanto mais que, se aferida pela obra de Carroll (e de Milne, autor que MAP progressivamente valorizará), toda a literatura infantil pós-Carroll é tardia. E é por não ter entendido isto, ou melhor, por não dispor das condições sócio-históricas que lhe permitissem entender isto, que a literatura infantil portuguesa até MAP vive num tempo fora do tempo da literatura infantil aferida pelo gigante Carroll.

Pina propõe antes Carroll & Caeiro, i.e., duas formas de heresia. Mas também duas formas de colocar o problema maior da literatura infantil e da literatura infantil de MAP: o facto de o infante ser e não ser o leitor natural destes textos. E talvez fosse melhor reformular a questão deste modo: o que esta dupla ascendência do livro seminal de MAP implica é a noção de que não há um leitor natural, assim como não há um contrato de leitura natural, inscrito nestes textos (os de Carroll & Caeiro e os de MAP). Como, podíamos dizer, em nenhuns. Por outras palavras, só há literatura. Ou, se se preferir, e muito à maneira de Pina (o «infantil» e o poeta demasiado adulto), só há leitores. Grande literatura para grandes leitores, tratando-se de O País das Pessoas de Pernas para o Ar.

Osvaldo Manuel Silvestre

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30 anos depois (II)

Posted in Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Domingo, 10-02-2008

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Carlos de Oliveira e Fernando Lopes

Se me é permitida a derivação, diria que a degradação desta «ideia» de literatura, que à mesma época, mais precisamente em 1979, Herberto Helder tematizaria notavelmente em Photomaton & Vox, é patente no devir insustentável da «grande recusa» do próprio Helder: ao longo destes 30 anos, o autor tornou-se tão dinossáurico na paisagem quanto Finisterra ou Photomaton & Vox. E não há autor ou crítico, com a ajuda de figuras sempre disponíveis para confundir o essencial com o acessório como o falecido Luiz Pacheco, que não venha denunciar a suposta «pose» de quem opta pela negação. Aquele que recusa tornou-se uma figura do desamparo – e não há cínico que, a seu respeito, não recorra ao arsenal da hermenêutica da suspeita, a qual, como sabemos, tem o dom de nos tornar subitamente inteligentes.

O que tivemos depois de Finisterra (e Photomaton & Vox) esclarece-nos sobre o estado moribundo dessa ideia de literatura que venho referindo: a experimentação rentabilizada e legitimada pela narratologia em certas vertentes pós-modernas, que incluem Saramago; a substituição pressurosa do enigma da linguagem e da sua resistência pela evidência da representação, da linguagem e do sentido – e, inevitavelmente, por uma leitura errónea daquilo a que Barthes (de forma algo falhada, aliás) chamou «o prazer do texto»; a substituição da ideia de formação e conquista de experiência pela de carreira literária e de ostentação de uma vasta teoria de mais-valias da persona autoral.

Noto apenas que, na sua presciência de máquina (demoníaca) do mundo, o último romance de Carlos de Oliveira aborda justamente a impossibilidade de negação num mundo desprovido de qualquer dialéctica histórica. No último parágrafo do romance, a casa, até aí defendida por um halo, é enfim absorvida pela massa gelatinosa da gisandra. O princípio da indiferenciação triunfa e, com ele, acedemos ao neutro ou, e eu prefiro esta alegoria, à pós-história em que cada vez mais vivemos. Um marxista dirá que é este o presente envenenado que a história oferece ao capital, já que o condena à implosão mais cedo ou mais tarde; uma criatura mais agnóstica dirá apenas que as figurações seculares de deus – e, acima de todas, essa figuração secular de deus que se chamou Literatura – se tornaram, também elas, abscônditas.

Osvaldo Manuel Silvestre

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O pesadelo da história

Posted in Crítica by Luís Quintais on Domingo, 10-02-2008

Leni RiefenstahlHistory is a nightmare from which I am trying to awake.
James Joyce

Leni: a vida e obra de Leni Riefenstahl de Steven Bach é uma biografia que nos coloca perante um problema provavelmente insolúvel: em que medida somos ou não somos sujeitos da história, ou, de outro modo, em que medida a história – com os seus poderes de tracção colectiva e de sedimentação simbólica – pode ser flanqueada pelas percepções e acções daqueles que a fazem?

O drama de Leni Riefenstahl pode ser lido à luz disto mesmo: qual o lugar do sujeito na história, em que medida as prerrogativas morais e políticas são ou não apenas uma questão de sorte?

Bach parece comtemplar os dois pratos da balança para nos mostrar fundamentalmente uma personagem que, insensível aos desígnios da história, não deixou de a procurar reinvestir de alguma ficções estratégicas, num trabalho de rasura que nos parece, hoje, aviltante para as verdadeiras vítimas: os milhões que pereceram sob a violência racial sem nome – nem perdão – do nacional-socialismo.

“Fascismo fascinante”, chamou Susan Sontag ao trabalho visual de Leni Riefensthal (cit. Bach, p. 394). Uma parte considerável do poder intoxicante do Reich deve-se à eficácia com que Leni Riefensthal ergueu, em estreita colaboração com Goebbels e Speer, a ficção visual que haveria de alimentar o Estado nazi. A ambição estética e estetizante de Riefensthal não lhe admitia compromissos com quaisquer escrúpulos ou considerações de outra índole. O que Bach – tal como Sontag antes dele – nos devolve é o risco que se esconde no «brilho» encantatório de uma arte que se furta a exigências contextuais, e que apela apenas a uma noção de beleza desirmanada da acção.

Riefensthal passou uma parte considerável da sua vida no pós-guerra a tentar libertar-se do pesadelo da história, porque a percepção de que se tratava de um pesadelo era afinal – e para muitos alemães no pós-guerra assim foi – concomitante ao seu fim. Bach mostra-nos que o interesse da história de Leni Riefensthal está na revisitação impossível de um passado, na procura patética de uma “desnazificação” que nunca aconteceu verdadeiramente, e que não poderia acontecer.

A Leni de Steven Bach poderia tomar como suas as palavras de Stephen Dedalus e dizer, «a história é um pesadelo do qual estou a tentar acordar». Mas talvez não seja possível acordar do pesadelo da história, parece querer dizer Bach, por seu turno.

Nota: a tradução, selecção de notas, e glossário é de Oscar Mascarenhas. O trabalho é simplesmente desastroso. Em certos momentos, a tradução é quase ilegível. Dois exemplos menores: como é possível traduzir «campfires» por «fogos de campo» (p.94) ou «mainstream» por «corrente principal» (p.81). Um outro aspecto: porque é que os leitores portugueses são tratados como uns ignorantes, ao ponto de se amputar o texto de muitas das notas do autor (que nos permitiriam ter acesso à suas fontes), e de incluir outras que são totalmente impertinentes? Por exemplo, a uma referência do autor a adaptações cinematográficas de Moby Dick, o tradutor faz incluir a seguinte nota de pé-de-página: «Baseado no romance homónimo de Herman Melville, de 1851, centrado no ódio sem tréguas do Capitão Ahab àquela baleia-branca» (p.105). E isto são exemplos menores, volto a realçar. A coisa é duplamente grave porque o livro foi objecto de revisão por Silvina Sousa. A edição portuguesa só tem uma vantagem: um lúcido prefácio de João Lopes.

Steven Bach (2007), Leni: a vida e obra de Leni-Riefensthal. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 468 pp. [ISBN: 978-0-375-40400-9]

Luís Quintais

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A transição anunciada

Posted in Recensões by Miguel Cardina on Domingo, 10-02-2008

cuba.gif«A doença de Fidel anuncia uma outra época». É com esta frase que Janette Habel conclui o ensaio que abre Cuba: a transição, uma pequena colectânea de textos, acabada de editar pela Dinossauro, sobre o presente e o futuro da ilha caribenha. Provenientes da área da esquerda socialista radical, os autores afirmam a sua fidelidade de fundo ao projecto revolucionário cubano, ao mesmo tempo que apontam os problemas actuais da pequena ilha rebelde, situada a apenas 200 km do eterno inimigo yankee.

Num exercício pouco comum nesta área política, todos eles se afastam, de uma maneira ou de outra, da retórica desculpabilizadora que elege o bloqueio dos EUA como causa de todos os males. Narciso Isa Conde nomeia a corrupção – resultado da influência do modelo de burocracia de Estado proveniente do socialismo real – como o elemento mais corrosivo da actual sociedade cubana; James Petras e Robin Eastman-Abaya falam das distorções sociais provocadas pelo turismo, verdadeiro substituto da monocultura do açúcar e alavanca da recuperação económica dos anos noventa; Guillermo Almeyra aponta a escassa produtividade agrícola, o «sentimento de asfixia» provocado pela desinformação e pelo controlo oficial da comunicação, o «péssimo transporte» e o estado degradado das habitações.

Recusando a perspectiva de adopção do modelo democrático-liberal na ilha, os autores não deixam, ainda que com diferente intensidade, de contestar alguns aspectos da relação do regime com as liberdades individuais. Como acentua Janette Habel, a redefinição de um novo paradigma institucional terá necessariamente de articular as conquistas da revolução com os confortos materiais e com uma maior abertura cultural exigidas pelos cubanos. Neste país onde Fidel exerce(u) o poder exclusivo durante perto de meio século, e que sofre por isso de um «síndroma do patriarca», este é talvez um feliz destino improvável.

Aavv (2008), Cuba: a transição. Tradução de Ana Barradas. Lisboa: Edições Dinossauro. 127 pp. [ISBN: 978-972-8165-548-2]

Miguel Cardina

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Teoria dos complexos

Posted in Crítica by Rui Bebiano on Domingo, 10-02-2008

Miguel RealA Morte de Portugal, de Miguel Real (MR), que a Campo das Letras acaba de editar, estabelece, desde a primeira linha, uma tentativa de diálogo com algumas das obras que têm tentado decifrar, ou exprimir, a identidade do «homem português». Os seus interlocutores são rapidamente nomeados: o Teixeira de Pascoais da Arte de Ser Português (1915), Agostinho da Silva na Educação de Portugal (1970), Eduardo Lourenço em O Labirinto da Saudade (1978), o padre Manuel Antunes do Repensar Portugal (1980), Boaventura de Sousa Santos de Pela Mão de Alice (1994), José Gil em Portugal Hoje. O Medo de Existir (2004), e Guilherme d’Oliveira Martins com o recente Portugal. Identidade e Diferença (2007). Mas são apresentados apenas como edifícios de uma paisagem panorâmica sobre a qual Real constrói a sua própria interpretação.

Mostrando uma certa tendência para a tipificação – que mantém ao longo de todo o livro – MR, «na linha de Eduardo Lourenço», projecta os quatro grandes «complexos culturais» através dos quais Portugal «se foi concebendo a si próprio ao longo de 800 anos de História». O primeiro, o complexo viriatino, terá emergido no século XVI «através da imagem de Viriato, herói impoluto, puro, virtuoso», figuração arquetípica de um Portugal que estava a acabar mas que deveria permanecer na memória das glórias passadas. O segundo configurará um complexo vieirino: «recusando testemunhar a nossa real insignificância, dourando-nos o futuro com o regresso anunciado às glórias do passado, agora sob o divino nome de Quinto Império», o padre António Vieira teria projectado uma atitude «que nos determina a desejarmos mais do que podem as forças». O terceiro complexo, o pombalino, conteria uma reacção, centrada na intervenção do Marquês de Pombal, ao Portugal esgotado pelo Estado «gordo, gordérrimo» de D. João V, pela intolerância inquisitorial, pela dependência económica da Inglaterra, propondo a salvação com «um banho de Europa» capaz de alterar drasticamente o perfil das elites. Por fim, como resultado de tantos desenganos e adiamentos, teria emergido um quarto complexo, canibalista, materializado na permanência de uma atitude antropofágica capaz de levar cada português a sustentar-se, para assegurar a sua sobrevivência, do corpo do Outro, transformado em adversário. Ainda que, no limite, precise, para o conseguir, de tornar-se familiar da inquisição, informador da polícia política ou denunciador perante o superior hierárquico.

Terá sido a combinação destes quatro complexos a desenhar o Portugal do presente, «moribundo, submerso pela avalanche de costumes liberais europeus e americanos, totalmente descristianizados e desumanizados». E é contra este Portugal menor que MR manifestamente constrói e procura fundamentar a sua argumentação. Destinada, como é comum neste género, a colocar o acento tónico no papel da «cultura», do «espírito», do «sentido de transcendência» que deverá preceder um progresso tecnológico que é apresentado como essência do mal. Principalmente quando tomado como totem sagrado diante do qual a vida social e a prática política se devem inquestionavelmente prostrar.

Todo este livro parece alimentar-se de uma fobia por um presente que se afigura imposto. Pois, se «nascemos assim, líricos e sanguíneos, e mais do que voltados para a terra e para o mar, voltados para o Outro, idealizando-o, espiritualizando-o liricamente, vendo neste o reflexo da santa imagem de Deus», porque chegámos a este ponto? MR não sabe, e nem poderia saber, se o regresso a esse caminho original está marcado no futuro que nos é reservado. Mas que o deseja, parece-me bastante claro.

Tem feito falta em Portugal, particularmente nestes tempos de orçamentólogos e engenheiros que gerem a república fixados no deve e no haver do prazo curto, referenciando tudo aquilo que não seja «pensamento» técnico como um obstáculo ao desenvolvimento sacrossanto dessas «economias» das quais tão jocosamente falava Eça, uma reflexão sustentada sobre o nosso destino comum. Da qual possamos discordar nos termos e nos modos – coisa que de facto se passou na minha leitura deste livro -, mas que não transforma o passado em mero bibelô nem se recusa a olhar mais longe que o virar da esquina. Este livro de Miguel Real leva-nos, pelo menos, a vislumbrar essa possibilidade.

Miguel Real (2008), A Morte de Portugal. Porto: Campo das Letras. 126 pp. [ISBN: 978-989-625-224-3]

Rui Bebiano

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30 anos depois (I)

Posted in Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Domingo, 10-02-2008

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© Miguel Silva

O jardim familiar (primeira fase do abandono): montões informes de silvedo, buxo descabelado, urtigas, flores selvagens. As palmeiras de pouco porte incharam tanto que fazem pensar em anões velhos, doentes, com as suas cabeleiras, as suas folhoas emaranhadas, caindo em arco até ao chão.

Começa assim. E depois, uma frase que introduz um daqueles «cliques», entre a laceração e a deflagração, que definem a obra enquanto máquina alucinatória:

Sentado num osso de baleia; para ser mais exacto, na secção média da espinha dorsal duma baleia: cinquenta e um centímetros de diâmetro, trinta e três de altura: duas vértebras abrem-se como as pás (as asas) duma hélice; bastante afastadas, permitem que os cotovelos se apoiem nelas: pondo o caderno em cima dos joelhos, consegue desenhar (não tarda muito, a chuva de verão vai obrigá-lo a entrar em casa). Osso de baleia, textura de madeira pobre, exposta à água, à erosão, sem apodrecer: a luz, quando bate de frente nos veios foscos, desprende uma poalha cor de cinza, quase a reacender-se. A densidade calcária decresce tanto que podem ambos flutuar (a criança e o osso de baleia) sobre murgos biliosos, caules de gisandra, líquenes, doenças vagarosas.

Lá para finais de Outubro, inícios de Novembro do corrente ano passarão 30 anos sobre a publicação de Finisterra. Paisagem e Povoamento, de Carlos de Oliveira. É espantoso como, na perspectiva que estes 30 anos aferidos por Finisterra nos oferecem, uma certa «ideia» de literatura não cessou de se degradar. A «ideia» a que Finisterra era fiel, como é óbvio, mas que seguramente não era, à data, atribuível apenas ao seu autor. Uma ideia de literatura em que o texto era uma forma de colocar em xeque a reprodução do real (sígnico, social, político), activando toda uma série de estratégias de crítica da representação – mesmo se, em meu entender, Oliveira nunca convictamente tenha passado para o lado de lá da crítica da representação, como alguns supuseram, um tanto apressadamente. Mas uma ideia de literatura ainda em que a escrita suscita e procura lentidão (e daí a proliferação dos parêntesis, por exemplo), morosidade analítica e, necessariamente, lectural – formas de adensar o enigma com que a literatura na modernidade responde ao enigma maior da linguagem e da representação, esse enigma que Finisterra dá a ver, em toda a sua estranheza e patologia, no seu primeiro parágrafo. Finalmente, uma «ideia» de literatura que é uma ideia de luta pelo sentido, ou pelas suas pré-condições, como algo que não é nunca dado mas, muito conjecturalmente, conquistado. É neste ponto que esta ideia de literatura se cruza com uma ideia de formação e conquista de experiência, o que não vai sem uma epochê das condições habituais de existência, isto é, sem uma dose assinalável de trabalho negativo e resistência àquilo a que em tempos mais históricos se chamou reificação.

Osvaldo Manuel Silvestre

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O Menino de sua Mãe

Posted in Comentários by A. Apolinário Lourenço on Sábado, 09-02-2008

pessoa9Devo começar por dizer que tenho apreço pelo trabalho da equipa que tem concretizado a edição das Obras de Fernando Pessoa, da Assírio & Alvim. Estranho, no entanto, o critério puramente cronológico adoptado para aquilo que Fernando Pessoa chamava nos seus planos editoriais o cancioneiro, ou seja, os poemas assinados pelo ortónimo e que, ao contrário da Mensagem, não constituíam um volume autónomo. É que esse critério coloca algumas obras-primas da poesia portuguesa junto a fragmentos informes, que nenhum autor se permitiria publicar.

Mas o critério cronológico também é perigoso por outros motivos. Há algum tempo atrás, necessitando saber a data precisa do famoso poema «Iniciação», procurei-o no índice do terceiro e último volume, e encontrei dois poemas com o mesmo título, respectivamente nas páginas 86-87 e 387. Abri ambas as páginas para saber qual era a «minha» «Iniciação» e descubro que se trata do mesmo poema. Na página 87 está datado de 23-5-1932; na página 387, de «ante Maio de 1935». Compreende-se o equívoco: o poema foi publicado pela revista Presença em Maio de 1935, e as organizadoras dos volumes não se aperceberam de que era o mesmo poema encontrado no espólio com uma data precisa e bastante anterior à da sua publicação. Ficou, portanto, duplicado.

Por um acaso fatídico, necessitei também de procurar o poema «Pauis» e, é claro, fui encontrá-lo no primeiro volume (1902-1917), datado de Fevereiro de 1914. Não estava duplicado, mas encontrei-o separado do seu «gémeo falso», «Ó sino da minha aldeia», ao qual Pessoa o associou na revista A Renascença (de facto publicada em Fevereiro de 14), sob o título genérico de «Impressões do Crepúsculo», colocando sob os poemas a data de 29-Março-1913. «Pauis» não pode evidentemente ter sido escrito em 1914, porque Sá-Carneiro já o comenta numa carta de 6 de Maio de 1913. Procurei afanosamente o poema dissociado por todo o primeiro volume, mas não encontrei. Acabei por localizá-lo no volume do meio (1918-1930), com um título, «O Aldeão», colocado entre parêntesis rectos e datado de Dezembro de 1924. É que o poema fora de novo publicado na Athena nessa data, mas sem título.

Malhas que a cronologia tece…

A. Apolinário Lourenço

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Ano dois

Posted in Vária by OLAMblogue on Quarta-feira, 06-02-2008

E agora tem sido assim. (um, dois cliques para ampliar uma, duas vezes)

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Desenho gráfico de Joana Monteiro

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Começou assim

Posted in Vária by OLAMblogue on Segunda-feira, 04-02-2008

(um clique para ampliar)

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Desenho gráfico de Joana Monteiro

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Até já

Posted in Oficina by OLAMblogue on Sexta-feira, 01-02-2008

No início chamou-se Escaparate. Mensário da Actualidade Editorial. Durou de Novembro de 2006 a Julho de 2007 e, como título e subtítulo indicam, tratava-se de tentar convencer algumas pessoas a deslocarem-se, na primeira segunda-feira de cada mês, pelas 18h, ao Teatro Académico Gil Vicente (TAGV), em Coimbra, para ouvirem falar de livros. Decidiu-se ainda convidar pessoas da cidade, uma de cada vez, a falar, no primeiro quarto de hora, de um livro especialmente significativo para elas. Nunca conseguimos que o vereador da cultura se dispusesse a participar, mas convenhamos que poucas agendas haverá tão sobrecarregadas como a sua.

As pessoas apareciam e desapareciam, o Escaparate manteve-se estoicamente mas, chegada ao fim «a primeira época», como nas séries de TV, decidiu-se mudar. Não de pessoal, que permanece: António Apolinário Lourenço, Luís Quintais, Osvaldo Manuel Silvestre, Rui Bebiano. Mudou-se sim o nome para Os Livros Ardem Mal, «roubado» com alguma falta de vergonha ao galego Manuel Rivas, mas manteve-se o propósito do Mensário da Actualidade Editorial. Reforçou-se a ligação às editoras, solicitando expressamente livros para apresentação pública e a organização passou a ser repartida pelo TAGV e pelo Centro de Literatura Portuguesa, da Faculdade de Letras de Coimbra. E mudou-se o formato, passando a convidar gente ligada ao livro: autores, sobretudo, estudiosos, jornalistas. Meia hora de mensário de actualidade editorial, uma hora de conversa com um convidado, retransmitida depois na Rádio da Universidade de Coimbra.

A conversa começou com Fernanda Câncio e continuou com Adolfo Luxúria Canibal, Frederico Lourenço e Joaquim Furtado. As pessoas começaram a aparecer em maior número… No próximo dia 11 será a vez de Manuel António Pina.

E agora, também o blogue. Não trataremos aqui 1) do governo Sócrates; 2) dos desvarios iraquianos de Bush; 3) de Carla Bruni; 4) de Pinto da Costa; 5) da lei anti-tabagista; 6) dos impostos que nos esmagam; 7) do TGV e da ex-Ota; 8) de Mr. Berardo; 9) de restaurantes e hotéis de charme; 10) dos crimes de pedofilia na net. Mas não juramos que não venhamos a tratar de livros que tratem de tudo isto e mais ainda. Porque este é e será um blogue sobre livros e coisas correlatas: papéis, cartolinas, leitoras e leitores, livrarias, sofás, mochilas, enfim, o estado do nosso mundo.

Aqui estaremos, os 4 das sessões no TAGV com alguns reforços, a bem da divisão social do trabalho e do tempo. A seu tempo os apresentaremos. Até já.

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