Os Livros Ardem Mal

Da leitura como perdição

Posted in Cinema, Livros, Vária by Sandra Guerreiro Dias on Sábado, 21-02-2009

Rezza

O caminho para a perdição pode ser um qualquer que queiramos, se a isso nos for dada escolha. Pode ser o que seguimos a torto ou a direito, que no fim não sabemos nunca onde vamos dar. Em Caminho para Perdição, de Sam Mendes, são muitos os caminhos que se cruzam sem o fim que seja o deles, nem o de quem os escolheu percorrer. Ao contrário de que sempre assumimos como risível dado adquirido e risível, e que o é apenas de vez em quando, um caminho pode ser isso mesmo que é ou tão somente o caminho que há e mais nenhum a caminho de nada que seja o suficiente do que é em si, ou um outro ainda, que se percorre sem se percorrer para se dizer do lugar das coisas e do que elas aparentemente são sem o serem e sendo-o ante o que quisermos que seja. Em Caminho para Perdição, ensaia-se o que em perspectiva, esta que em cima se adianta, carece de formulação explícita no filme para que assim se simule e se afirme enquanto manobra de actuação e intervenção. Há por isso, e para que se efective essa possibilidade de denúncia do que é para então se ser de um outro modo, dois caminhos que se percorrem ao contrário e que se completam do fim para o princípio, no princípio que com o fim é o que começa, no fim quando percebemos que a perdição, no que é de génese e conceito variável, ou sempre o mesmo, poderá ser o princípio de todas as coisas, independentemente do que queiramos: salvar-nos ou perder-nos.

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«Um Lugar Imenso, talvez» *

Posted in Livros, Notícias by Sandra Guerreiro Dias on Quarta-feira, 28-01-2009

Julian Duran

«Cinquenta por cento dos jovens deste país que estão dentro do sistema de ensino, com 15 anos não compreendem uma frase familiar. É dramático.» (António Prole)

«Correctamente, devemos ler pelo poder. Um homem que lê é um homem intensamente vivo. O livro deve ser uma bola de luz nas nossas mãos.» (Ezra Pound)

Porque ler é existir, conhecer e participar, promover a reflexão e o debate acerca do lugar da leitura nas sociedades e no mundo foi o mote lançado pelo Congresso Internacional de Promoção da Leitura que teve lugar nos passados dias 22 e 23 na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Organizado pela Casa da Leitura, organismo afecto àquela fundação criado há três anos com o objectivo de difundir a literatura infantil e promover a leitura, o encontro Formar Leitores para Ler o Mundo contou com a participação de especialistas de diversas áreas da leitura, da literatura, e da literatura para a infância, vindos do Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Espanha, França, Brasil e Portugal. Entre eles, Teresa Colomer, Michel Fayol, Peter Hunt e Lawrence Sipe. Estruturado a partir de três grandes painéis temáticos – a saber, Literatura para a Infância e a Formação de Leitores, Estratégias de Leitura e Compreensão Leitora e Projectos de Promoção da Leitura -, a discussão entre os diversos especialistas assumiu uma perspectiva que pretendeu ser simultaneamente analítica e crítica, prognóstica e indicativa das múltiplas e complexas questões levantadas a partir de cada uma das áreas em relevo. Entre elas, o papel e a formação dos mediadores de leitura, o analfabetismo funcional, o novo conceito de alfabetização e a compreensão leitora, as competências de leitura e a leitura enquanto acto de cidadania.

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Ou a palavra não corta o silêncio

Posted in Recensões by Sandra Guerreiro Dias on Segunda-feira, 01-12-2008

Catherine Cameron

«Também eu queria escrever um poema maior que o mundo, /escrevê-lo com o mais verbal e primeiro de mim mesmo, / o mais irrefutável» (p.182)

Se A Faca que não Corta o Fogo não é o «poema maior que o mundo», (di-lo o autor, e, dizemos nós: se então o fosse, o que se inventava depois?) é porque somente o mesmo o arroga enquanto «abrupto termo dito último pesado poema do mundo» (p.207). Tê-lo-á escrito Herberto, poeta ou pessoa ou os dois, assomado pelo dom vertiginoso da língua que diz possuir e que define como uma espécie de «linha sísmica atravessando a montagem das músicas» (p.169). Não se coíbe ainda assim de lhe instar, à língua, a portuguesa que é «tudo por começar (…) com mais respiração» (p.183), a imanada prece que diz assim:

«Toca-me lábil, /língua, /alerta, silvestre, tão como vais morrer, /com menos favor, menos condição, menos poder que todos os fenómenos da língua e do mundo» (p.182)

Não sendo tudo ou esse tudo a que se propõe o escritor enquanto «organismo internamente coerente e bastante», como dizia de si, em 1964, numa das raríssimas entrevistas por si concedidas, impulsão ele próprio dos quase proféticos diálogos entre o tempo, as palavras, o mundo, as palavras e a morte e as palavras outra vez por fim, é sobre tudo e a dizer tudo que Herberto se diz, de si próprio e do seu lugar de «homem [que] vive uma profunda eternidade que se fecha sobre ele» (p.11), extinguindo-se, quase. É portanto no cometimento de dizer tudo que o autor mete «a mão inteira pelo fogo dentro» (p.179) e se subtrai ao que diz porque então não sobra nada de si que se possa dizer mais. Assim como uma equação em que os contrários em excesso, não podendo mais estar um ante a presença do outro, para se salvarem, se anulam. E portanto outra vez restamos nós, que ainda aqui estamos e que sempre ficamos porque é perante «a matéria radiosa de que é feito o mundo» (p.100) que estamos. E só por estarmos sozinhos, a sós com o poema, e porque «o caos nunca impediu nada, foi sempre um alimento inebriante.» (p.106), nos atrevemos a estar e a falar. Mas então, o que diremos? Se é do quase tudo que aqui se trata, ou assumimos que Herberto diz quase tudo e dizemos que ele próprio diz quase tudo ou não dizemos nada porque ele já disse quase tudo, e é por isso que nada quase sobra por dizer. Isso e o estarmos perante aquilo que Eduardo Lourenço chama de «catedral irreal» onde se suspende o mundo, suspensão onde forçosamente nos incluímos:

«A crítica é, por sua vez, o discurso segundo, através do qual, sem jamais poder perder de vista nem alcançar esse tempo-obra, fonte dele, nós inventamos enquanto leitores atentos, os caminhos sem cessar bifurcantes que nos dão a ilusão de que a obra é nossa substância, e como tal, a ‘compreendemos’ no momento exacto em que através dela nós acedemos ao mais luminoso obscurecimento da nossa relação com o mundo. O verdadeiro crítico é aquele que não compreende a obra e antevê (um pouco) as razões por que não pode compreendê-la.»

Resignemo-nos, portanto. Tem razão o autor de O Canto do Signo quando alerta para o facto da verdade da obra permanecer em si mesma, pelo que, mais do que vã, é paradoxal a invectiva que cabe ao crítico que a procura desvendar. Porque sendo o seu desígnio o de a ansiar, como ânsia imperiosa, quase absoluta, saberá à partida que o lugar dessa «catedral irreal» onde nos suspendemos é precisamente «No meio, / Onde se morre do silêncio central / da terra.» (p.87), já aqui Herberto novamente. E nesse outro também onde estão as palavras «que requerem uma pausa e silêncio.» (p.37) que é onde estamos quando lemos A Faca que Não Corta o Fogo, portanto, ermos, quietos, parados, ante as palavras que nos decifram e que por nos decifrarem tanto e tão demasiado não deixam lugar para mais nenhuma.

Herberto Helder (2008). A Faca Não Corta o Fogo. Lisboa: Assírio e Alvim, 207 pp. [ISBN: 978 – 972 – 37 – 1371 – 8]

Sandra Guerreiro Dias

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«dançando sobre a arquitectura» *

Posted in Vária by Sandra Guerreiro Dias on Sábado, 11-10-2008

Simon Reynolds nasceu em Londres. É autor de diversos livros sobre música e colaborou com publicações como The New York Times, Village Voice, Spin, The Guardian, Rolling Stone, The Wire, Uncut, entre outras. O seu penúltimo livro, Rip it Up and Start Again, publicado em 2006 pela Faber and Faber, é um desconcertante e exaustivo ensaio sobre o Pós-Punk, e foi considerado aqui, por Rodrigo Nogueira, como um «um portentoso monumento à música, àquilo que a música pode fazer, partindo do pressuposto que a música pode mudar o mundo». Quando era criança, Simon queria ser escritor, primeiro de livros infantis, depois de ficção científica. Em 1985, então com 22 anos, fundou, com Paulo Oldfield e David Stubbs, a fanzine Monitor, uma espécie de ensaio e laboratório de ideias e exercícios teóricos sobre música, essencialmente, experiência a partir da qual percebeu que a paixão pela escrita só fazia sentido se definitivamente associada à paixão pela música. Em 1986, o Melody Maker, uma das maiores publicações da imprensa musical da altura, convida-o a fazer parte da sua redacção. Desde então, tornou-se uma referência incontornável da crítica musical especializada.

Para o autor de Blissblog, blogue de referência e um dos mais visitados no âmbito do jornalismo musical, escrever sobre música é como escrever poesia, linguagem que aliás traduz a única possibilidade de captar, preservar e reproduzir aquela que é para Reynolds a verdadeira natureza da música: a violência. Em entrevista ao Ready Steady Book, o escritor/jornalista vai mais longe e explica porque é que a abordagem meramente técnica e descritiva do objecto artístico é redutora, adiantando que esta perspectiva de análise, adoptada por grande parte da crítica musical que se faz hoje em dia mais não será do que uma mera tentativa de delineação a tender para o excessivamente programático de algo cuja essência é de certa forma abstracta. Por este motivo, o autor opta por uma estratégia que elabora a partir do seguinte pressuposto:

«Coisas como a excepcionalidade e a assinatura artística são extremamente difíceis de captar pela linguagem. Pessoalmente, prefiro uma escrita centrada na imaginação, na medida em que permite captar a música enquanto coisa (uma entidade, uma máquina, etc.), um espaço (uma arquitectura, uma paisagem) ou uma espécie de fenómeno natural (a metrologia e a astronomia são-me particularmente fascinantes). Este tipo de escrita não tem valor de verdade em si mesmo no sentido em que não constitui uma descrição exacta do fenómeno, mas, tal como a poesia, transmite uma sensação de verdade

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«The Late View»

Posted in Notas, Notícias by Sandra Guerreiro Dias on Sexta-feira, 25-07-2008

The Culture House, em Reiquiavique, tem em exposição fotografias de autor do Prémio Nobel islandês da Literatura, Halldór Laxness. A mostra, inaugurada em Junho último, intitula-se The Late View – photographs from legacy of Nobel Laureate in Literature and cosmopolitan Halldór Laxness e é uma oportunidade a ter em conta para quem esteja de malas aviadas para uma qualquer dessas viagens ainda sem destino definido. Ela dá a conhecer uma perspectiva do escritor enquanto pensador do seu tempo, reflectindo, através do olhar fotográfico que lança sobre pequenas circunstâncias do seu quotidiano, sobre o envolvimento do autor/artista com o destino do seu próprio país.

Autor de uma obra vastíssima (65 livros em 68 anos de produção literária) Halldór Laxness assinou títulos como Salka Valka I (1931) e Salka Valka II (1932), que relatam a saga de uma jovem pescadora pobre, ocupação comum naquele tempo e naquele lugar, ou Independent People (1934-1935), Gente Independente, a única obra do autor traduzida e editada em Portugal (Cavalo de Ferro, 2007). Aqui, o contexto é o de uma Islândia nos princípios do século XX e a história a de Bjartur, das Casas de Verão, personagem principal do romance, na luta desesperada pela independência diante dos outros e de si próprio. Halldór Laxness é ainda o autor de The Atom Station (1948), sobre o pós-II Guerra Mundial na Islândia, uma das suas obras mais polémicas, e de The Happy Warriors (1952), cujo enredo decorre durante a ocupação viking, aquando da descoberta daquele país, em meados do século IX d.C., mas que é afinal mero pretexto para a crítica duríssima e plenamente assumida aos regimes totalitários de Hitler e Estaline.

Assim, certo é que a sua obra acaba por assumir-se enquanto exercício e ensaio em permanente diálogo com o seu tempo, cujo pano de fundo é o ser humano enquanto sujeito naturalmente em colapso e sempre merecedor de complacência. Halldór Laxness foi, além disso, o escritor que, através da ficção e dos inúmeros artigos publicados em diversos jornais, melhor documentou a longa e sinuosa história da luta pela independência de um povo e de um país que o é apenas desde 1944. Por este facto, e pelo consenso que a sua obra reuniu, na Islândia e no mundo, Haldór Laxness tem sido considerado por muitos como o último verdadeiro escritor nacional do Ocidente. Por outro lado, os seus livros e as frentes em que se bateu, bem como as múltiplas reflexões políticas e sociais que a sua extensa produção convoca, reclamam o reconhecimento do lugar inquestionável da literatura na história de cada país.

Em notas redigidas para The Fish Can Sing, obra publicado em 1957, Laxness afirmava que «são precisamente essas pessoas, as pessoas comuns, aquelas que transportam em si as mais virtuosas das virtudes humanas». A sua obra, o seu trabalho, testemunhos de quase um século de história (nascido em 1902, o escritor terá vindo a falecer apenas em 1998), é, por uns caminhos e por outros, o reforço, à usa maneira, dessa máxima que bebeu no realismo social da década de 30. «Nascido para cantar para o mundo», como se diz de Bjartur em Gente Independente, terá sido também esse o desígnio maior de Halldór Laxness.

«The Late View» estará em exibição até Fevereiro de 2009.

Sandra Guerreiro Dias

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E batatas

Posted in Vária by Sandra Guerreiro Dias on Domingo, 22-06-2008

«Tenho a certeza que se os artistas soubessem que ganhariam mais dinheiro a cavar batatas era isso que faziam.»

As palavras são de Guy Schraenen, o pai da contracultura que passou a vida a coleccionar arte e de um momento para o outro vendeu tudo ao Museu de Bremen, desapontado com a banalização de que tem vindo a ser objecto a arte e tudo o que com ela está relacionado. Supondo que os escritores também estejam incluídos na afirmação, não posso deixar de fazer minhas as suas palavras. É que face ao excesso que está farto de dar em fartura e à crise alimentar que veio para ficar, a verdade é que em tempo de migalhas – ou nem isso para 862 milhões de pessoas, segundo os últimos números do Banco Mundial – batatas sempre matavam a fome.

Sandra Guerreiro Dias

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Um bem necessário

Posted in Comentários by Sandra Guerreiro Dias on Sábado, 31-05-2008

Contra o excesso, não o sendo, a Revista Criatura assoma enquanto projecto urgente e desmedido que é na asserção pela palavra que não se esgota no exercício estético. Já com dois números editados, trata-se de uma publicação literária organizada pelo Núcleo Autónomo Calíope, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que recolhe a colaboração de jovens autores emergentes. Despretensiosa, discreta, e incessante na beleza e eminência dos pressupostos que convoca, esta revista afirma-se pela coerência de uma arquitectura a assentar na experiência da poesia enquanto desafio. Dizendo-se pela criação, pela criatura em movimento, assume-se, além disso, contra a globalização, normalização e, logo, neutralização da natureza primordial da linguagem artística. Vigilante, actua assim em prol da sujeição a um desígnio que, em constante processo de assombro disfórico, propende para o esclarecimento do real, ultrapassando em muito o mero jogo poético experimental ou o vulgar ensaio reprodutor de tendências. E se é verdade que «toda a criação é afinal um bem desnecessário», como é afirmado em nota introdutória ao segundo número, não o deixa de ser menos que é a palavra, aqui enquanto sinopse desse processo de criação, que se assume neste contexto enquanto objecto que cumpre o esboço de uma espécie de avassaladora catarse geracional. A Revista Criatura é assim, e também, a diegese dessa «geração do silêncio» em si mesma, a que é simultaneamente filha «daqueles que lutaram no dia 25 de Abril», e “geração revoltada/simplesmente porque não tem a sua revolução». Projecto que se declara pela indigente necessidade do silêncio, empreende-se pela concretização desse reduto último ou dessa «ciência última» que Herberto Hélder, há vinte anos atrás, anunciava e sintetizava como «unânime, fundamental, áurea».

Sandra Guerreiro Dias

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Manuel da Fonseca e a apologia do belo

Posted in Autores, Vária by Sandra Guerreiro Dias on Terça-feira, 06-05-2008

Em 1988, em entrevista a Francisco José Viegas, Manuel da Fonseca confessava-se um militante moderado do Neo-Realismo doutrinário: «Nunca fui um homem que pensasse no Neo-Realismo senão como eu pensava que ele devia ser realizado. (…) Há outro Neo-Realismo mais simples, como as formas mais altas de ver o mundo, de voar sobre ele, de poder sonhar com ele…». De facto, no que diz respeito ao amadurecimento e à definição daquilo que seria a disposição do seu projecto enquanto escritor e enquanto ser humano integrado numa sociedade às avessas, Manuel da Fonseca antecipa-se claramente à sua geração.

Emergente de uma atitude de grupo que cultivava «a obstinada recusa a ser feliz num mundo agressivamente infeliz», «a ânsia da dádiva total», ou ainda «o grande sonho de criar uma literatura nova, radicada na convicção de que, na luta imensa pela libertação do homem, ela teria um papel inestimável a desempenhar» o escritor irá desenvolver um percurso muito particular, num ritmo que será o do seu próprio empenho solidário, o da própria pulsação contemplativa, numa luta diligente e infatigável pela defesa dos mais desfavorecidos. Não se trata, no entanto, de uma mera empatia doutrinária pelo oprimido mas antes, conforme José Carlos Barcellos, de uma «fidelidade a uma ética e a uma estética fundamentalmente comprometidas com o humano».

Para tal, Manuel da Fonseca sustenta a sua produção no constante equilíbrio entre o conteúdo e a forma, revogando uma tendência do movimento cuja laboração estética radica, pelo menos teoricamente, na demanda arrebatada pelo triunfo da mensagem ideológica. De outra forma não podia ser, já que, para o autor, realidade, ideia e poesia não existem separadamente, são uma mesma realidade, a única realidade que a sua sensibilidade conhece.[continua aqui >>>]

Sandra Guerreiro Dias

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Do infortúnio das páginas em excesso

Posted in Notas by Sandra Guerreiro Dias on Terça-feira, 29-04-2008

Sabia que de cada vinte e oito páginas publicadas só se lê uma? Porque há livros que são dados de presente a pessoas que não lêem, porque vão parar a uma biblioteca sem utentes, porque se adquirem para decorar estantes, porque se oferecem na compra de outro produto, porque o leitor perde o interesse logo no primeiro capítulo, porque nunca saem do armazém dos impressos, porque também os livros se compram por impulso.

Excerto de David Toscana (2008). O Último Leitor. Porto: Oficina do Livro.

Sandra Guerreiro Dias

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Dos pássaros

Posted in Comentários by Sandra Guerreiro Dias on Sábado, 29-03-2008

passaros.jpg

Ao anoitecer, a cidade adensa-se e os pássaros quase enlouquecem. Ao mesmo tempo, Rui S. pensa e é no pensamento de si e dos outros que existe enquanto limite da narrativa que por sua vez se dissolve na delirante articulação entre presente e passado, sujeito e contexto, alienação e libertação. Em Explicação dos Pássaros, a opção pela aparente desconexão diegética é, no entanto, inevitável, pela premência da simulação profunda do objecto e dos seus contextos.

Por fragmentação do discurso entender-se-á, em António Lobo Antunes, o silêncio da continuidade narrativa que se manifesta por intermédio da ausência de nexos discursivos longitudinais. Esta falaciosa vacuidade esgota-se, no entanto, numa inquietante coerência experimentada através de um encaixe paradoxalmente sequencial entre diferentes planos temporais, personagens, fórmulas, registos e outras variantes que constituem o universo no qual se movimenta a personagem principal. Ou o rodopio da insistência obsessiva na descrição dos pormenores, da lucidez desarmante e da coloquialidade poética, da simultaneidade entre as vozes do narrador e da personagem principal, da família, das mulheres, da sociedade, da cidade e dos pássaros, espécie de alter-ego no qual Rui S. se supera e se explica a si próprio e através dos outros:

A maior parte dos pássaros, explicou o pai, (…) vivem muito pouco tempo se não morrem logo à nascença, há os que emigram no Inverno para países mais quentes, os que não conseguem executar a viagem e se ficam no caminho, os que os machos e as corujas devoram se os pilham atrasados ao entardecer, retardatários, a tentar escapar à noite a caminho da mata. (pp. 72-73)

[continua aqui >>>]

Sandra Guerreiro Dias

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Crépu e as probabilidades do vício

Posted in Comentários by Sandra Guerreiro Dias on Segunda-feira, 10-03-2008

paginas desfocadas

Em resposta a George Steiner que, em O Silêncio dos Livros, alerta para a fragilidade do livro enquanto objecto físico e pensante, paradoxalmente em vias de se transformar em «factor de desumanização», Michel Crépu afirma, em Esse Vício Ainda Impune, que «quando penso em livros, nunca vejo fogueiras; vejo, sim, um rapazinho sentado ao fundo de um jardim, com um livro em cima dos joelhos. Está ali e não está» (p.53). À improbabilidade da permanência de posições definitivas acrescenta-se a formulação desse espaço quase interdito da leitura como desígnio clandestino, marginal, a prosseguir silenciosamente, espécie de «big bang invisível, muito discreto, sem consequências dignas de nota» (p.70), cujas consequências se enunciam muito para além da gravidade atávica que caracteriza a ponderação assumida por Steiner.

Na discussão implicitamente em causa acerca do lugar e do papel da leitura na complexa demagogia do devir civilizacional, Crépu, recuperando Larbaud, prefere portanto uma posição que se fundamenta na metáfora do vício impune. No entanto, e à medida que se avança no ensaio, denuncia-se o carácter improcedente desta permissão tacitamente simulada, porque afinal à mercê de um ódio incitado por uma sociedade delirante à beira do idiotismo:

esta guerra aos desacatos do vício ainda impune (…) é conduzida por um exército de patetas radiantes de estupidez e de uma ambição feroz. São os imbecis de que falava Bernanos. São infalivelmente reconhecidos pelo mau gosto, pela incapacidade de usarem com bom senso e justeza o poder de que gozam hoje em dia. É o aspecto cómico da situação… (p.69)

A aparente impunidade do vício poder-se-á, no entanto, assumir apenas como síntese das dissonantes probabilidades que nos parece interessante reter. Vejamos. Sendo que a censura ao ódio dependerá sempre de quem odeia e, mais ainda, do que é odiado e punido, e que o objecto do ódio em causa será, neste caso, a leitura e/ou o livro, a conceptualização assumida por Crépu salvaguardará sempre a distinção entre o ódio por ignorância e o ódio por esclarecimento. E é obviamente do ódio por ignorância que aqui se fala. Assim, se por um lado é verdade que se exerce a tentativa de erradicar e dissolver por completo o lugar inquestionável da leitura nas sociedades contemporâneas, não o deixa de ser menos que a mesma sociedade que odeia, nesse processo de vacilante «extermínio», subsidia a revolução pela leitura. Porque, desconhecendo, não a sabe punir. E porque, odiando, a desafia e enfurece ainda mais.

A infamante provocação é no entanto também induzida pelo objecto em si, que, enquanto ritual de iniciação ao mundo, projecto de alienação e afirmação pela experiência profunda da lucidez e da imaginação que proporciona, profetiza a legitimidade dessa eminência que lhe é devida. Crépu, como Proust em Em Busca do Tempo Perdido, que o autor aliás cita, procura assim resgatar das fogueiras flamejantes de Steiner esse espaço que, do livro não sendo, será.

O que é a literatura? Um lugar que não é lugar, um tempo que não se mede pelo tempo, uma língua que não é a linguagem. Esse lugar, esse tempo e essa língua [que] podem tornar-se objecto de um desejo, [e que] permitem pressentir uma forma particular de conhecimento, ou talvez de revelação. (p.55)

O livro constituirá assim, e sempre, essa fábula da revolução em marcha. E enfim porque «pelo caos passa a sombra» (p.71), é no vício impune da leitura que residirá afinal a probabilidade da punição silenciosa a essa tentativa de exorcizar o esclarecimento das sociedades.

Michel Crépu (2006), Esse Vício ainda Impune. In George Steiner, O Silêncio dos Livros. Trad. de Margarida Sérvulo Correia. Lisboa: Gradiva, 71 pp. [ISBN: 978-989-616-191-0]

Sandra Guerreiro Dias

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