Os Livros Ardem Mal

Check(Mating)

Posted in Artes, Comentários, Notas by Pedro Serra on Segunda-feira, 13-07-2009

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O jogo suspende o tempo para ganhar tempo, mas a Morte acaba por vencer: quando pensamos no xadrez teremos na retina, entre outras, a fantástica partida do Cavaleiro medieval, Antonius Block, e a Morte n’ O Sétimo Selo de Ingmar Bergman. No negócio dos óbitos, o xeque-mate é sempre jogada da Morte. Diria que Antonius Block não negoceia verdadeiramente, e não o faz por ética de classe: ou tudo ou nada, escatologia dos eleitos. A ética dos onzeneiros, sim. Dela é o purgatório que nasce na baixa Idade Média como estudou Le Goff: bálsamo de aflições pela salvação sufragada e pelo depósito a prazo. Antonius Block, paradigma de todas as virtudes violentas do guerreiro, joga xadrez com a Morte, furibundo bellator. Contudo, há uma outra tradição, também medieval, no imaginário do xadrez: a do jogo heterossexual, tradição que tem um avatar na performance de Marcel Duchamp e Eve Babitz de 1963. É esta tradição que justifica o post: não o xeque-mate, mas o (check)mating, estudado por Patricia Simons nos seguintes termos:

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Le temps des assassins

Posted in Balanço, Notas by Pedro Serra on Domingo, 12-07-2009

Na forja do ser moderno em Portugal, o contratempo do filho morto: “E que fazer se a geração decai! / Se a seiva genealógica se gasta! / Tudo empobrece! Extingue-se uma casta! / Morre o filho primeiro do que o pai!”. No drama extático da “comédia lusitana” chegou a responsabilidade de o pai matar o filho, que é como quem diz, o contratempo do crime como uma das belas artes. De um pai a um filho, num duradouro recanto junto ao Tejo líquido: “– Ena Jorge, tanto peixinho, anda ver o oceanário. – Paaai!”. Eis, pois, o tempo dos assassinos: “– Vai chamar pai a outro”. Contas a liquidar, sempre é tempo de nos rirmos, combativos, com tudo isto.

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O Chekhov dos subúrbios

Posted in Autores, Comentários, Edição, Livros, Notas, Recensões, tradução by Luís Quintais on Sexta-feira, 29-05-2009

09-03-ContosCompletos-CatNum registo diverso, gostaria de destacar a publicação recente deste magnífico volume de contos (a que se anuncia um segundo volume) de John Cheever. Cheever nasceu a 27 de Maio de 1912 e faleceu a 18 de Junho de 1982. Trata-se de um dos grandes escritores norte-americanos de contos do século XX, só comparável a Sherwood Anderson, Hemingway, ou, mais recentemente, a Raymond Carver.

Cheever é por vezes apelidado como «o Chekhov dos subúrbios», e podemos encontrar neste volume reunidas algumas das suas histórias mais conhecidas, entre as quais se encontram «Adeus, meu irmão», «O rádio enorme», «O comboio das cinco e quarenta e oito» e «O marido do campo».

Convém talvez acrescentar que os contos reunidos de Cheever obtiveram o Prémio Pulitzer de 1979 para ficção. (Tradução segura de José Lima).

John Cheever. Contos completos I, Lisboa, Sextante. [ISBN: 978-989-8093-87-5]

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Darwin rules

Posted in Autores, Comentários, Edição, Efemérides, Livros, Notas, Recensões by Luís Quintais on Sexta-feira, 29-05-2009

evolucao2_bigNos 200 anos do nascimento de Charles Darwin (nascido a 12 de Fevereiro de 1809) e nos 150 da publicação da Origem das espécies (24 de Novembro de 1859), a Esfera do Caos, uma editora que tem vindo a publicar excelente literatura de divulgação científica em Portugal, lança-se num projecto pioneiro sobre a grande constelação darwiniana de que são testemunho estes dois volumes, estando prometidos mais dois, Vida: origem e evolução e Homem: origem e evolução. A série, aliás, chama-se «Fundamentos e desafios do Evolucionismo», e vem colmatar uma enorme lacuna no espaço intelectual português que, em geral, ignora a importância de Darwin para o entendimento do que será porventura o nosso presente. Através destas páginas (que articulam textos clássicos traduzidos pela primeira vez com textos especialmente encomendados para o efeito) poderá eventualmente situar-se Darwin no contexto da modernidade.

Darwin é, a par de Freud e de Nietzsche, um dos pensadores que melhor emblematiza o legado intelectual, senão mesmo cognitivo, que é hoje o nosso.

André Levy et. al. Evolução: história e argumentos. Lisboa, Esfera do Caos. [ISBN: 978-989-8025-55-5]

André Levy et al. Evolução: conceitos e debates. Lisboa, Esfera do Caos. [ISBN: 978-989-8025-75-3].

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Uma espécie de vírus

Posted in Autores, Livros, Notas, Recensões by Luís Quintais on Sexta-feira, 29-05-2009

booksEste é, na minha opinião, um dos livros axiais da antropologia das últimas décadas. As razões são várias, e limitar-me-ei a invocar algumas.

Sperber é um antropólogo (que não enjeitou uma certa concepção de «natureza humana» cuja influência pós-estruturalista teria diluído) e um cientista cognitivo.

Para Sperber, as ideias ou «representações» são contagiosas.

Elas espalham-se numa população como se fossem vírus (a semelhança com a «memética» de Dawkins tem porém de ser matizada: enquanto que a mutação é regra nas representações, no caso dos vírus tal mutação é excepcional).

Este processo é dinâmico: pessoas, ecologia, e as próprias representações são transformados. Explicar a cultura é, para Sperber, descrever as causas e os efeitos deste contágio pelas representações. Sperber reconconceptualiza assim o domínio da cultura em termos de padrões ecológicos de fenómenos psicológicos, ou seja, em termos de uma «epidemiologia das representações». Não há aqui lugar para qualquer forma de «reducionismo» (ainda que se Sperber se recuse a demonizar aquilo a que se chama de reducionismo). A cultura é entendida como o resultado de um processo complexo que acontece numa recursividade permanente entre factores cognitivos e factores ecológicos. Para Sperber, a cultura é o «precipitado da cognição e da comunicação numa população humana» (p. 97).

Sperber tem coisas muitas sérias a dizer sobre a eficácia causal (e os perigos) das representações, mas não parece ter sido levado muito a sério pela maioria dos antropólogos e cientistas sociais contemporâneos, incapazes talvez de se aproximarem das propostas da ciência cognitiva contemporânea sem temerem o perigo de uma espécie de contágio conceptual naturalizador e cognitivista. A excepção será seguramente Harvey Whitehouse.

Dan Sperber. Explaining culture: a naturalistic approach, Oxford, Wiley-Blackwell, 1996 [ISBN 0631200452, 9780631200451]

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Homens vs países

Posted in Autores, Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Quarta-feira, 27-05-2009

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«La tarde era íntima, infinita. El camino bajaba y se bifurcaba, entre las ya confusas praderas. Una música aguda y como silábica se aproximaba y se alejaba en el vaivén del viento, empañada de hojas y de distancia. Pensé que un hombre puede ser enemigo de otros hombres, de otros momentos de otros hombres, pero no de un país: no de luciérnagas, palabras, jardines, cursos de agua, ponientes».

Jorge Luis Borges, «Ele jardín de senderos que se bifurcan», Obras Completas, I, Buenos Aires, Emecé, 2004, p. 473.

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Melville ou o sublime

Posted in Autores, Edição, Livros, Notas, Oficina, Poesia, Recensões, tradução by Luís Quintais on Quarta-feira, 20-05-2009

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Será talvez o grande paradigma da ficção americana à sombra tutelar do qual se acolhem escritores tão diversos como Faulkner, Don Dellilo, Thomas Pynchon, ou John Barth.

O que não conhecíamos em português, até onde julgo saber, era o Melville poeta.

Esta lacuna está agora preenchida após estas traduções/versões de Mário Avelar publicadas na Assírio & Alvim. Os poemas de Melville reiteram um tema que é um dos seus tópicos mais inquietantes: a indiferença da natureza aos desígnios do humano. Isto pode ser ilustrado pelo poema magnífico que é «The berg (a dream)» / «O Icebergue (o sonho)», que é também um belo exemplo do que poderá ser a «estética do sublime». Deixo aqui a primeira estrofe (p. 55):

Vi um barco de porte marcial
(de flâmulas ao vento, engalanado)
Como por mera loucura dirigindo-se
Contra um impassível icebergue,
Sem o perturbar, embora o enfatuado barco se afundasse.
O impacto imensos cubos de gelo cair fez,
Soturnos, toneladas esmagando o convés;
Foi essa avalanche, apenas essa –
Nenhum outro movimento, o naufrágio apenas.

Herman Melville. Poemas, Assírio & Alvim. 2009, trad. de Mário Avelar [ISBN 978-972-37-1357-2].

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Textos & pretextos

Posted in Notas by Pamplinas on Segunda-feira, 11-05-2009

Leio, nos jornais de fim-de-semana, os (poucos e magros) textos sobre livros. Noto que há os que escrevem sobre os textos dos outros para, de algum modo, agradecerem a sua existência. E há os que aparentemente escrevem sobre os textos dos outros mas visam de facto terceiros. São aqueles que fazem dos textos pretextos. O rancor pode sempre mais do que o amor, é o que se aprende nesses moralistas de fim-de-semana.

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Irvine Welsh e a morte da literatura

Posted in Autores, Comentários, Livros, Notas, Recensões by Luís Quintais on Sábado, 09-05-2009

9789725647592_1234381131_3O  romance de Irvine Welsh, originalmente publicado em 2002, é construído em torno de múltiplas vozes, vozes essas que são reconhecíveis após a leitura do célebre Trainspotting (1996), do qual é, aliás, uma sequela. Welsh é uma espécie de escritor picaresco e joyceano que escreve furiosa e polemicamente sobre a experiência contemporânea.

Um aspecto particularmente interessante prende-se com o uso dos diálogos e dos idiomas locais e de grupo que podemos descobrir aqui em registos diversos, entre os quais se destacam, evidentemente (para quem já conhece Welsh), as práticas e linguagens próprias de uma certa marginalidade/youth culture britânica, de que Welsh é, sem dúvida, um magnífico mitógrafo.

Ninguém há como Welsh para nos mostrar a «fala» dos seus protagonistas, com uma eficácia verdadeiramente estonteante e paródica. Talvez Welsh seja mesmo um dos mais interessantes émulos de Joyce, hoje.

O livro é, aliás, excelente para quem gosta de ver as possibildades literárias do calão a acontecerem na página.

Prefiro citar aqui, porém, o primeiro parágrafo do capítulo com o inefável título de «…punhetas mal batidas…». Aí Welsh mostra-nos através da voz de uma das suas personagens (Nikki), como a literatura já não é o que era, e como ela exige uma reconfiguração dos seus limites e temas:

«Cada vez que mudo de disciplina sinto-me mais fracassada. Contudo, a meu ver, os cursos académicos são como os homens; mesmo o mais fascinante só consegue cativar o nosso interesse durante algum tempo. Agora o Natal já passou e estou outra vez solteira. Mas o facto de mudar de disciplina não é tão angustiante como mudar de instituição pedagógica ou de cidade. Consolo-me por ter ficado na Universidade de Edimburgo um ano inteiro, bem, quase. Foi a Lauren que me convenceu a mudar de curso de literatura para estudos dos media e do cinema. A nova literatura é o cinema, disse ela, citando uma revista idiota qualquer. Como é óbvio, expliquei-lhe que não é nos livros nem no cinema que as pessoas hoje em dia aprendem alguma coisa sobre a narrativa, mas nos jogos de vídeo. Se realmente queremos ser radicais e modernos, devemos passar os nossos dias no salão de jogos do bairro a rivalizar com um monte de gajos anémicos, para garantir o teu lugar nas máquinas» (p. 35).

Irvine Welsh. Porno, Quetzal, 2009, trad. de Colin Ginks [ISBN 978-972-564-759-2].

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Cannibal & Co. (IV), Contra Arcadia (II)

Posted in Notas by Pedro Serra on Segunda-feira, 04-05-2009

Ahora el mundo es el escenario de ejércitos de microbios; el apocalipsis amenaza como no había amenazado nunca antes, aunque ahora sea con las formas de la física. En las neurosis, en las psicosis sigue floreciendo la vieja locura. Y también será posible reencontrar allí al devorador de hombres, el antropófago, vestido con un disfraz transparente –no sólo en forma de explotador, de batidor en el molino de huesos del tiempo–. Antes al contrario, el antropófago tal vez aparezca en la forma de serólogo que, rodeado de instrumentos y retortas, medita sobre el modo de transformar el bazo humano, el esternón humano, en materia prima para extraer medicamentos milagrosos. Cuando esto ocurre nos encontramos en el centro del viejo Dahomey, en el centro del antiguo México.

Ernst Jünger, La emboscadura, Andrés Sánchez Pascual, trad., Barcelona, Tusquets, 1988, 176 pp. ISBN: 978-84-7223-850-3.

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Edgar Allan Poe sem intuição e sem acaso

Posted in Artes, Autores, Comentários, Crítica, Edição, Efemérides, Livros, Notas, Poesia, Recensões, tradução, Vária by Luís Quintais on Domingo, 03-05-2009

d2687f5ef69d40cb8a6dc5b3121b3b95-smallbookPoe é um dos portais da modernidade literária. Sem ele, outra seria a nossa percepção do que foram/são Baudelaire, Mallarmé, Eliot, Pessoa, etc. Sem ele, não teríamos muito provavelmente, o drama da emoção e da razão tal como o viveram e expressaram os modernos.

Nos duzentos anos sobre o seu nascimento (Poe nasceu a 19 de Janeiro de 1809 e faleceu a 7 de Outubro de 1849), o mais traduzido dos autores americanos em Portugal, tem nesta Obra Poética Completa uma das suas homenagens mais significaticas.

Poe foi talvez um dos primeiros poetas a explicitar uma poesia por vir, marcada pelos desígnios maiores da ciência. A diluição dos «enigmas» da natureza e do humano, a convivência com um mundo «desencantado», a urgência de recodificação através das lições do gelo que a ciência comportava e comporta inexorovelmente: tudo temas que a poesia de Poe articula de um modo constante, ao mesmo tempo que pretende aceder a um patamar de reinvenção formal da escrita onde se apela a uma exigência de «método» (que o célebre ensaio «A Filosofia da Composição» enuncia).

Esta tensão entre o desencantamento do mundo e a sua requalificação pode ser ilustrada através do poema «Soneto – À Ciência»: «Ciência, ó filha do Tempo Velho! / Que, de olhos coruscantes, tudo espreitas, / Por que rasgas ao poeta o amplo peito, / Abutre de asa rude que se engelha? Como te pode amar, crer-te avisada, / Que o não deixaste andar, errante, ao vento, / Buscando as jóias que há no firmamento / Ainda que o singrasse de asa ousada? / Diana escorraçaste da quadriga, / Do bosque a Hamadríade (fugindo / Ela a abrigar-se em estrela mais amiga), / À Náiade tiraste a onda cava, / Ao elfo o prado, e a mim o tamarindo / Em cuja sombra eu no Verão sonhava.» (OPC, p. 80).

A edição é primorosa, com uma excelente tradução, introdução e notas de Margarida Vale de Gato (uma tradutora que merece referência pela qualidade e quantidade do seu trabalho de tradutora), e com notáveis ilustrações de Filpe Abranches.

Acresce ainda o já referido ensaio  “A Filosofia da Composição” (pp. 273-288), onde Poe explicita a génese de «The Raven» (ler p. 277), e nos revela a intenção de uma poesia sem «acaso» e sem «intuição».

É pena que a edição não seja bilingue; porém é compreensível: tal projecto iria seguramente encarecer uma edição desta exigência gráfica.

Edgar Allen Poe, Obra Poética Completa. Tinta-da-China, 2009 [ISBN 978-972-8955-93-9].

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JG Ballard

Posted in Artes, Autores, Balanço, Comentários, Efemérides, Livros, Notas, Notícias, Vária by Luís Quintais on Segunda-feira, 20-04-2009

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Faleceu o nosso correspondente em Shepperton. Leia-se, por exemplo, o obituário do Guardian.

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O sentido é revisitação ou uma selva dentro da selva ou por que é que o cérebro não explica a arte ou só a explica parcialmente

Posted in Artes, Autores, Comentários, Livros, Notas, Oficina, OLAM, Vária by Luís Quintais on Sexta-feira, 03-04-2009

neuronUm dos aspectos mais interessantes das chamadas neurociências cognitivas contemporâneas prende-se com a relevância que aí assume uma imagem do cérebro enquanto estrutura dotada de uma complexidade e de uma plasticidade extraordinárias.

A arte pode ser pensada frutuosamente como um aspecto da cognição humana, isto é, como algo que resulta de um processo multiforme de aquisição de conhecimento, e, nesse sentido, como algo que radica em processos que poderíamos descrever como mentais.

O problema começa talvez aqui.

A minha tese é a de que sem cérebro não há mente (o que é, desde Thomas Willis e da «neurocentric age», uma evidência incontestável), mas que a mente não é o cérebro; penso, aliás, que não há consensos alargados sobre aquilo que a mente é, e de que forma é que podemos passar das ontologias na terceira pessoa para as ontologias na primeira pessoa, ou, de outro modo, da objectividade para a subjectividade, e vice versa. Estamos na fronteira, e toda a gente sabe como são as fronteiras que tornam a ciência fascinante, difícil, ou, de outro modo, de exercício quase improvável. Somos confrontados com aquilo que não sabemos, ou, eventualmente, com os limites do que sabemos.

De acordo com uma leitura wittgensteiniana do que se encontra aqui em causa, talvez estejamos perante um problema de linguagem ao dizermos que são os cérebros que pensam.

Wittgenstein ensinou-nos, como nenhum outro, a suspeitar da linguagem. As palavras podem trair-nos e levar-nos a olhar para certos problemas como problemas reais, quando eles não passam de puzzles que devem ser desmontados. Assim, se os estômagos não comem também é muito improvável que os cérebros pensem, ainda que, e volto a enfatizar este ponto, não possa haver pensamento (e todos os seus avatares: consciência, intenção, memória, etc.) sem cérebro.

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Uma ciência da ciência

Posted in Autores, Notas by Luís Quintais on Sexta-feira, 03-04-2009

9789724413983Esta é a 2ª. edição de Para uma sociologia da ciência, a tradução portuguesa de Science de La Science et Refléxivité de Pierre Bourdieu (1930-2002). Publicado no ano da sua morte, este curto e denso ensaio pode ser lido de duas formas: como uma introdução aos Estudos Sociais de Ciência (uma das áreas mais polémicas das ciências sociais contemporâneas), e como um modo de percepcionarmos o que Bourdieu, que sempre apelou à «refexividade» na constituição do objecto sociológico, teria a dizer acerca da ciência enquanto «campo», para usar um conceito que lhe é decisivo.

Bourdieu passa em revista os grandes nomes da sociologia da ciência (ou daqueles que ajudaram a circunscrever o seu alcance), desde Merton a David Bloor e ao «strong programme», passando pelo inevitável Thomas Kuhn.

Neste contexto, particularmente acintosas são as páginas sobre Bruno Latour (ver pp. 45-50).

A tradução é de Pedro Elói Duarte.

Pierre Bourdieu (2008) Para uma sociologia da ciência, Lisboa, Edições 70 [ISBN: 978-972-44-1398-3].

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London, por Borges

Posted in Autores, Livros, Notas, Notícias, Recensões, tradução by Luís Quintais on Sexta-feira, 20-03-2009

01310010_a_mao_de_midas_graO presente volume pode ser uma de três coisas, a saber: uma excelente introdução à obra de Jack London, uma aproximação à constelação literária de Jorge Luis Borges, e um contacto (também ele sensorial e físico) com uma das colecções mais fascinantes de literatura do século XX.

É um modo feliz de nos aproximarmos do trabalho literário de Jack London (1876-1916), autor americano de grande popularidade (foi um dos primeiros escritores americanos a fazer fortuna com a escrita) no seu tempo, e que é justamente considerado um dos brilhantes mestres da narrativa, e em particular do conto.

Borges reviu-se evidentemente em London, e esta colecção de A Biblioteca de Babel, espelha-o. O livro contém seis contos de London, de onde sobressai uma afirmação da literatura enquanto narrativa que Gustavo Rubim, numa notável recensão no Público, identificou como sendo um trabalho que foge habilmente às derivas da interpretação, e onde os acontecimentos dominam o fluxo textual. Escreve Rubim: «[M]as a mestria de London não está no modo como ergue ou insinua uma visão do mundo; está no modo como põe a narrativa acima do sentido, num jogo de esquiva às interpretações» (Ípsilon, 6 de Fevereiro, p. 29).

Trata-se de uma colecção que Borges dirigiu, seleccionando todos os volumes que a compõem, e prefaciando-os com ensaios seusjack-london sobre cada um dos autores escolhidos. É interessante verificar como o grande escritor argentino faz aí ombrear clássicos, como Edgar Allan Poe e Henry James, com escritores relativamente obscuros ou mesmo esquecidos hoje, destacando-se, entre outros, Gustav Meyrink e Arthur Machen.

Esta colecção revela não apenas as predilecções de Borges (uma grande parte vai para autores de língua inglesa), sendo, neste sentido, um modo de acedermos aos seus mestres, mas também a importância capital que o livro – enquanto objecto dotado de valências estéticas (e metafísicas) óbvias – detém no seu imaginário e na própria ideia que temos de literatura.

Neste sentido, importa referir que é o produto de um encontro entre o editor Franco Maria Ricci e Borges, himself, em que o primeiro propôs ao segundo a direcção de uma colecção de obras fantásticas que só podia chamar-se A Biblioteca de Babel. Os livros são belíssimos (como era próprio de Ricci), e a edição da Presença respeita escrupulosamente o grafismo original. (Creio que há uns anos atrás a Vega tentou trazer esta colecção para Portugal, ou copiá-la, com resultados desastrosos em termos gráficos, diga-se).

As traduções são cuidadas. Recomenda-se, pois, vivamente. (Tradução de Maria João da Rocha Afonso).

Jack London (2009) A Mão de Midas, Editorial Presença (colecção A Biblioteca de Babel, dirigida por Jorge Luis Borges). [ISBN: 978-972-23-4069-4]

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O meu amigo Q.

Posted in Notas by Pamplinas on Terça-feira, 10-03-2009

O meu amigo Q. vive num prédio implantado num descampado pós-urbano. Não um subúrbio, longe disso; antes uma zona à qual a cidade na aparência chegou há muito mas de que, de facto, desistiu, povoando-a de tufos de erva, pilares de viadutos e ecos de automóveis acelerando entre vias duplas. Os prédios baixos abrem um horizonte improvável, rasteiro e bloqueado, que parece um convite às deambulações da alma. A paisagem, porém, se assim a podemos nomear, ganha a sua ressonância plena quando contemplada de entre a cápsula envidraçada de um automóvel estacionado no local – ou então, de uma varanda de um dos prédios baixos do local, como quem desiste antecipadamente de nela passear, confinando-a ao passeio interior do olhar.

Vêem-se muito poucas pessoas no descampado entre os prédios, não por ele ser particularmente ameaçador, mas, em primeira instância, porque ninguém ali vive em permanência: dorme-se e sai-se para o trabalho, e é tudo. Podia-se jogar ali à bola ou passear uma criança pela mão, saboreando a continuidade a todo o instante reatada entre o asfalto e a erva, numa liminaridade que é toda uma promessa – mas não, pois o descampado asfaltado e timidamente invadido pela natureza impõe a lei da sua reserva silenciosa. Está simplesmente ali como o símbolo opaco de uma civilização desistente e já ameaçada pela vizinhança pacífica da erva e dos viadutos, esse Parténon para os vindouros.

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Moby Dick

Posted in Notas by Pamplinas on Sexta-feira, 20-02-2009

Lembro-me bem do prédio da Padre António Vieira. Não por causa da vizinha do 2º Esq. (não quero porém ser injusto na hora de saldar memórias…) mas porque foi aí que li o Moby Dick. Durante os dois anos que lá vivi, em regime ininterrupto. Não sei quantas vezes o li, mas sei que não li nada mais e que o li sempre, sem parar. Em loop. Deitava-me cedo, como sempre, e acordava pelas 5. Com a higiene matinal, um copo de água, meio pão e meio copo de leite, ficavam-me quase duas horas para ler, aproveitando a frescura e intensidade da percepção de quem acorda nesse momento em que todas as coisas libertam o seu espírito amordaçado pela noite numa torrente de pequeninos sons cristalinos. A essa hora, era-me como que natural a empatia com Ismael e acreditava que também eu escaparia para contar. Lia à beira da janela, num cadeirão posto num certo ângulo que me defendia da invasão do sol, espreitando de vez em quando a paragem do autocarro. Lia mesmo até ao último segundo. Guiava-me pelos meus companheiros de viagem que, também eles, chegavam apenas no último momento. Sabia que era assim pois habituara-me a reconhecê-los: sempre os mesmos, chegando à paragem todos os dias em cima da hora. Visivelmente, gostavam tão pouco dos seus empregos como eu do meu.

Desde que me mudei, não voltei a pegar no livro.

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Notas sobre o meu mestre Desidério Murcho

Posted in Notas by Pamplinas on Quarta-feira, 18-02-2009

Sou fiel às minhas venerações e uma delas, enfim sufragada pela opinião pública – com que melancolia o digo!… pois todo o apaixonado é egoísta e deseja não partilhar com ninguém os objectos da sua paixão -, é Desidério Murcho, autor-filósofo que a toda a hora mostra como o modo analítico de filosofar não tem de ser árido e chato, podendo antes enfrentar todos os dragões, e dissipar todas as névoas, da doxa lamacenta do «pós-moderno». Como duvidar, ante tal exemplo, da relevância social do pensamento, e, mais especificamente, do ramo da tradição filosófica em que pousa, qual coruja que nunca dorme, o meu mestre?

A minha já longa admiração por Desidério Murcho acaba de encontrar razões para se reforçar ainda mais. Num intempestivo post (eu sei que Desidério não aprecia a associação, mas nota-se nele, nos seus melhores momentos, um altivo desdém nietzschiano pelas rotinas pequeno-burguesas do pensar), o meu autor acaba de revolucionar a disciplina da História da Língua Portuguesa. De uma penada. Vale a pena transcrever o núcleo duro (melhor: o hardcoreda tese:

O segundo aspecto é que muitas línguas são puras mentiras políticas, inventadas por políticos espertos que queriam dividir para conquistar. É o caso da língua portuguesa. Não é mais do que latim à toa, que depois foi trabalhosamente aperfeiçoado numa nova língua, e que mais tarde foi artificialmente afastada do castelhano (eu sublinho).

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Uma apresentação

Posted in Notas by Pamplinas on Terça-feira, 17-02-2009

Desisti de concluir todos os livros que comecei, antes mesmo de atingir a p. 10. Não por tédio ante a hipótese de ver o meu nome na capa de um livro; não pelo fastio da obra acabada; não por horror ao plebeísmo da publicidade – mas sim pela distracção que em mim quase tudo induz. As árvores, a orografia infinita da sua pele rugosa, o vento, a chuva, acima de tudo a chuva, o passar das nuvens e as suas formas obsessivas na minha mente. As rachas e fungos na parede da minha casa. O peixe vermelho que cumprimento todas as manhãs. O chilrear das crianças no pátio da escola que ladeio à ida para o trabalho. O ruído dos carros ao longe, ou aproximando-se pelas costas: um nicho ecológico para a minha alma. Tudo no mundo me afasta do que na escrita me condena a deter-me em mim, ainda que por interposta pessoa ou obra. Tudo é pasto para a minha perda. Sei bem que esta renúncia moral (tão ascética quanto hedonística) à obra parece contradizer-se, a partir de agora, pela própria existência destes posts. Não divaguemos, porém: posts não são obra, mas antes, e permitam-me dizê-lo em modo gálico, désoeuvrement. Passagem das horas, migalhas do tempo que os vai deixando para trás enquanto corremos, sem ressentimento ou mágoa, por entre a floresta.

Os meus tão ilustres comparsas neste blogue cometem uma imprudência ao acolherem-me, sob a capa da milenar tradição da hospitalidade, nesta casa digna e sóbria. Não poderei contribuir senão com algumas fixações, seguramente espúrias, e um cortejo de venerações: a veneração pelo saber (ou, o que é o mesmo: por Desidério Murcho e Maria Filomena Mónica); a veneração pela inamovível placidez dos livros; a veneração pelo modo de eloquência da música, aquém e além de todo o discurso; a veneração, enfim, pelas tentativas para preencher com palavras aquilo que na música nos diz a mudez do mundo.

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Estes tempos vagarosos (IV)

Posted in Crítica, Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Quarta-feira, 11-02-2009

Não me parece possível, ou produtivo, abordar separadamente no poema de Cláudia Santos Silva as «políticas da identidade» nele encenadas e a questão da Voz lírica. Mas desejo chamar a atenção para a forma como a reivindicação da diferença no poema se faz em nome de uma hierarquia de diferenças que parece concluir pela não-diferença de certas diferenças. Ou seja, por um lado o poema alerta para o carácter ainda restritivo da celebração da diferença sinalizada pela vitória de Obama: faltaria que fôssemos todos Mulheres para que a lógica proliferante e emancipatória da diferença contaminasse de facto o corpo político. Logo a seguir, porém, o poema nota que «nessa matéria [sermos todos Mulheres] a cor da pele não revela  diferença». Esta concessão demasiado generosa à não-diferença da cor da pele, estando em causa uma diferença maior – a do sexo -, não pode deixar de ser vista como contraditória com o desejo de um reconhecimento da diferença, melhor, das diferenças. O problema reside talvez na entrada em cena de uma ontologização da diferença, denunciada pela maiúscula em «Americanos» e «Mulheres», mas já não (para mim estranhamente) em mestiços, que parece vitimar as diferenças que instabilizam uma leitura do corpo político como polarizado em dois ou três tipos maiores de diferença. A questão começa por ser política, pois assim como não se nasce mulher, também não haverá genericamente «Mulheres» mas mulheres menstruadas ou na menopausa, férteis ou inférteis, europeias secularizadas ou afegãs de burka, etc.

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Marx & Engels: 750 exemplares

Posted in Livros, Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Quarta-feira, 14-01-2009

marxengels

As Edições Avante! (não esquecer o ponto de exclamação) republicaram há meses o tomo I das Obras Escolhidas de Marx e Engels, uma edição com data inicial de 1982-83, em três tomos. Da responsabilidade de José Barata-Moura, Eduardo Chitas, Francisco Melo e Álvaro Pina, o volume surge editado com o cuidado filológico que se esperaria dos organizadores e inclui, entre outras coisas, alguns dos grandes textos do Marx «jornalista»: «As Lutas de Classes em França de 1848 a 1850», «O 18 de Brumário de Louis Bonaparte» ou os textos sobre «A Dominação Britânica na Índia», em boa medida responsáveis pelo afastamento de Edward Said em relação ao marxismo. Isto para lá dos textos sobre «a questão judaica», o «Manifesto do Partido Comunista», ou o «Para a Crítica da Ecomonia Política».

É inútil chamar a atenção para a importância deste volume e destes textos. Mas como a insistência periódica em proclamar «retornos a Marx» parece sugerir que a amnésia – ou o primarismo de declarar Marx «ultrapassado» – vai também vitimando estas obras, permito-me citar as extraordinárias palavras iniciais do «18 de Brumário…»:

Hegel observa algures que todos os grandes factos e personagens da história universal aparecem como que duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: uma vez como tragédia e a outra como farsa. (…)

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas. A tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo. E mesmo quando estes parecem ocupados a revolucionar-se, a si e às coisas, mesmo a criar algo de ainda não existente, é precisamente nestas épocas de crise revolucionária que esconjuram temerosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem de combate, a sua roupagem, para, com este disfarce de velhice venerável e esta linguagem emprestada, representar a nova cena da história universal. Assim, Lutero disfarçou-se de apóstolo Paulo, a revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente com a  roupagem da República Romana e do Império Romano, e a revolução de 1848 nada soube fazer de melhor que parodiar aqui 1789 e ali a tradição revolucionária de 1793 a 1795. Assim o principiante que aprendeu uma nova língua: tradu-la sempre para a sua língua materna, mas só se apropria do espírito da nova língua e só é capaz de se exprimir livremente nela quando se move nela sem reminiscências e esquece nela a sua língua original. (pp. 434-5)

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Dicionários & funcionários (II)

Posted in Média, Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Terça-feira, 06-01-2009

link

Volto à minha inexistente antologia, uma vez que todo este arrazoado serve de facto para apresentar aquele que é o meu «poema de dicionário» preferido em português de Portugal (que na altura incluía as colónias): «Amor das Palavras», de Rui Knopfli, incluído no seu primeiro livro, O País dos Outros, de 1959. Escrevi em tempos sobre o potencial didáctico deste poema, mas queria concentrar-me agora na questão do dicionário, ou melhor, na da historicidade da nossa relação com o dicionário «na era da acessibilidade técnica». Passo, pois, a reproduzir o poema, ligando as ocorrências lexicais mais problemáticas às soluções propostas pela recente ferramenta linguística em linha Português Exacto. Registo no mesmo plano os casos em que a ferramenta se revela impotente, impotência que opto por não suplementar com o recurso a outras ferramentas: 

AMOR DAS PALAVRAS

Amo todas as palavras, mesmo as mais difíceis
que só vêm no dicionário.
O dicionário ensinou-me mais um atributo
para o sabor dos teus lábios.
São doces como sericaia.
Faz-me pensar ainda se a tua beleza não será
comparável à das huris prometidas.
No dicionário aprendi que o meu verso é
por vezes fabordão e sesquipedal.
Nele existe o meu retrato moral (que
não confesso) e o de meus inimigos,
rasteiros como seramelas sepícolas
e intragáveis como hidragogos destinados à comua.
O dicionário, as palavras, irritam muita gente.
Eu gosto das palavras com ternura
e sinto carinho pelo dicionário,
maciço e baixo, e pelo seu casaco, azul
desbotado, de modesto erudito.

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Estes tempos vagarosos (III)

Posted in Crítica, Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Quinta-feira, 01-01-2009

A estrofe intermédia do poema de Cláudia Santos Silva parece introduzir a questão maior da lírica: a representação da voz pessoal, patente em algumas instâncias decisivas: (i) na passagem da Natureza à História, e na versão desta como sendo feita «por nós», i.e., por sujeitos «dotados historicamente de voz»; (ii) na substituição do desejo de um devir-mudo por uma declaração categórica (e vocalmente poderosa) sobre o mundo; (iii) enfim, e numa ocorrência discursiva de superfície gerada por tudo isto, no recurso a formas verbais como «falo», digo» ou «não me calo».

Não significa isto, obviamente, que a «voz» não seja também instanciada pela lírica nas estrofes inicial e final. O modo dessa instanciação é porém repressivo (auto-repressivo) e a sua fundamentação é, em rigor, ético-moral: «erguer-me como uma árvore assimétrica na torrente» (eu sublinho) é uma forma de protesto e não anda longe daquela ambígua radicalidade do protesto do místico, em que recusa e abdicação caminham lado a lado. A auto-repressão da voz na forma naturalizada da árvore assolada pela Natureza, mas também desafiadora desta, surge aqui matizada e mediada pela figura do exemplum: alguém se ergue como uma árvore, e resiste; e esse exemplo dispensa palavras, como todos os verdadeiros exemplos ético-morais pedem antes o nosso assentimento mudo. Noutros termos, o casamento de poesia e auto-repressão dá a ver a estrutura ideológica da repressão, que em rigor é uma estrutura retórica: um movimento substitutivo entre Sujeito e Natureza, ou melhor, o cancelamento e congelamento de todos os deslocamentos figurais entre essas duas entidades. Quando o sujeito devém Natureza, torna-se evidente a natureza da repressão: estátua agrilhoada ao mundo natural, «comida» (heras, líquenes) por ele.

Ainda assim, esta estrutura não é perfeitamente simétrica, exactamente como só na Natureza, com maiúscula, podemos representar árvores perfeitamente simétricas (embora, nesse ponto, haja decerto em cada um de nós um Mondrian desejoso de desenhar árvores por esquadria). As árvores não existem porém na Natureza mas no mundo fenomenal e, apesar das aparências, ou da nossa tentação para representar aparências como perfeitas projecções esquemáticas, são criaturas de uma história silvestre. Eis porque esta árvore tropológica na torrente não abdica, não pode abdicar, inteiramente do fenomenal, não conseguindo deixar de ser uma figura da contingência ou da historicidade desta encenação da voz reprimida. Pois não é difícil reconhecer nesta «torrente» na qual e contra a qual se ergue a árvore o rumor figural de uma História entretecida do murmúrio de um milhão de vozes reprimidas e, como diria Benjamin, recuperáveis apenas por uma leitura «a contrapêlo», que neste caso nos desse também a ler a dimensão estratégica desta auto-repressão da Voz: uma naturalização que é uma moral que é uma política que é um tropo duma «ordem natural» por vir. Um dia, esse dia prometido pela torrente da Natureza (uma torrente na qual não consigo deixar de ouvir um eco do «Da violência», de Brecht), toda a eloquência será dispensável (posição politicamente muito questionável, aliás).

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Estes tempos vagarosos (II)

Posted in Crítica, Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Sexta-feira, 26-12-2008

Como seria de esperar, também entre nós houve uma torrente de reacções à vitória de Obama. Nenhuma, porém, tão fulgurante como a deste poema de Cláudia Santos Silva. Li-o apenas há dias, passado o tempo, e sobretudo o sem-tempo, desse acontecimento maior. É um poema a dois tempos, aliás: o tempo primacial da Natureza, cuja longa duração não está no nosso tempo; e o tempo de uma história que, mesmo quando acelera, é sempre demasiado vagarosa para a vertigem da nossa brevidade. A primeira estrofe, que regressa assimetricamente no fim do poema, propõe uma «naturalização» do sujeito, que surge recoberto (recoberta, uma vez que se trata de um sujeito-fêmea) pela Mãe-Água, dentro de uma como que campânula, para cuja descrição mais perfeita poderíamos abonar-nos naquela que Adorno oferece, em vários lugares da sua obra, da mónada artística: separada do mundo da razão instrumental pela ténue película daquilo que nela é dialectizável, nos termos necessariamente abstrusos da «dialéctica negativa», como negação. Neste caso, uma imersão do sujeito na Natureza, que inscreve drasticamente a lírica no canto mudo do mundo (a primeira estrofe termina com a proposta de um orfismo em que a voz da natureza dispensasse a voz, por definição dispensável ou secundária em relação à natureza, da linguagem verbal). Será o emudecimento da lírica no seio da mãe-natureza, nos termos aqui propostos, ainda dialectizável como negação? E não será essa a grande questão deste poema?

Notemos que esta naturalização, que devíamos começar por tomar na acepção técnica de um tropo inverso do antropomorfismo, é-nos proposta, de facto, como uma cena de estatuária. Até metade do verso três, a cena é objectual e desprovida de marcas do sujeito – «a água corre pelas pálpebras pelas pontas do cabelo / curva na escápula nos seios no ventre nos joelhos / contorna as palmas dos pés» -, que só surgem no termo desse verso. Só aí, em «liberta-me o semblante», a deixis da primeira pessoa entra em cena e satura o verso que se segue – «sento-me no chão e penso» – e o que se segue da estrofe. O sujeito imobilizado sob a película (o celofane) da Mãe-Água é de facto um sujeito- monumento, oferecendo-se como Vénus na Natureza e, ao invés, oferecendo a Natureza como Vénus: princípio gerador, anexação do feminino e da fêmea ao mundo natural, redondeza contemplável (pois nenhuma aresta resiste ou sobrevive ao lento moer das águas). É necessária a alteração gramatical do verso três, com a irrupção do deíctico pessoal, para nos apercebermos de que a estátua vive: mexe-se, pensa, deseja. Curiosamente, o que esta estátua deseja é deixar de ser uma entidade desejante. O ioga seria apenas o primeiro estádio de um processo de re-naturalização que faria agora do corpo-estátua uma «árvore assimétrica na torrente»: «de quando em quando o vento arrancar-me-ia uma ou outra ramada / talvez me cobrissem heras ou vinha virgem / não usaria de palavras não as escutaria».

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Dicionários & funcionários (I)

Posted in Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Quarta-feira, 24-12-2008

New Dictionary Words

Na sequência disto, ocorreu-me uma ideia antiga, admito que perversa: uma antologia de poemas com vocabulário rico, ou, se se preferir, raro (seria melhor dizer: rarificado pelo uso, isto é, pela doxa), e por isso de leitura pressupondo o dicionário. Um livro que exigisse a companhia de um desses vastos, pesados e exigentes companheiros de leitura e que fosse em si mesmo uma pedagogia do dicionário. Um livro, enfim, que combatesse as consequências mais questionáveis da política de língua adoptada pela burguesia que fundou ou refundou o Estado-Nação de Oitocentos, de que entre nós Garrett é o melhor exemplo: moderação lexical, recusa de vocabulário marcado por tipicismos locais, classistas (aristocráticos e populares) ou historicizantes, registo «médio», distensão coloquial. Em Garrett, isto dá o admirável português laboratorial das Viagens; em Eça, abre-se já o perigoso caminho para a pobreza lexical que, por meio do triunfo da imprensa que nele sempre se reviu, alimentou e legitimou, define os usos dominantes hoje, o literário incluído.

É difícil, de facto, não ficarmos impressionados com o panorama actual dos usos do português, mesmo nos melhores escritores de hoje: tudo se passa, no domínio do léxico (para não falar do trabalho sobre a sintaxe), num espectro muito reduzido, e incapaz de se distinguir dos usos correntes e mediáticos, como se estivéssemos – e é minha convicção que de facto estamos – no momento terminal de um processo, com cerca de dois séculos, de (re)produção de uma norma passível de tradução num «capital linguístico» socialmente acessível e distribuível por vários meios e instituições, com a escola e os média à cabeça. O aspecto curioso disto é o facto de a literatura ter sido instrumental na produção desta norma linguística, como percebemos em Garrett, não só nas Viagens mas em tudo o que escreveu sobre o idioma. Em grande medida, a Literatura, enquanto construção moderna e burguesa, foi o que foi nestes dois séculos em virtude do seu papel decisivo na produção dessa norma que forneceu, por exemplo à sociedade portuguesa, um idioma «democrático», supostamente universal, forjado nos textos e difundido pela escola. O paradoxo desta questão reside em que é a força dessa norma, ou do ideal que a regula, que, ao afastar cada vez mais a literatura do dicionário, o mesmo é dizer, ao anexá-la a usos cada vez mais pobres do idioma, a vai também banalizando entre os usos correntes da língua, num processo, que é também (sempre o foi) político, de esvaziamento histórico do lugar idiomático e cultural da literatura. Um típico caso, pois, da criatura que escapa ao controlo do criador, se é que a não devora no fim da história. 

Esse triunfo explica aliás a dificuldade de produzir revisionismos que atribuam um papel central a um autor tão extraordinário nos usos do idioma como Camilo, objecto ainda hoje do anátema lançado por Eça:  as suas personagens seriam «insuportavelmente bem-falantes», como se a divergência entre oralidade e escrita não definisse todas as personagens da literatura, incluindo as tão bem-falantes de Dinis Machado, no sobrevalorizado O que Diz Molero, uma obra maior no processo que venho recenseando; ou um revisionismo que atribuísse um papel central, por razões diversas, a Aquilino. Ou ainda o cunho «genialmente isolado», muito difícil de traduzir em exemplum, do trabalho de um Guimarães Rosa no português literário do século XX, que nele abrange léxico (e recomposição morfológica e semântica) mas também sintaxe. E não sugiro com este último caso que o devir desta questão é no Brasil idêntico ao português, longe disso, mas apenas que as suas consequências são, creio bem, assaz próximas. Como se vê aliás no recente A Viagem do Elefante de Saramago, a riqueza lexical ou sintáctica parece hoje marcada pelo estigma de um estranho ideologema: aquele que insidiosamente sugere que tal só é aceitável sob a forma de pastiche ou paródia de um estilo, que é um mundo mas também uma política de língua, irremediavelmente devolutos. A recepção típica deste último romance do autor mostra também o tropismo mais reconhecível do nosso «homem de Letras» de hoje ante esse fenómeno: um deslumbramento a priori pela técnica da coisa, mesmo que a coisa em si já não nos diga grande coisa («O melhor Saramago dos últimos dez anos», elogio que resgata a superfície do texto – léxico, escrita, estilo – mas depois sugere que o romance tem, como quase sempre no autor, problemas estruturais).

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Cannibal & Co. (II)

Posted in Notas by Pedro Serra on Terça-feira, 02-12-2008

Depois disto, isto de Luís de Montalvor, 1929:

JOSEFINA BAKER

De qualquer ilha escondida
no quente mar colorista,
veio essa Baker trazida
pla mão da 5ª avenida:
o roteiro fantasista.

Essa negra Josefina
deixou Colombo vexado
ligando a terra-menina,
que é branca e Greco-latina,
ao continente sobrado…

Um demónio de negrura:
trópico aroma se exala.
Seu corpo a imagem e figura
de um brônzeo clima, em tontura,
cercando à noite a senzala.

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Posta restante (II)

Posted in Notas by Pedro Serra on Domingo, 30-11-2008

posta-restante-bom

De: Miguel Espinosa

A: Fiama Hasse Pais Brandão

 

Depois recitaram este passo do Poema de Veríssimo1 a Cirilo: 

Eis a verdade:
ninguém nasceu matando,
nem se configurou decapitador
no ventre originário,
Procônsul, Grande Espada,
nem universal degolador.
Aprendeu, sim, a destripar,
como aprendiz empírico,
alentado pela tradição e o conselho
dos veneráveis padres.
Porque não há saber nem perícia
anterior aos mandarins. 

1 Poema de Veríssimo: depois de Cirilo se ter declarado Ditador, um eremita, chamado Veríssimo, ofereceu-lhe um Poema tão ambíguo que não esclarecia se continha apologia ou burla do Feliz Governo. A obra, todavia, (more…)

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Do mundo inútil

Posted in Autores, Comentários, Notas, Notícias, Recensões, Vária by Luís Quintais on Quinta-feira, 27-11-2008

283aQualquer texto num blogue parece exigir uma representação visual que não se limite àquela que a escrita vai compondo. Uma fuga à monotonia, à melancolia da leitura, à impossibilidade de conquistar seja quem for através das palavras, somente. Uma capitulação atestada da linguagem? Dir-se-ia que fazer acompanhar um texto com imagens se presta a todos os equívocos, mas também a descobertas desconcertantes.

Os livros de WG Sebald, na sua constante reinvenção desse espaço que vai da representação à irrepresentação (como se a “realidade”, a mais dura das categorias, nos colocasse sempre perante uma espécie de exigência ou repto do que não pode ser mediado e que, paradoxalmente, exige constante mediação) são uma das mais originais incursões em torno deste território grave e perigoso. Quando lemos Sebald, questionamo-nos sempre acerca deste trabalho de ousadia – e talvez de vergonha extrema – que é levar a literatura até ao seu limite (esse lugar onde a literatura ou a arte poderão ser somente uma impertinência) e conquistar esse limite: um limite trágico, porque todo o fracasso é aí a afirmação de uma atribuição humana que excede os recursos do indivíduo e que o coloca à beira de uma fatalidade expressiva, que é a de deixar de falar de si, irrevogavelmente. O que fala através de si em Sebald?

Não o sabemos, e não sei se é muito importante sabê-lo. Tudo isto para chamar a atenção para um magnífico (e ousadíssimo) ensaio de Jorge Leandro Rosa sobre as mais devastadores fotografias que conheço, porque produto não da autoria, mas de tudo o que lhe excede, e que fará da representação, da sua possibilidade, uma aposta de testemunho e de sobrevivência. Refiro-me às fotografias que alguns elementos dos Sonderkommando tiraram clandestinamente – em circunstâncias de difícil esclarecimento – dos campos e do seu trabalho. Estas imagens – que estão no centro de uma controvérsia recente que implica Georges Didi-Huberman, Gérard Wajcman e Elisabeth Pagnoux – conduzem Jorge Leandro Rosa a uma reflexão que se joga nas codificações (justificadas ou não, do irrepresentável). Transportam-nos, como não deixa de salientar, para uma certa acepção de «infinito» ou vazio que é o símile de um horror sem autoria. Escreve Jorge Leandro Rosa:

«E há a questão daquilo que podemos designar como paisagem. Estes corpos (e o corpo do fotógrafo também) perdem-se na paisagem por diversas razões. Perder-se na paisagem é perder a própria qualidade da presença, já que a paisagem é presença sem nunca ser outra coisa, senão no artifício da representação. Ora, o que caracteriza um corpo é que este é sempre qualquer coisa sem nunca chegar a estar puramente presente. Só a carne pode ser como a paisagem, só a carne pode chegar como a paisagem ao mundo sem nunca nele ter estado verdadeiramente e sem nele marcar um lugar preciso. Sem qualquer pretensão sobre o sentido, a paisagem cresce tanto mais na consciência pictórica europeia quanto esta deixa de ser uma consciência enraizada naquilo que faz sentido. Como lembra Jean Luc-Nancy, a paisagem ‘é o lugar da estranheza e da desaparição dos deuses’. Há paisagens com horizonte, que são aquelas que reenviam para a imprecisão infinita do próprio limite do olhar, e há paisagens sem horizonte, mas que o substituem por linhas de fumo, por grupos de árvores, pela luz solar em frente do observador. Temo-las aqui. Essas são as paisagens que, de alguma forma, fizeram o mundo inútil, já que toda a observação é paisagística no sentido de ser injustificável.» («O inimaginável: leituras dos corpos e das suas imagens», in Nada, nº 12, pp. 118-119).

Luís Quintais.

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Kant na noite do Ártico (2), ou homenagem a Claude Lévi-Strauss

Posted in Crítica, Notas, Notícias, Oficina by Luís Quintais on Quinta-feira, 20-11-2008

1176309419_01[Retomo o meu Kant na noite do Ártico. Claude Lévi-Strauss fará no próximo dia 28 de Novembro cem anos. Aqui a celebração já começou há algum tempo. Esperemos que em Portugal se esqueçam desta vez da doxa, e nos dêem uma homenagem à altura do homem que abomina a doxa].

Uma homologia entre a multiplicidade de aspectos da vida social é reclamada em Lévi-Strauss. Tal homologia depende, em grande medida, dum nível profundo de invisibilidade que se traduziria num código universal, isto é, numa ur-matriz que definiria a semelhança entre estruturas linguísticas e simbólicas ou culturais. De outro modo ainda, dir-se-ia que Lévi-Strauss reclama uma congruência entre o exterior e o interior, entre a superfície e a profundidade. Para ele, existe uma ordem no mundo exterior e existe a nossa percepção e conceptualização dessa ordem. Entre estes dois universos, um exterior e outro interior, não existe qualquer incompatibilidade. Acresce ainda que tal congruência não é demonstrável. Reclama-se pois uma espécie de continuidade tácita entre o sensível e o inteligível.

A articulação entre o sensível e o inteligível terá de ser compatível com as leis universais que regem o espírito humano. A estratégia lévi-straussiana funda-se numa congruência entre exterior e interior que, de algum modo, é preservada pela linguagem e pelas culturas tomadas como instâncias de mediação do sensível e do inteligível. O mundo out-there pauta-se por princípios de ordem que a linguagem espelha e assume transversalmente: a eficácia das palavras e a eficácia dos princípios de ordem que as animam podem ser encontradas, por exemplo, nas trocas matrimoniais, e no modo como estas fazem preservar uma espécie de óptimo contratual básico sem o qual não é possível haver sociedade. E estes princípios de ordem dizem-nos tanto do funcionamento da sociedade quanto do funcionamento do «espírito humano» e da sua arquitectura neuronal: a sociedade, a mente, o cérebro, são assim avataras uns dos outros, avataras de uma natureza que se desdobra em «formas» que podem ser reconstituídas porque aquele que as reconstrói reconhece em si o trabalho e a inapagável presença de tais formas. A linguagem (entre o som e o sentido) é aqui transversal a esta recursividade entre ordens de complexidade diversa.

O confronto com a natureza – a selva amazónica – e com as suas formas é assim transposto, numa recursiva e constante viagem sem paralelo, para um confronto com aquilo que está inscrito na natureza profunda do humano que aqui é ainda o Homem. Os povos da Amazónia epitomizam, mas suas mito-lógicas, aquilo que de mais profundo e mais singular se faz inscrever nas produções culturais humanas: o espírito e as suas regras, que funcionam aí, ainda, numa transparência que a modernidade se encarregaria inelutavelmente de toldar.

O crepúsculo da cultura seria assim a turvação completa dessa Razão magnífica. Kant na noite do Ártico, mas também Kant na Amazónia. Porque as viagens de Lévi-Strauss seriam afinal uma demanda por um lugar onde o brilho escondido do humano poderia ainda ser contemplado, apreciado, como quem contempla ou aprecia uma paisagem ou uma peça de Racine ou uma página de Proust. Porque algures nessa heterotopia da Razão se poderia identificar ainda a essência mito-lógica da mente entregue a si mesma.

Dir-se-á que Lévi-Strauss incorre aqui numa espécie de invulgar primitivismo: a mente ameríndia é a epítome da Razão humana, por excelência; mais: a mente ameríndia presta-se – pela sua transparência – a uma incursão na mente tout court, já que a complexidade das cidades e das aquisições da vida moderna resvalam flagrantemente para a opacidade dos desígnios do humano, o mesmo é dizer, para o crepúsculo da cultura e da Razão. E veja-se o que Lévi-Strauss escreve sobre a arte moderna, para compreendermos este negrume que parece atravessar, para ele, as produções humanas que o cânone civilizacional ocidental foi propondo.

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«O meu fim é o meu começo»

Posted in Notas, Notícias by Osvaldo Manuel Silvestre on Sábado, 15-11-2008

coliveira

«O meu fim é o meu começo»: de Machaut a Eliot ou a Carlos de Oliveira, o fim parece ser indissociável da questão do «depois do fim», ou melhor, de um depois do fim tematizado como uma necessária figura do recomeço. Seria tentador ver aqui a funcionar a perfeição de um anel de Moebius que nos lançasse em permanência na outra face de um tempo sem fim, mas essa teratologia não está, felizmente, ao nosso alcance. E no fundo, talvez a literatura exista apenas para nos dizer isso: que depois do fim só a palavra (escrita).

A melhor maneira de entrar nesta questão parece-me ser um episódio biográfico que em tempos me foi contado por Ângela de Oliveira, figura da obra e Grande Oficiante da escrita/reescrita de Carlos de Oliveira. Pouco tempo após a edição de Finisterra. Paisagem e Povoamento, Carlos de Oliveira foi visitado por Eduardo Lourenço, no que seria o último episódio de um encontro cujo episódio inicial terá ocorrido nesta cidade de Coimbra e nesta Faculdade de Letras, três décadas e meia antes. A certa altura da conversa, Eduardo Lourenço terá perguntado a Carlos de Oliveira: «E depois de Finisterra, Carlos?» Ao que o autor terá respondido: «Depois de Finisterra, nada. Acabou.» Depois de Finisterra, ou melhor, depois do par Finisterra/Pastoral, estaríamos nesse momento quando nada vem já depois do fim. E contudo, a própria biografia nos dá uma versão outra desse momento depois do fim. Porque sabemos que de facto Finisterra não foi o fim, assim como depois de Pastoral houve ainda 3 ou 4 poemas extraordinários enquanto justamente versões do fim. O fim, em rigor o depois do fim que Finisterra teria sido, foi um recomeço, isto é, a reescrita de Alcateia, obra expurgada pelo próprio autor desde cedo e a que, surpreendentemente, regressa nesse fim já póstumo em relação a Finisterra. Sabemos, também por Ângela, dos pormenores dessa última anti-epopeia: a reescrita, as versões, a obsessão mortificante contra a contaminação da prosa pelo decassílabo, por exemplo. Mas sabemos sobretudo do fim dessa história semipóstuma: poucos dias antes de morrer, o escritor pede/ordena a Ângela que ponha todo o trabalho num saco e o vá deitar ao lixo. Restam 2 ou 3 páginas desse episódio final.

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Livros Cotovia, vinte anos

Posted in Comentários, Notas, Notícias, Vária by Luís Quintais on Sexta-feira, 31-10-2008

Mapa de afectos. Idos anos noventa. Princípios, certamente. A minha descoberta da Cotovia coincide com uma espécie de existência pessoana que atravessava então os meus dias e que constitui hoje uma das mais gratificantes memórias que tenho de Lisboa.

Trabalhava na Rua do Loreto com os meus tios e primos numa pequena empresa de contabilidade e auditoria que já não existe. Os meus vinte e poucos anos eram uma demanda pelas ruas da cidade, entregando trabalhos concluídos, recebendo outros que teriam por destinatários os exímios mestres contabilistas, os meus tios Fernando e Gabriela, o meu primo João e o magnífico leitor de Proust que era o João Pedro Carreira. Uma existência pessoana ou walseriana, porque, de algum modo, o escritório da Rua do Loreto (que dava para o Bairro Alto numa iluminação tranquilizadora digna de Vermeer que fiz celebrar num dos meus poemas de A Imprecisa Melancolia) era uma espécie de Instituto Benjamenta, mas onde a crueldade tinha sido substituída integralmente pela ironia, uma arte cultivada com o rigor e a probidade com que se assentava numa linha de um livro de balanço. A rua, todas as ruas que na Rua do Loreto encontravam um centro irradiante, transportavam-me para formas de onirismo indisciplinado que nunca mais voltei a conhecer. Como se o meu Instituto Benjamenta (lugar de ofício, ironia, e extremo bom senso também) – o escritório do meu tio Fernando – tivesse um contraponto nessa encruzilhada de símbolos que habitavam a superfície do quotidiano. A minha vida era uma forma espacializada de «abandono vigiado», a usar um título de O’Neill que é, como se sabe, todo um programa. Um contraponto numa encruzilhada de símbolos e de lugares como, por exemplo, a belíssima Livros Cotovia na Rua Nova da Trindade, aí, numa das fronteiras invisíveis da cidade, aquela que coincide com as Escadinhas do Duque e que dá acesso ao Rossio – essa sempre eterna despedida da vida, como me recorda António Maria Lisboa – e à linha de fuga que é o Terminal ferroviário onde história, violência e margem vinham hibridizar o meu mapa de afectos.

Como flâneur e leitor descobri a Cotovia naqueles primeiros anos da década de noventa. E o que lia eu naquela altura? Poesia, sobretudo. E através da poesia descobri uma revista magnífica que a Cotovia fazia publicar. Refiro-me à entretanto desaparecida (uma das memoráveis desaparições da minha vida de leitor) As escadas não têm degraus. Descobri também um dos escritores da minha vida, Edmund Jabès. Não me esqueço nunca de A obscura palavra do deserto, uma poesia que me parece longe, bem longe daquilo que motiva uma parte significativa dos poetas contemporâneos mais canonizados entre nós, e talvez ainda bem porque Jabès será sempre coisa de poucos, enigma de muitos, e o ruído e a sobredeterminação das glórias literárias sempre me aborreceu infinitamente. Depois vieram outros, tantos, que o catálogo da editora discretamente descreve, revela.

A Cotovia é uma editora que permanece, pelo seu catálogo, pelo rigor com que trata os seus autores e os seus textos, fora daquilo que é o mundo editorial português, e não só. Dir-se-ia que, como o Jabès, permanece fora daquilo que convencionamos hoje por literatura ou por edição, e com isso ensina-nos como se pode sobreviver sem beneplácito nem usura. Um dos grandes méritos é nunca ter confundido livros com literatura. Outro dos méritos é ter enobrecido, pela sóbria singularidade do desenho do seus livros, a literatura, como provavelmente muito poucas editoras o fizeram. Como se não misturasse livros com literatura, mas soubesse perfeitamente onde está o lugar – an Italy of the mind, escreveria certeiramente Wallace Stevens – onde literatura e livros se encontram, se encontrarão sempre.

Tudo isto pode ser atribuído, com inteira justiça e justificação, a André Fernandes Jorge. Aí está alguém que dispensa elogios ou encómios, mas de quem é um privilégio poder reconhecer entre os nossos amigos mais admirados, por mim, por todos aqueles que o conhecem e que com ele têm colaborado. Porque a amizade é ainda um dos poucos círculos iluminados de lealdade que conheço. Parabéns Cotovia, parabéns André!

Luís Quintais (texto incluído em Não será por acaso, 20 anos, Lisboa, Livros Cotovia)

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Finis terrae?

Posted in Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Sexta-feira, 24-10-2008

Os peregrinos deslizam nas paredes. Silhuetas a arder sobre um fundo rugoso. O gado atrás: cavalos rastejando, os carneiros maiores que os bois. Sobem barrancos de estuque, películas de cal inchada pela humidade; afundam-se em manchas de bolor; alongam-se ao dobrar os quatro cantos da sala, que os flectem, projectam para diante. Nas portadas da janela, as figuras tornam-se quase ruivas: a luz do halo atravessa a madeira e o seu poder continua. Caminham com o movimento articulado duma lanterna mágica, que não esfuma os contornos. Ao contrário: vultos de grande nitidez marcham num gráfico anguloso mas firme. E de súbito, param. Não tropeçam, nem se atropelam uns aos outros, param simplesmente no relevo do écran. Ao alto, nuvens presas por fios de cenário (invisíveis) detêm-se também.

Põe a lupa em cima do desenho e as imagens no estuque crescem quatro ou cinco vezes.

Como se chama o filme?

Não respondem.

Peregrinação?

Silêncio.

Finis terrae?

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Posta restante (I)

Posted in Notas by Pedro Serra on Terça-feira, 21-10-2008

Dou início, com este “Posta restante”, a um conjunto finito de posts com pequenos fragmentos, mínimos trechos recortados, de diferentes lugares da opera omnia de Miguel Espinosa. Fragmentação, recorte, tradução, são da minha responsabilidade, pelo que passarão a ser assinados estes posts com o sintagma “Miguel Espinosa”. Cada fragmento, cada trecho, cada lugar será endereçado a um poeta ou a um romancista de língua portuguesa. Deste modo, o conjunto finito de posts agora encetado constitui a ficção de um diálogo epistolar impossível entre Miguel Espinosa e a literatura em língua portuguesa, ou melhor, uma conversa muda entre Miguel Espinosa e os escritores em língua portuguesa de todos os tempos e de todas as geografias. Desta conversação só advirá um tremor inquietante, uma espécie de frio como aquele que se sente nos espaços infinitos dos Intermúndios de Epicuro, a comoção gelada dos tratos civis entre vivos. Eis, assim, o primeiro “Posta restante”:

De: Miguel Espinosa

A: Ruy Belo

(more…)

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Cannibal & Co. (I)

Posted in Notas by Pedro Serra on Quarta-feira, 15-10-2008

Your meat is sweet to me, your destiny, your fate. You’re my life support, your life is my sport:

Grace Jones, Cannibal Corporate, 2008. Nick Hooker, dir.

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Do cuidar que se ganha em se perder

Posted in Notas by Pedro Serra on Quinta-feira, 02-10-2008

– Quê?!

– Nada. Toma:

Pedro Serra

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Considerações desencantadas sobre a FNAC

Posted in Comentários, Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Quinta-feira, 02-10-2008

Nem de propósito, a decisão da FNAC no sentido de acabar com o desconto generalizado de 10% no preço de capa dos livros, limitando-o aos portadores de cartão FNAC (que entretanto mudou de natureza, passando a ser na prática um cartão de crédito, coisa que não tem sido referida e traz em si vastas consequências), coincidiu com o apogeu da crise do subprime: estava o mundo aflito com a decisão, inteiramente racional, do Congresso americano no sentido de rejeitar a panaceia «nacionalizadora» de Bush (que de ironias supostamente pós-históricas…), e eis que a FNAC mostra como funciona a Realpolitik do capital: optimizar mais-valias, chama-se a isto.

Convinha recordar duas ou três coisas a que ninguém ligou a seu tempo (era então o tempo da «Europa», vale dizer, da euforia do pugresso, como dizia Cavaco). A FNAC Chiado arrasou com a grande discoteca da Valentim de Carvalho e, por arrasto, com a própria Valentim (o que mais ou menos aconteceu de forma idêntica com a Roma Megastore, no Porto). A oferta propriamente em discos da FNAC Chiado era, como é, generalista, na melhor hipótese, e muito inferior à da Valentim de Carvalho ou da Roma; é certo que estávamos no começo do fim do negócio dos discos, mas o efeito de concentração das valências comerciais da loja mostrou todo o seu poder, aí e em relação a todo o negócio do livro. Na altura, porém,  a FNAC ainda era aquela entidade a que, na juventude, fiz visitas obrigatórias na Rue de Rennes, por exemplo, pelo que se acreditou, a seu respeito, naquilo que ainda há dias ouvi Pacheco Pereira debitar a propósito da crise actual: tratar-se-ia de mais uma ocorrência da «destruição criadora» do capitalismo (Schumpeter treslido dá para tudo). Entretanto, em França a FNAC tornou-se uma rede livreira com lógica de hipermercado; e, com a décalage do costume, é o que estamos a ter por cá também (alguém se lembra ainda, por exemplo, da secção de poesia da FNAC Chiado do início?).

A decisão da FNAC, comentada com fundamentação vária pelos Booktailors, por Jorge Reis-Sá, por Jaime Bulhosa ou por Sara Figueiredo Costa, tem em teoria económica uma definição clássica, que mais uma vez me chegou por Manuel Resende: eliminar a concorrência e ditar a lei. Porque a concorrência foi de facto eliminada e aquilo que temos, do lado da Bertrand, é o que se sabe (a Bertrand pode proclamar agora o facto de ter «profetizado», na sua prática, as transformações da FNAC…), e do lado das livrarias independentes é demasiado dependente dos atavismos de sempre para ser realmente alternativo e concorrencial (as excepções são cada vez mais excepcionais e a criação das «Livrarias Independentes» não trouxe qualquer alteração para melhor, lamento dizê-lo). Não me vou repetir, pois já exprimi por mais de uma vez o meu desencanto de frequentador de livrarias face ao panorama actual. Resta-me esperar que uma rede de dimensão intermédia como a Almedina saiba resistir e entender que há um espaço no mercado para quem tenha algum peso negocial; ou seja, que tenha a inteligência para perceber que há muitos públicos que não se reconhecem nem fundem necessariamente no público. Continuarei pois fiel à Almedina Estádio, em Coimbra, neste momento provavelmente uma das duas ou três «grandes livrarias» que restam neste país (sendo uma das outras a Almedina Saldanha).

Osvaldo Manuel Silvestre

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Are you (still) ready to be heartbroken?

Posted in Autores, Comentários, Notas by Luís Quintais on Quinta-feira, 25-09-2008

Quantos são capazes ainda de o lembrar no improvável Rock Rendez Vous a debitar electricidade e filigrana literária com os Commotions? Quantos de nós não fomos ler o grande Norman Mailer por causa dele? E ele regressa vezes sem conta e faz, diz-se, quase sempre o mesmo: guitarra de caixa e o talento do singer/songwriter numa espécie de nudez que torna as palavras ainda mais certeiras: dura nostalgia, a de estarmos todos muito velhos já, mas disponíveis, como sempre, para o desastre, para a mais-que-perfeita melancolia. Ou talvez não: No longer driven to distraction/ Not even by Scarlett Johansson.

Luís Quintais

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Paulo Henriques Britto (III)

Posted in Autores, Notas by Osvaldo Manuel Silvestre on Sexta-feira, 19-09-2008

Da série «Quatro Autotraduções», o primeiro e o quarto poemas:

 

SONETO SENTIMENTAL

O que você chama de amor é isso?
Essa perda do parco tempo e espaço
que ainda te restam, esse desperdício
de esperma? Esse viver sempre em compasso
de espera, sempre com o mesmo desfecho
que te faz dar o que te falta mais?
Que amor mais besta – uma espécie de peixe
palerma, que nada, nada e não sai
do lugar – é isso? Esse diz-que-diz
que não te deixa louco por um triz
e só te inspira mesmo ódio e horror?
Que te machuca tanto que no fim
não dá para perdoar? É isso? Sim,
é isso que você chama de amor.

 

SONETO SIMÉTRICO

Será o pavão vermelho? Ora, direis,
este raio não cai mais do que uma vez
no mesmo lugar – é a prova dos nove,
é Götterfunken, uma coisa arisca
só dada (e olhe lá!) a quem é jovem,
que ainda guarda em si uma faísca.
Porém, passado o mezzo del camin,
às vezes uma luz fraquinha pisca,
e é como se sumisse uma neblina
que há muito esconde uma paisagem bela.
É ela, sim – pensa você – ali, na
sua frente. Ou talvez a parte dela
que ainda lhe cabe. Encha os pulmões de ar.
Goze esse instante. Ele não vai durar.

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