Os Livros Ardem Mal

Dicionário Crítico por Intermitência: Movimentos Poéticos (IV e último)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Quarta-feira, 16-09-2009

Biopoesia (Desde 2001, primeiro em Lisboa, depois S. Paulo, NY, o mundo). As primeiras tentativas, envolvendo cientistas do Instituto Gulbenkian de Ciência, datam de 2001, e foram conduzidas pelo biopoeta Albano Martins (1977, Gondomar). No início, tratou-se de produzir poemas visuais de grandes dimensões em contexto de galeria, explorando mensagens simples, fazendo com que as palavras, em várias cores, se formassem a partir de células humanas pintadas com ADN. Em seguida Martins passou a formas mais exigentes de manipulação genética, começando com suínos. Nesses casos, tratava-se de conseguir inscrever, por manipulação genética, um verso no lombo do animal. Após alguns casos menos bem sucedidos – as letras surgiam fora de sítio, sugerindo desagradáveis lapsos ortográficos -, foi possível começar a «escrever» poemas, ainda que breves, tendendo ao haikú. Dominada a técnica, e recorrendo a embriões de golfinhos, passou-se a inscrever textos mais extensos no dorso do animal, de que existem sobretudo dois magníficos exemplares no Jardim Zoológico de Lisboa, tendo os animais sido treinados para saltarem de modo a que praticamente se imobilizam no ar, o que permite que, numa leitura de relance, os espectadores consigam candidatar-se ao concurso que consiste em adivinhar o autor do poema e a obra em causa. Em todo o caso, o apogeu estético desta técnica foi conseguido com pavões, especialmente nos que foram introduzidos no parque de Serralves, em função da criação do Departamento de Biopoesia no Museu, por insistência de Rui Rio junto da direcção do museu e com o recrutamento de Amadeu Baptista (1976, Arrifana) e José Gaudêncio (1976, Marvão) ao Laboratório Interdisciplinar de Biopoesia e Bioarte do MIT. A internacionalização da Biopoesia portuguesa tem sido célere, com privilégio de parceiros de S. Paulo – o Grupo da Biopoesia Neoconcreta – e de Nova Iorque (o Bronx Biopoetry Research Net, ou BBRN). Mais recentemente, o convénio estabelecido entre o International Biopoetry Group (IBG), que reúne todos os pioneiros da biopoesia, e a Damon Transgenics, permitiu ao grupo exponenciar o seu campo de aplicações, como é o caso, muito recente, dos poemas do Grupo da Biopoesia Neoconcreta de S. Paulo que, ao abrigo desse acordo, começam agora a surgir nas papaias geneticamente modificadas nos laboratórios da multinacional no Brasil (com o bónus de a própria cor das papaias se ter tornado passível de modificação, explorando toda a gama cromática do arco-íris). Uma recente incorporação de biopoetas africanos no IBG teve como efeito imediato a reivindicação de incorporação de material poético na mandioca e na batata-doce, embora o carácter rugoso da casca da primeira tenha sido fonte de persistentes falhanços laboratoriais, por tornar os poemas de leitura quase impossível. Como seria fatal, a Greenpeace manifestou-se virulentamente contra o advento e manifestações da biopoesia, denunciando «a conivência da poesia com a manipulação genética de organismos vivos» e criticando a supostamente escassa qualidade poética dos textos geneticamente inscritos em animais e plantas (para o que se abonou em juízos críticos de pessoas como Harold Bloom e Fernando Guimarães). A virulência do ataque no Brasil, que como é típico do Greenpeace implicou assaltos a plantações e destruição maciça de papaieiras transgénicas, forçou o grupo de S. Paulo a contra-atacar, denunciando «o reaccionarismo estético do Greenpeace» e fazendo ver que a biopoesia é revolucionária na medida em que inscreve o poético na própria estrutura genética dos organismos vivos (ponto sublinhado num ensaio polémico de Peter Sloterdijk, intitulado «Regras para o Parque Poético-Transgénico», muito atacado por George Steiner, Giorgio Agamben e Jacques Rancière). A expansão da Biopoesia, o seu cunho internacional, a sua aliança com a tecnociência e o capital transnacional, mostram ainda, e por fim, como na arte contemporânea o «nacional» deixou de ser pertinente, já que «a questão decisiva hoje é a da escala, razão pela qual para um país periférico e minúsculo como Portugal o modo de afirmação internacional da biopoesia é claramente um modelo a seguir» (António Pinto Ribeiro).

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Dicionário Crítico por Intermitência: Movimentos Poéticos (III)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Terça-feira, 15-09-2009

Aquísmo (Também designado «Poesia Aquática», fins dos anos 90, Peniche, Figueira da Foz, Arganil, Santa Comba Dão, Peso da Régua). Constituem uma falange das mais radicais da cena poética portuguesa dos nossos dias, definindo-se pela sua feroz recusa da Obra e, mais ainda, da representação. O «aquísmo» foi no seu caso o estádio final de um processo de gradual abandono do registo e fixação do texto, a que se seguiu enfim o repúdio de qualquer forma de permanência ou durabilidade do escrito, em favor de uma escrita válida em si e no acto de vir a si mesma. Em fases recuadas, optaram por escrever poemas no céu por meio de avionetas lançando fumo para esse efeito, ou por técnicas de fogo-preso para poemas efémeros, sobretudo desenvolvidas pelas falanges transmontana e minhota. Insatisfeitos com todas essas tentativas, chegaram por fim à escrita na água, em eventos que se foram tornando cada vez mais concorridos de público. O «poeta aquático» típico escreve na água com um longo estilete (um ramo de árvore descascado e afiado), num ritual de gestos de precisão cirúrgica e amplitude dançante que faz inevitavelmente pensar na técnica da caligrafia oriental. Certos poetas escrevem com tinta colorida, de modo a que por breves segundos a palavra seja reconhecível na água, enquanto outros, menos contemporizadores, usam o estilete nu, confiando ao golpear da água toda a duração que admitem para a sua escrita. Sobre eles escreveu Peggy Phelan um texto cujo entusiasmo revela ter enfim a teórica da performance como o não-representável encontrado o seu Graal estético-político: «A única vida da poesia aquática é (n)o presente. Inscrevendo esse regime temporal no seu meio, a poesia aquática existe para derrotar a fixidez, e a própria possibilidade, de qualquer representação. Nela, a obra dá-se a ver como puro sublime». Como seria inevitável, porém, as actividades escriturais dos poetas aquáticos começaram a ser registadas quer por cidadãos anónimos, quer pelos média, quer por estudiosos e académicos. Se esses registos tiveram a virtude de permitir reconstituir e registar, por recurso ao super slow motion, os poemas admiráveis dos maiores cultores do movimento, hoje registados no fundamental, e monumental, A Escrita da Água, org. Gustavo Rubim e Clara Rowland, Lisboa, Relógio d’Água, 2007 (tomo de 900 pp. com 2 dvd’s), a verdade é que tais registos diferem a escrita numa imagem fixa – um escrito – que atraiçoa o essencial dos propósitos estéticos e políticos do movimento. Em reacção a estes desenvolvimentos, e também em sintonia com o profundo ecologismo de autores que acreditam numa poesia «desnuda» e «não tecnologicamente mediada», os poetas aquístas passaram a realizar as suas actividades de escrita em sítios cada vez mais recônditos e em situações mais ou menos espontâneas, desistindo de anunciar previamente a sua realização. Resta dizer que o movimento se dividiu desde o início em dois grupos, os «marinhos» e os «fluviais», sendo que a poesia dos primeiros tende a uma turbulência antropológica, estética e política de que a dos segundos se afasta, praticando certas formas de serenidade escritural muito próximas do zen.

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Dicionário Crítico por Intermitência: Movimentos Poéticos (II)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Sexta-feira, 11-09-2009

Intervenção Poética 3R (Anos 90, Porto-Gaia, Coimbra, Braga, Lisboa e Margem Sul, Sines). Activistas ecológicos, põem em prática na sua poesia os 3 R da prática ecológica – reduzir, reciclar, reutilizar – utilizando suportes já impressos (jornais, livros em segunda mão, flyers publicitários, etc.) e material já escrito (vulgo «património literário»). Podem simplesmente imprimir os seus poemas por cima de páginas de jornal ou livro ou flyers, ou podem sublinhar a marcador o que, no já impresso, seleccionam para os seus poemas, ou ainda recorrer ao recorte, colando depois em suporte também residual esses poemas recortados. Analogamente, recorrem a poemas da tradição literária, usando livremente versos, estrofes ou secções nos seus poemas, sem qualquer preocupação de atribuição de autoria. As duas atitudes podem coincidir ou não no mesmo poeta. Apesar da sua proximidade grupal, certos autores, como certos críticos, optam por separar águas entre os 3R «impressores», os 3R «sublinhadores» e os 3R «recortadores», fazendo notar as diferenças estéticas e políticas das várias opções. Do mesmo modo, a radicalidade da prática 3R em relação à tradição nalguns casos não permite contudo generalizações, dada a gama de atitudes de apropriação verificáveis, o que tem também suscitado algumas demarcações no interior do campo 3R. Os depreciadores do movimento 3R referem-se a eles como «poetas do caixote do lixo», rótulo que os próprios, ou os mais radicais de entre eles, passaram a adoptar com gáudio, atribuindo à depreciação um cunho de involuntária desmistificação de erróneas representações do «lixo». A crítica, note-se, tem revelado incomodidade no enfrentamento da sua produção, em grande medida devido ao difícil acesso às suas obras, que circulam aleatoriamente pelos cafés, centros comerciais, discotecas e caixas de correio onde «largam» as suas páginas. Felizmente, nos últimos anos um crescente interesse académico no movimento, patente já em teses de mestrado na área da Antropologia Social e Cultural, dos Estudos do Multimédia e, em menor grau, dos Estudos Literários, seguramente na sequência de trabalhos de reportagem de Alexandra Lucas Coelho que criaram uma série de ícones mediáticos do movimento (J. Pipas 3R, Kalú 3R, Sexy Diana 3R, o colectivo feminino Trash Panthers 3R, etc.), levou a que uma grande editora portuguesa – a Bertrand – avançasse para uma edição em fac-símile das principais obras do movimento, em álbuns cartonados, magnificamente paginados e desenhados (por Henrique Cayatte) e luxuosamente editados. Que, no entanto, vêm sendo objecto de vandalização, segundo uns, ou de «reapropriação crítica», segundo outros, por um novo e misterioso colectivo, o Radical 3R, que se apresenta como uma segunda geração do movimento, criticando à primeira a tolerância com práticas editoriais «conspurcantes» e usando essas edições como material de base de novas práticas 3R, nas próprias livrarias onde os livros se encontram, em surtidas ora dissimuladas ora segundo o (atemorizador) modelo do «arrastão».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Movimentos Poéticos (I)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Quinta-feira, 03-09-2009

Literalismo (Desde finais de 90, Braga, Viana do Castelo, Barcelos, Viseu, Vila Real, depois Porto, Coimbra e enfim Lisboa). Movimento que defende ser a poesia muito menos texto, obra ou livro, do que que acontecimento e evento libertadores. Começaram por colar poemas em paredes de centros comerciais, paragens de autocarro, igrejas, escolas, para depois passarem a marcar lançamentos de poesia por sms, em momentos e situações inesperados e súbitos. Nessas ocasiões distribuíam rapidamente folhas soltas com poemas e desapareciam. Finalmente, começaram a lançar poemas amarrados a balões, em ocasiões previamente marcadas ou então de surpresa, em praças, parques ou simplesmente cruzamentos e avenidas, passadeiras para peões, podendo por vezes limitar-se (?) a gritar bem alto certos «textos», numa escanção que reduz o verbo à massa sonora vocálica ou infra-vocálica. Distinguem-se razoavelmente os «muralistas» dos «súbitos» e dos «balonistas», embora se verifiquem também cruzamentos. Como também se notam oscilações entre os que assinam os seus textos e os que praticam a anonímia, ou entre os que fazem intervenção individual e os que se reúnem em colectivos de geometria variável, consoante a inclinação dominante a cada momento. Tendem para uma poesia puramente visual ou fónica, feita de explorações gráficas e tipográficas de grande impacto e com uma dimensão política forte, dentro da estética do grito ou do grunhido, o que sai reforçado pelas suas articulações com a cena do Hip Hop tuga. Recusam o registo e qualquer forma de reprodução das suas intervenções, pelo que os filmes que circulam pelo YouTube, ou que chegam mesmo a programas de tipo cultural, como Câmara Clara, na RTP 2, são obtidos à sua revelia e sem a sua colaboração. Nomes como Ant.Lit, Rui.Lit, Johnny.Lit, Lou.Lit, Rita.Lit, Mary.Lit, Cunt.Lit ou os colectivos S.O.S.Lit, Dragon.Lit e Manos.Lit sofreram já um processo de internacionalização, no circuito também já internacional do literalismo, de Angola ao Brasil, à França ou à Bélgica, tornando cada vez mais difícil a preservação da pureza ideológica e estética do movimento. Entretanto, e num desenvolvimento bem revelador do seu impacto, certos poetas mainstream passaram a recorrer, em regime pontual, às modalidades de distribuição dos textos praticadas pelos literalistas, mas quase sempre como forma de promoção dos seus novos livros, o que vem sendo duramente repudiado pelos literalistas mais literais como «palhaçada burguesa».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (XIV)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Domingo, 02-08-2009

No Name Boy (??, ??). É o caso mais enigmático e fascinante da poesia portuguesa contemporânea. Nas palavras de Rosa Maria Martelo, professora da Universidade do Porto que tem vindo a dedicar uma aturada investigação a este não-autor, «Trata-se do segredo mais bem guardado da nossa literatura actual». De acordo com a ilustre professora tudo indica que um número impressionante de poemas dos mais significativos da poesia portuguesa dos últimos 40 anos terá sido escrito não pelos seus autores declarados mas por um ghost poet, que vem sendo chamado no meio literário «No Name Boy». Os poemas em causa vão de «Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos», de Herberto Helder (Selos) a «Uma Carta no Inverno», do livro homónimo de Vasco Graça Moura (1997), incluindo ainda o poema «A Magnólia», de Luiza Neto Jorge, ou as variações sobre o mesmo poema, por Daniel Faria, o poema «O excesso mais perfeito» (de Às vezes o Paraíso, 1998), de Ana Luís Amaral, o primeiro dos Quatro Caprichos (1999), de António Franco Alexandre, e ainda alguns textos centrais de João Miguel Fernandes Jorge, Manuel António Pina, Al Berto, MC Rimas (o Canto X de Umbral dos Heróis, que começa por «Desce já o crepúsculo do Império»), RR Fortuna (o grande poema «A noz grávida da noite»), Ricardo Araújo Pereira (a secção mais heideggeriana de Ainda não é poesia nem prosa, é apenas alguma coisa parecida com isto, de título «A língua rasteja sobre o ventre da terra») ou vários dos poemas centrais de Maria Carlos Maria (sobretudo, a grande ode «Ó ungida azinheira da Cova da Iria!»). Embora não se conheça o seu facies ou o seu BI, circulam na net declarações consistentemente apócrifas que alguns, contudo, lhe atribuem, e nas quais se aborda a questão da «ghost writing» em termos um tanto paradoxais: «Toda a escrita é suplementação de inexistências, tal como o mundo é o produto alucinado de um autor inexistente. Escrevo e desassino-me (assassino-me). (…) Nada existe num nome: sons arruinados pelo tempo e pela distância, letras como carimbos falsos. (…) Eu canto o meu corpo zombie». De acordo com Rosa Maria Martelo, a questão mais fascinante da «obra» subterrânea do não-autor seria a da crítica do conceito de autor e propriedade, uma vez que os poemas em causa, ou outros nos quais seja possível rastrear a mão oculta e inigualável do ghost poet, seriam e não seriam dos seus autores jurídicos, uma vez que não é possível minimizar o facto de terem sido tais poemas escritos em função de uma poética pré-existente e já consistente. O falso seria aqui ratificado pela poética que o inscreveria no continuum de uma obra, dando-lhe assim substância e verdade: a verdade da assinatura como contínuo e contexto. Não parece ser, porém, exactamente assim, pois essa «verdade» deveria ser agora tomada sempre entre aspas, já que a consequência mais radical desta prática, ou melhor: o preço a pagar por ela, seria o de tornar indiscernível falso e não-falso, e sobretudo o de impossibilitar de vez a utilização de qualquer noção pertinente de «verdade» autoral. A prática do ghost poet «falsifica», de facto, e de vez, toda a cena poética portuguesa contemporânea, permitindo duvidar do efeito de assinatura dos poemas de Rútila Rosa, Fernando Pinto do Amaral, Vítor Nogueira, DJ Silva, José Luís Peixoto, etc., etc. Finalmente, e de modo esse sim radical, a falsificação da cena poética portuguesa pelo artista chamado «No Name Boy» abre um contrafactual que permite reescrever poderosamente a história da nossa poesia actual sub specie «história virtual»: os grandes poetas de hoje poderiam ser apenas noms de plume de «No Name Boy», e os menos grandes seriam ainda mais pequenos, e indignos de referência, sem a contribuição fantasma desse «autor». Que alguns, mais afoitos, sugiram que «No Name Boy» é a realização, enfim, da profecia pessoana não-realizada do advento do Super Camões, é algo que não poderá pois espantar nenhum leitor conceptualmente atento. Que outros, mais iconoclastas, sugiram que toda a poesia portuguesa contemporânea, sem excepção, revela a mão oculta, inimitável e infindavelmente populosa de «No Name Boy», é já algo que não podemos ler sem o arrepio que nos percorre quando nas nossas divagações deparamos com a hipótese sonâmbula do Monstro – ou, o que é o mesmo, de Deus.

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (XIII)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Quinta-feira, 30-07-2009

Luís Filipe Alfacinha (1980, Trofa). Estreou-se com Nuvens & panos do pó (2001), a que se seguiriam Parafusos & pilastras (2004) e Rizomas & chips (2006). A sua poesia é talvez a menos consensual, junto da crítica, de entre os contemporâneos, pela sua variedade de temas, formas, estilos, propósitos e, sobretudo, conseguimentos, oscilando entre o virtuosismo sem mácula dos sonetos amorosos e o total falhanço da poesia de circunstância, sobretudo no registo humorístico ou satírico. Este dissenso crítico contrasta porém com a imensa popularidade da sua obra, o que se deve prima facie à estratégia promocional a que recorreu desde o seu primeiro título e que faz dele um case study dos estudos de sociologia da cultura e dos média. De facto, algum tempo antes de surgir o seu primeiro livro, começaram a surgir excertos de poemas seus transcritos em notas de 5 euros, o que suscitou uma crescente curiosidade pela obra e pelo autor. O autor confessaria depois que escreve excertos de poemas seus em todas as notas de 5 euros que lhe aparecem, pedindo ainda aos amigos que lhe permitam escrever nas que têm na carteira quando se encontram com ele. Esta modalidade de divulgação veio a funcionar em regime praticamente viral, tornando-o o poeta mais popular da sua geração e fazendo com que boa parte das notas de 5 euros desaparecesse da circulação, por um efeito de coleccionismo (e, admita-se, de investimento…). O autor passou, aliás, a dar autógrafos apenas em notas de 5 euros e os seus segundo e terceiro livros incluíam já uma nota de 5 euros devidamente preenchida com um excerto de um poema, no que passou a ser considerado uma jogada promocional ímpar. Nem toda a sua popularidade se deve porém a esta pioneira estratégia de divulgação, como se viu recentemente quando valter hugo mãe decidiu seguir a mesma estratégia, mas fazendo um upgrade para as notas de 10 euros: as notas não desapareceram do mercado e não se notou nem efeito coleccionista nem venda reforçada do seu último livro de versos. O que indica que se trata sim de uma rara e feliz confluência de uma poética com uma estratégia promocional: a grande heterogeneidade interna da poesia do autor, que inviabiliza aliás qualquer esforço para a sua descrição, acabou por potenciar a estratégia, na medida em que permitiu colocar em circulação exemplos muito variados da sua produção, atingindo também segmentos muito variados de leitores. Isso explicará a dúzia de edições de cada um dos seus títulos e a alta tiragem de cada uma dessas edições.

«As formas que cunham os produtos de trabalho como mercadorias possuem já a consistência de formas naturais da vida social antes de os homens procurarem dar-se conta, não do carácter histórico dessas formas, que antes vigoram para eles já como imutáveis, mas do seu conteúdo. A poesia, ao contrário do que crêem os seus cultores, é parte acabada deste universo».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (XII)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Terça-feira, 28-07-2009

Ekaterina Grossman (Kiev, 1982). Chegou a Portugal com 9 anos de idade, tendo conseguido uma fluência impressionante no português em meia dúzia de anos. Cursou Economia e Belas Artes e começou a fazer-se notar por performances cujo ponto central era a exibição e destruição de dinheiro (por ácido, fogo, triturador de papel, descarga pela sanita, deglutição ou degradação material por escarro, com participação do público). Reorientou-se depois para a poesia, embora sempre em modalidade performativa muito vizinha também de práticas típicas da instalação e recorrendo ainda, como material de referência, a dinheiro. A pouco e pouco, porém, em vez de se obstinar na sua destruição passou a usá-lo como suporte de escrita, actividade realizada ao vivo: a artista-poeta instala-se (à mesa, no chão, frente a uma cómoda ou móvel alto) e começa a escrever poemas, sempre de grande violência imagética e verbal, em notas, de preferência das de maior valor em circulação, com caneta grossa e por vezes fluorescente (nas intervenções em período nocturno). No início usou dinheiro em desuso – notas das moedas dos países da EU antes do Euro -, como forma de «dar a ver o dinheiro como material obsoleto e simbolicamente desinvestido», e recorreu com frequência a rublos e notas do período soviético, nas quais escrevia, dando-lhes forma de verso, testemunhos do Gulag. Mais tarde, passou a recorrer apenas a euros e dólares. Por vezes, a escrita é acompanhada de actividades na tradição da Body Art: (i) a artista-poeta despe-se enquanto escreve nas notas e cola depois as notas-poemas no corpo, re-vestindo-se assim com dois dos mais prementes e antinómicos símbolos de uma sociedade sofisticada: dinheiro e poesia; (ii) a artista escreve os poemas, despe-se e enfia as notas-poemas na vagina, reivindicando o seu direito a um confessionalismo poético sigiloso; (iii) a artista escreve os poemas-notas em público, neste caso de teor fortemente politizado e feminista, mete-os depois na boca, mastiga-os e, por fim, cospe-os para cima do público. Várias das suas performances foram realizadas em galerias conceituadas e em museus de arte contemporânea, da Gulbenkian a Serralves, estando muitos dos seus poemas-notas expostos nesses museus (a colecção Berardo adquiriu recentemente um significativo conjunto de «poemas cuspidos» pela autora). A sua obra vem conhecendo uma crescente repercussão internacional, tendo-lhe recentemente a revista October dedicado uma secção temática num dos seus últimos números. A artista-poeta foi também já convidada a participar na próxima Bienal de S. Paulo, constando que apresentará uma obra em co-autoria com o artista brasileiro Nuno Ramos.

«Entre o meu corpo e o capital, estabeleço o território da escrita poética. Ela desarticula a mais-valia e dá a ver o puro dinheiro, sem possibilidade de vir a ser capital: apenas papel, um material integral, violável e degradável. Disto tudo não resta porém nem o corpo nem a poesia: não proponho assomos de redenção. Nada resta, de facto, senão o rancor, o desprezo e o ódio ao capital. É a isso que me entrego, de corpo e escrita».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (XI)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Quarta-feira, 15-07-2009

e.Lisabete (1985, Póvoa do Lanhoso). Começou a manifestar-se nas caixas de comentários a blogues, tanto políticos como de poesia, deixando nelas poemas em que de forma livre discorria, muitas vezes agressivamente, sobre os tópicos em causa. Quando o seu nome começou a ser objecto de posts passou a usar a mailing list para enviar poemas a destinatários muito diversificados, social, etária e profissionalmente, na técnica a que chamou «random bombing». Ao mesmo tempo, criou blogues, a um ritmo alucinante, praticando-os por breves períodos em sobreposição ou abandonando-os «à sua sorte» após breves períodos de exploração, muitas vezes anunciando aos visitantes que cessaria o blogue, apagando-o de seguida na íntegra, e indicando o dia e hora em que o faria, «por respeito por quem deseje guardar algum texto ou filme» (a autora ganhou o hábito de inserir nos blogues pequenos filmes «a negro» em que ou diz textos seus, ou comenta textos de sua autoria, de modo a «interditar interpretações abusivas dos meus textos por esses profissionais da desleitura que são os ‘críticos’ ou, em geral, os leitores possuídos pelo vírus da interpretação»). Alguns nomes de blogues da autora: e.ante, e.dentidade, e.conografia, e.deograma, e.Lisa, e.lógico, e.magináriae.mersa, e.mensa, e.memorial, e.mediata, e.migrante, e.moderação, e.modesta, e.moral, e.mortal, e.móvel, e.mudecida, e.mune, e.mural, e.rmã Lisa, e.tanto, e.terna. O crescimento exponencial do seu culto suscitou a certa altura, como seria inevitável, as primeiras manifestações de reservas e mesmo de cepticismo em relação à sua existência, defendendo alguns que se trataria de uma mistificação perpetrada por um «sindicato» de poetas (para outros, recuperando um arcaísmo, «poetastros») sem coragem de dar a cara. Estas reservas só a fizeram ocupar ainda mais espaço virtual, recorrendo para tal ao Twitter e ao Facebook, mas aparecendo agora sob uma panóplia de nomes (im)próprios – e.Liana, e.Sabel, e.Rina, etc. – que tornam rigorosamente impossível localizá-la. Poeta sem livros, apesar do crescente volume de propostas editoriais, que tem recusado taxativamente, a sua poesia é por definição camaleónica, quer por mudar de estilo, registo ou tom consoante os nomes e meios que usa, quer por praticar uma intensa reciclagem dos seus textos nos que vai de novo dando à luz, e que quase nunca são em rigor novos, resultando antes de um sistemático cut up operado sobre toda a sua produção anterior. Esta permanente recolecção e transformação do seu corpus coloca em causa a própria noção de corpus e de Obra, que instabiliza a ponto de tornar impossível qualquer discurso crítico (a não ser, muito pontualmente, o seu próprio discurso anti-crítico), assim desprovido de objecto minimamente estável. Poemas breves ou brevíssimos, poemas longos, epopeias (as «epopeias da calçada» que vem produzindo, numa intensa psico-geografia do espaço urbano), poemas dramáticos, epístolas poéticas, rock lyrics para a sua banda por-vir – a sua produção é talvez a mais impressionante da cena portuguesa actual e a que mais tem solicitado desenvolvimentos ou prolongamentos mais ou menos parasíticos por muitos outros autores. São de facto inúmeros os que se revelam como poetas ou escritores justamente ao reescreverem, transformarem, citarem ou simplesmente (?) transcreverem, por copy-paste, os seus poemas, apondo-lhes porém (por pedido expresso da autora) o seu (deles) nome, isto é, o de cada um desses «transformadores» da obra de e.Lisabete, que assim se torna objecto de uma geral, e muito comparticipada, operação de despossessão.

«Não, não. Nada de declarações. Procurem-me onde me escrevi. Algures. Aí mesmo».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (X)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Quinta-feira, 09-07-2009

Rútila Rosa (1960, Lisboa). Estreou-se com Sei lá (1989), a que se seguiria Não há coincidências (1993) e Não imaginas a falta que me fazes (1996). Após uma interrupção, motivada por um grave acidente de mota na 24 de Julho, publicaria de rajada os livros que a consagrariam como chefe-de-fila da corrente da «poesia do afecto»: Pelo Sonho É que Vamos (2001), A Invenção do Amor (2002) e Os Nós e os Laços (2003). Suspendeu então o seu ritmo de edição, reatando os laços com a Universidade de Lisboa, onde se licenciara em Línguas e Literaturas Modernas, apresentando uma tese de mestrado sobre «O império dos afectos na poesia de David Mourão-Ferreira». Encontra-se de momento a elaborar uma tese de doutoramento sobre «O delírio romântico na poesia de Fernando Pessoa». Poeta do verso livre derramado na página, mas do poema de extensão entre o reduzido e o médio, a sua poesia reivindica o direito à efusão sentimental há muito posto em causa por certos Diktat’s do modernismo, contra os quais muito conscientemente se rebela. Certos livros seus, como por exemplo A Invenção do Amor, são muito programáticos nessa rebelião, na medida em que todo o livro consiste num mecanismo dialógico pelo qual a um poema assinado por Fernando Pessoa (uma das suas obsessões) e endereçado a Ofélia, responde um poema desta endereçado a Pessoa. Assegurado que está, por este dispositivo, um módico de «fingimento», a autora explora livremente os territórios da paixão, apresentando assim um Pessoa chocantemente expansivo – a autora prefere dizê-lo «livre» -, o que configura uma ocorrência maior de revisionismo poético, que contudo se estriba em textos como as cartas de Pessoa à namorada. Não surpreende, pois, que a autora se tenha recentemente disponibilizado para vir a ser directora da Casa Pessoa, tendo para esse efeito declarado a sua intenção de afastar Pessoa da abstracção desumanizante das leituras dominantes, e de substituir o logo da casa por um coração vermelho com o verso «Todas as cartas de amor são ridículas» nele atravessado, qual seta de Cupido.

«Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, com um cuidado cheio de carinho – com vontade de lhes dar beijos – os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as frases… fico tão pequena e inofensiva, tão só num quarto tão grande, e tão triste, tão profundamente triste!… que só então percebo como a poesia é, antes e depois de tudo, um apelo de um coração a outro, em total desamparo».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (IX)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Terça-feira, 07-07-2009

Cristiana BB (Castelo Branco, 1974). Estreou-se com A Noite Estriada (1999), a que se seguiria Dobras (2004). De grande impacto sobre a crítica e com um clube de fãs aguerrido mas não muito alargado, a sua poesia tem vindo a alcançar grande reconhecimento no estrangeiro, sobretudo no mundo hispânico, decerto devido ao carácter bilingue da sua produção, que oscila entre o português e o espanhol, filiando-se declaradamente na grande poesia do barroco espanhol (acima de todos, Góngora). Grande parte da obra explora a forma fixa do soneto, lançando mão do catálogo de subversões formais e da pirotecnia verbal dos seus mestres hispânicos e latino-americanos (Lezama Lima e Severo Sarduy acima de todos, entre os contemporâneos). Cantora do corpo excessivo, ou «rubensiano», e do que nos objectos e seres do mundo redobra e multiplica as suas superfícies, inibindo qualquer descrição ou representação e solicitando por isso os serviços da metáfora, do oxímoro e da hipérbole, a sua poesia tende ao «sujo» e rugoso (o «estriado», para usar um termo e tema da sua preferência) do mundo, como se nessa rugosidade da estria ou da dobra a matéria se expandisse «nos limites do visível» (palavras suas, no prefácio a Dobras). Os deslumbramentos do barroco, a luta contra a gramática das formas, a recusa do vazio e a saturação ornamental, a recuperação de uma versão sumptuosa do léxico, pelo recurso ao dicionário e a etimologias ficcionadas, e tantas vezes deliberadamente «livrescas», ganham na sua poesia uma energia e pertinência novas, recuperando esse fundo nunca extinto da poesia e da literatura portuguesas. Encontra-se a terminar a tradução da Obra Completa (poesia e ensaios, com excepção de Paradiso) de Lezama Lima, a que se seguirá aquele que considera o grande projecto da sua vida: dar forma versificada aos sermões do Padre Vieira, traduzindo depois esses sermões-poemas para espanhol, de modo a integrá-los na futura genealogia da poesia hispânica. «Estou absolutamente convencida de que o Vieira-em-verso que persigo será um poeta barroco tão grande como Góngora», afirmou ao blogue da revista Relâmpago.

«O primeiro assombro da poesia é que, submersa no mundo pré-lógico, nunca seja ilógica. Como se buscando a poesia uma nova causalidade, se aferrasse enlouquecedoramente a essa causalidade. Sabe-se que há um caminho, para a poesia, que serve para atravessar esse desfiladeiro, mas ninguém sabe qual é esse caminho que está à beira da boca da baleia; sabe-se que há outro caminho, que é o que não se deve seguir, onde o cavalo na encruzilhada resfolega, como se sentisse o fogo nos cascos, mas sabemos também a natureza desse caminho semeado de figueiras, alisando os volteios da lontra quando inicia a sua luta com o caimão na profundezas do pântano revolto».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (VIII)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Quinta-feira, 25-06-2009

Gatinha Felpuda (1985, Figueira da Foz, pseudónimo de Maria Amélia da Purificação Duarte). Publicou, até ao momento, um único livro, o monumental Grrrrr! (2006), com mais de 600 pp. ilustradas por alguns dos melhores desenhadores da Imprensa Canalha. A crítica, perplexa, ficou silenciosa, com excepções esporádicas laudatórias (o caso de Maria Alzira Seixo) ou hiper-criticas (Manuel de Freitas). Sextinas, odes, éclogas, sonetos à maneira inglesa, epitalâmios, ditirambos, a sua poesia percorre com suma competência todos os géneros clássicos, vazando nessas formas um conteúdo moderno, urbano e cosmopolita, feito de flâneries, iluminações profanas, delírios alucinados da rock culture, palpitações do inconsciente acelerado por psicotrópicos e tudo o mais que houver à mão, explorações do território do amor em versão romântico-erótica em estrofe adequada ao fado que também pratica nos locais desse culto. Jorge Fallorca chamou-lhe «A Ovídio do underground», expressão que pegou nos média. Poesia também cosmopolita em sede idiomática, tanto recorre ao português como a um híbrido anglo como ainda, em certos momentos de excesso erótico ou satírico, ao latim (integra a corrente, minoritária mas de grande visibilidade, dos «neo-latinos»). O seu volume, publicado em edição da autora, tornou-se rapidamente um objecto de culto, atingindo preços exorbitantes no eBay. São já lendárias as performances nas quais a autora vai rasgando as páginas à medida que as lê, incendiando-as e atirando-as para cima de um público que, em transe, se digladia por essas relíquias em chamas.

«Sempre achei que todos temos Deus, ou vários deuses, dentro de nós, qualquer que seja a nossa religião ou cultura. Há algo dentro de cada um de nós a que todos chamamos Deus. Pode ser uma forma de energia, uma força a que podemos dar vida e forma sendo jardineiros, mães, pintores, poetas… Todos possuímos essa coisa feroz e fascinante bem fundo em nós. E apenas podemos aspirar a ser o veículo em transe dessa coisa sem nome».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (VII)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Terça-feira, 16-06-2009

Jorge Felício (1980, Vinhais). Estreou-se em 2004 com A Colher na Boca, a que se seguiu A Máquina Lírica, em 2006. Em 2008 seria a vez de A Faca não Corta o Fogo, obra saudada como a confirmação de um poeta genial. Por cada livro venceu alguns dos maiores prémios de poesia do país – o Prémio Optimus, pelo primeiro, o Grande Prémio Cimpor, pelo segundo, o Prémio de Poesia Sonangol, pelo terceiro -, tendo acompanhado a cerimónia de entrega de cada prémio com um discurso marcante, todos eles editados posteriormente em plaquette: «A poesia é uma experiência mortal», «Todas as coisas existem ritmicamente», e «Do magma». Poesia torrencial, dicção magnificante, sedução órfica do mistério e da obscuridade, desvanecimento do sujeito em favor de uma experiência radical do corpo-sem-órgãos, pulsão contra-cultural em favor de um dizer iniciático e epifânico, retracção pública do sujeito – eis um perfil em que o pré-moderno e o alto-moderno entram em curto-circuito, recuperando certas modalidades não-situáveis, em termos estritamente periodológicos, no moderno, aquelas que privilegiam formas de primitivismo reinventado em África, sobretudo. É surpreendente que uma obra com este perfil tenha irrompido tão tardiamente no arco moderno da nossa literatura, mas, como afirma judiciosamente Fernando Pinto do Amaral, «Cada literatura tem a sua história; e a nossa não fica a dever nada às outras. É simplesmente diferente, quantas vezes para melhor». «Poeta de culto», e perfilhando uma ontologia anti-mundana, a sua poesia de energia (energeia), desfiguração, anamorfose & vox, vem tendo um profundo impacto em leitores jovens que por ela descobrem a poesia e o poético, sub specie metafórica; manifesta porém uma acentuada dificuldade em produzir discípulos ou sequer imitadores, tal a singularidade da sua poética. Revela também um grande poder de fascinação sobre praticantes de artes plásticas, não sendo raras as obras com títulos extraídos de versos seus, da BD à escultura, da vídeo-arte ao rock e à música contemporânea (António Pinho Vargas prepara uma sinfonia inspirada na sua obra e cujo título – Luz crua, sal espesso na treva – foi directamente fornecido pelo poeta, após longa conversa com o compositor, que declarou já publicamente, por mais de uma vez, a sua admiração pelo autor).

«O poema é um objecto carregado de poderes terríficos, um abismo demoníaco, a invasão torrencial da nossa inocência. Uma coisa não-moderna, ante-moderna, anti-moderna, o júbilo do não-sentido ou da destruição da sua iminência. Magia negra, salto para fora da cultura, para a noite diluviana do mundo».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (VI)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Quinta-feira, 11-06-2009

Maria Carlos Maria (Fátima, 1965). Estreou-se já algo tardiamente em 1995 com Do alto de uma azinheira, obra que veio relançar na poesia portuguesa a tradição interrompida da «poesia ao divino», explorando a temática das aparições de Fátima. Daí até hoje, os seus livros de versos seguintes – E o sol parou (1996), O terceiro segredo (1998), Conversas espirituais com Lúcia (1999), Fátima, terra de esperança (2000), Foi aqui! (2001), No teu sorriso, Senhora (2002), Sempre contigo (2003), O ar que aqui se respira (2004), O alvo halo (2005), Áurea aura (2006) -, bem como os seus «ensaios apologéticos» (subtítulo que os acompanha como uma descrição de género) A Verdade Revelada, de 2000, O Sopro da Verdade, de 2003, e A Verdade Nua, de 2005, são, todos eles, variações sobre Fátima e o seu mistério. A sua poesia manifesta uma clara preferência pela forma extensa, sendo raras as ocorrências do poema breve. A extensão parece ser exigida pelo teor meditativo e densamente ruminante de uma experiência da fé que é, de modo indissociável, uma experiência da «revelação», e da revelação em Fátima. Fátima surge pois como reivindicação do lugar que anularia todos os lugares, assim como a epifania suspenderia e, por fim, daria ordem de despejo à linguagem, ou a todas as versões mundanas, i.e., não-extáticas, da linguagem, tendendo naturalmente o êxtase da linguagem para a sua anulação pelo silêncio enquanto voz última de Deus. Poesia única pela sua alta exigência meditativa e metalinguística, ela consegue porém articular e narrativizar os episódios das aparições de Fátima com os voos de um espírito em que a pura especulação recua sempre ante as ressonâncias pávidas, e tão temerosas quanto deslumbradas, do encontro com um Pai que, pela mediação da Virgem, é feministicamente recodificado como Mãe-Pai. É estranho como uma poesia tão exigente consegue ser também popular, o que talvez se explique pelo facto de todos os leitores poderem encontrar nela algo que satisfaça a sua fome de beleza e fé. Os seus «ensaios apologéticos» dão a esta poesia o reforço, algo ambíguo, de um discurso ideológico que para muitos ela dispensaria, tanto mais que o discurso se revela alinhado pelas posições mais ortodoxas da Cúria romana. Razão que talvez explique o crescente recurso da Igreja Católica à poesia da autora, para múltiplos fins, sobretudo litúrgicos, tendo Bento XVI manifestado, por mais de uma vez, o seu grande apreço pessoal pela poeta, que já recebeu e que vem usando como uma evidência do carácter não linear ou unívoco do (nas suas palavras) «erradamente chamado processo de secularização».

«Aos espíritos martirizados e destituídos de carecimento, aos que esse inferno encerra dentro de si, a privação ensina a carência simples, chã, da fome e da sede; mas será colectivamente que ela nos indicará o pão capaz de nos alimentar e as límpidas e doces águas da fé. E em comum firmaremos também a aliança da sagrada necessidade; e o beijo fraterno que selará essa aliança será a poesia do futuro. Nela, o nosso grande benfeitor, o nosso redentor, o vigário da necessidade feita carne e sangue, o povo crente de Fátima, deixará de ser algo de particular, uma parte diferenciada; pois que na poesia da fé seremos todos um só, e por isso enfim felizes».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (V)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Quinta-feira, 04-06-2009

Paulo Bento (1969, Lisboa). Estreou-se em 1990 com o fulgurante 400 Haikús, a que se seguiria uma produção copiosa (cerca de 80 volumes, até 2004, data do seu último livro), sempre com o mesmo título, variando apenas o especificador de quantidade. Que foi sempre diminuindo, até chegar, em 2004, a 2 Haikús. Entre 2004 e 2008, ausentou-se no Japão, onde seguiu estudos na Academia Shintoro, em Kyoto, sobre a tradição do Haikú. Em entrevista ao JL antes de partir para o Japão declarou que a sua obra estava praticamente terminada, faltando-lhe apenas coroá-la com o volume derradeiro 1 Haikú. Regressado do Japão, declarou à LER, em entrevista de brevidade telegráfica a Carlos Vaz Marques, que, ao fim de anos de meditação e laboração extática, tinha quase resolvidos os problemas do seu derradeiro haikú, isto é, do seu derradeiro livro. As editoras vêm-se digladiando pelo contrato de edição desse volume, constando nos mentideros que os montantes em causa serão, para o mercado português, discrepantes. Os seus livros conhecem grande sucesso de público, tendo alcançado, alguns deles, sobretudo os derradeiros – 5 Haikús, 4 Haikús, 3 Haikús, 2 Haikús –, as 20 edições, apesar dos preços algo proibitivos que os distinguem. Os volumes mais quantiosos são os menos populares, uma vez que a densidade gnómica e a estranheza retórica dos seus poemas tendem a afastar os leitores, que parecem sentir a necessidade de se enfrentarem com apenas dois ou três poemas de cada vez. A sua poesia está traduzida em todos os grandes idiomas do mundo e começa agora a sair no Japão. Bandas como os Metallica adoptaram já haikús de Paulo Bento para canções, enquanto em Portugal o próximo filme de Pedro Costa, com apoio já assegurado do Eurimages, será uma variação em torno de um haikú do poeta, sobre uma pedra. Muito inspirada em Ponge, a poesia de Paulo Bento consegue conciliar a sumptuosidade imagética com a concisão verbal e métrica, sendo muito notável na forma como ora se concentra e explora à exaustão um motivo ou imagem mínimos (muitas vezes coincidindo tal exploração com todo um volume, como em 237 Haikús seguido de um Post Scriptum em forma de Haikú, de 1995), ora desenvolve uma cornucópia de temas, fazendo coincidir cada um com um poema ou dois apenas. É igualmente impressionante a forma como o poeta salta dos agudos para os graves, nas suas explorações da música do verbo e do verso ou na gama temática, que pode ir das inquietações metafísicas da alma torturada pela experiência do desejo ou da culpa (um fundo católico que contende com uma crescente inclinação budista) à serena contemplação da natureza mais mesquinha e impávida, objectualmente contraposta a uma subjectividade que assim se esvazia e anula, alcançando o zen. A dificuldade expressiva que o poeta foi a certa altura sentindo, levando-o a reduzir drasticamente o volume da sua produção, e a criar uma espécie de «drama poético» em torno do último poema/livro, é talvez referível a uma tópica mallarméana que, nos últimos volumes, se vai tornando mais reconhecível, a do livro que resumiria o mundo nos seus apenas três versos. Os seus livros vão, em concomitância temática e temporal, desistindo da enumeração e exploração de vastas áreas do ser, para se concentrarem na questão órfica da palavra justa à designação/recriação do mundo. O livro por vir com um único Haikú, que muito logicamente coroaria a obra, vem sendo retardado decerto em função da magnitude da tarefa, que inscreve a sua obra na poética alto-moderna e nos dramas também heideggerianos da linguagem que nos diz e, de certo e profundo modo, desapropria, lançando-nos na experiência da despossessão radical.

«O que tinha a dizer, está dito nos versos. O que falta, e é já muito pouco, ficará dito em breve. Antes e depois, silêncio. Esse o drama da poesia: uma conquista, sílaba a sílaba, da mudez».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (IV)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Sexta-feira, 29-05-2009

MC Rimas (1979, Barreiro) Iniciou-se nas letras com o volumoso Umbral dos Heróis (2002), explicitamente subintitulado «Poema épico em 10 cantos e versos rigorosamente decassílabos», a que se seguiria, em 2007, o ainda mais vasto O Vate Imperioso, de novo com uma revindicação da epopeia, em extenso subtítulo: «Epopeia rítmica em 55 cantos breves, d’après Ezra Pound, Saint-John Perse, Aimé Césaire, Corsino Fortes, Gil Scott-Heron, António Quadros, Miguel Torga e Camões». O livro, no qual assume a sua ascendência cabo-verdiana, suscitou uma longa polémica entre a crítica, com ferozes tomadas de posição contra (acima de todos, José de Arimateia) e a favor (sobretudo, Miguel Real), no que reproduziu, embora em versão muito amplificada, a recepção da sua obra inicial. Recebeu, contudo, em 2008, o Grande Prémio Leya para Poema Épico, um dos mais distintos da cena literária portuguesa, atribuição apoiada por Manuel Jubiloso, presidente do júri e anterior contemplado, por duas vezes, com o prémio. O Ministério da Educação adoptou já excertos de Umbral dos Heróis para as leituras obrigatórias de Português no 12º ano. Os seus livros são ambos best sellers, estando já, cada um deles, acima da 10ª edição. A grande voga novecentista do poema épico em Portugal atinge, com MC Rimas, o seu ponto talvez culminante, em obras que são um prodígio de conciliação de uma densa rede de referências poéticas, culturais, históricas e políticas, com uma fluência imparável e incomparável que, na própria experiência confessada de muitos leitores, os arrebata para uma exaltação da Pátria como lugar de uma experiência epifânica no e do idioma. De grande fulgurância retórica, a sua obra revela uma destreza no manejo de tropos e símbolos que faz dos seus poemas épicos uma floresta encantada do poético, ao melhor nível dos seus autores de eleição. Mesmo os seus detractores concordam em que nestas singulares epopeias o encantamento verbal leva a melhor sobre o conteúdo e propósito históricos, o que é mesmo o caso do seu primeiro livro, dedicado à luta antifascista e anticolonial (ponto, aliás, que lhe suscita reservas e críticas sistemáticas à esquerda, por «escapismo» esteticista). O Vate Imperioso, claramente colocado sob a égide e reminiscência de Camões, apesar da listagem que o coloca entre vários outros cultores da épica, é já um momento de auto-celebração do poético como reduto último da possibilidade de um epos moderno, apesar de todo um contexto agressivamente dessacralizante. Se existe uma possibilidade de redenção do século, neste tempo sem redenção nem futuro, ela mora nos versos técnica e substancialmente heróicos de MC Rimas.

«Ao contrário do que pretendia Lukács, a epopeia não tem a ver com um mundo histórico já findo. Há epopeia sempre que há herói, e há herói sempre que há seres humanos que não se rendem. Há uma epopeia da resistência ao fascismo e ao colonialismo, como há uma outra por escrever nos bairros periféricos da Grande Lisboa, que ainda não encontrou os seus cantores, a não ser entre os rappers. Se estarei à altura disso? Não posso sabê-lo antes de tentar. E gostaria de o tentar em decassílabos heróicos e português retro-camoniano. Porquê? Será preciso explicar?»

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (III)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Domingo, 24-05-2009

Ricardo Araújo Pereira (1974, Lisboa). A vox populi atribui-lhe um primeiro livro, editado sob o pseudónimo Angélico Martins, com o título Versos Livres & Rima Presa (1994), que nunca assumiu, talvez por discrepância estética em relação ao seguinte rumo da sua obra, óbvia o bastante para indexar esse livro inicial sob a categoria da «juvenília». Com atribuição inequívoca do seu nome editou, em 1997, Perguntas de um Intelectual Iletrado e, três anos depois, Ainda não é poesia nem prosa calma é apenas alguma coisa parecida com isto. Por comunicado datado de 1 de Abril de 2003 informou que a partir daí se assinaria R. I. P. e que aderia ao movimento do «literalismo» (v.), renunciando pois ao suporte livro e passando a lançar os seus poemas ao ar pendurados em balões. Fez várias dessas operações, sempre com grande afluência e adesão de público mas sem qualquer consenso crítico (com a entusiástica excepção de Vasco Graça Moura, que exprimiu repetidamente o seu apreço pela obra e suas públicas manifestações). Muitos dos poemas que lançou nessas ocasiões tornaram-se peças de colecção, atingindo preços altíssimos no circuito da bibliofilia, com a sua total discordância e mesmo ameaça de processo judicial, uma vez que (palavras suas, aos jornais) «Só por propósito obsceno se pode capitalizar aquilo que é lançado ao ar e que pertence, a partir daí, ao devir-mundo da palavra». A sua poesia é uma densa e intransigente meditação metapoética sobre a possibilidade representacional da poesia (e, antes dele, da própria linguagem) no mundo pós-metafísico, numa filiação heideggeriana que, no seu livro de 2000, alcança uma rara fundura onto-teológica. Poesia da secularização e dos seus limites, não deixa de recolocar a vexata quaestio das fronteiras entre o poético e o filosófico, pela destreza com que consegue dar forma poética – e admiravelmente rítmica – a uma série de filosofemas de teor metafísico (refiram-se títulos de poemas maiores como «O estar-aí da sombra» ou «Um corpo amado-para-a-morte») e contudo muito dizíveis e mesmo possuídos de um furor cantabile, em poemas naturalmente tendendo para uma extensão significativa. O que algo paradoxalmente contrasta com uma vertente da sua poesia, mais explorada no livro apócrifo inicial – para alguns, argumento em desfavor dessa atribuição de autoria -, mas também nos da fase «literalista», em que a interrogação se volve balbuceio, soluço, gaguez ou mesmo babugem de uma linguagem que nunca acede a uma gramaticalidade mínima, apresentando-se antes em estado de resto e resíduo, como se fora mais uma das inevitáveis ruínas da modernidade, empilhadas ante o olhar esbugalhado, não raro assolado por um muito peculiar pathos, do poeta-anjo da História.

«O signo distintivo dos poetas, hoje, consiste em que a essência da poesia se tornou, para eles, digna de ser posta em causa. Pois, poeticamente, eles estão no rasto do que está por dizer, nomeadamente, a questão do poético: quando há canto quem é que, essencialmente, canta? Esta questão só se colocou quando o dizer do poeta alcançou verdadeiramente a vocação poética da poesia, que corresponde à nova Idade do mundo. Esta Idade não é nem queda, nem declínio. Enquanto destino, ela repousa no ser e captura o homem no seu ser-para, na sua pertença ao devir da noite do mundo. É esse destino que decide aquilo que, no interior da obra, pode ainda vir a ser um historiável».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (II)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Quinta-feira, 21-05-2009

Adegar Penetra (Castro Verde, 1980). Estreou-se com Alentejo nam tem sobras (1999), a que se seguiu Canto Chão (2004). Com Joaquina Poejo constitui a linha da frente dos «poetas telúricos», procedentes de Mário Beirão e, em menor grau, de Miguel Torga, e que a partir dos anos 80 se tornaram uma das linhas de força da cena poética portuguesa. Como eles, privilegia a redondilha e recusa o verso livre («Um recurso dos pobres», nas suas palavras). Muitos dos seus versos estão adaptados ao canto alentejano – o poeta integra o grupo de Castro Verde, como maioral -, razão pela qual os seus livros vêm sempre acompanhados de CD em que se pode ouvir os poemas cantados pelo grupo de cantares de Castro Verde. Vários dos poetas telúricos, aliás, recorrem em primeira instância ao CD, desprezando ou pelo menos secundarizando o livro. O seu sítio no MySpace (www.myspace.com/adpenetra) é dos mais visitados da net em português, mostrando a actual grande popularidade da sua obra e da poesia telúrica. Recebeu vários prémios de poesia de câmaras do Baixo Alentejo, os únicos que aceita, já que recusa os prémios literários das instituições da capital. A sua poesia oscila entre o épico alentejano e a elegia da paisagem infinda e (falsamente) monótona do Sul, propondo um como que regime bipolar entre exaltação e depressão, ou entre as ínfimas e contudo infinitas variações daquilo que só a um olhar impreparado («urbano») parecerá realmente monocórdico. Poeta da modéstia retórica, o imperativo da sua adequação ao parti pris das coisas da terra condu-lo naturalmente ao privilégio da catacrese, de que é um exímio cultor (o maior depois de Vitorino Nemésio). Pratica ainda uma recuperação intensa da vox populi, desde os anexins e máximas populares aos rimances que são um dos troços centrais da sua obra e que sampla livremente em hibridizações intensas, como na secção «Fuckin’ rimas» do seu segundo livro, também a mais política da sua obra até ao momento, dedicada à construção da grande barragem de Alqueva («A grande epopeia alentejana do nosso tempo»).

«Para mim, toda a poesia é artesanato. Produção de artefactos próximos da mão. A palavra arte está muito ligada à palavra artesão. E a palavra artesão está ligada à palavra trabalho. Eu não vejo uma fronteira nítida entre arte e artesanato. Para mim, um poeta, um escritor, um músico é um artista como artista é (ou era, infelizmente), o Perdigão que fazia sapatos na minha aldeia ou a Inácia que faz músicas na nossa tradição. E, por isso, sendo artesanato, coisa de mãos, é coisa da terra. São, ainda e sempre, formas de mexer com a terra».

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Dicionário Crítico por Intermitência: Poetas (I)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Terça-feira, 19-05-2009

RR Fortuna (1958, Paranhos). Estreou-se com Grãos de Pólen (1978), tendo sido saudado como a voz mais densa da sua geração. O coro crítico manteve-se no longamente aguardado segundo livro, que surgiria apenas em 1994 – Medula da Água -, a que se seguiria, logo no ano seguinte, em volume com a configuração de Obra Completa, e enfeixado aos anteriores, um novo inédito, Alma Orográfica (que passou a ser o título da sua obra poética). O volume coleccionou os maiores prémios de poesia do país e o autor remeteu-se desde então a um mutismo quebrado apenas por uma mão-cheia de poemas editados em revistas. Vem sendo traduzido para vários idiomas. A sua poesia é uma versão do poético como voo intransigente do espírito, inquirição órfica da mínima natureza como dos enigmas e mistérios da paisagem interior desdobrada em panejamentos sem fim, explorando formas como a ode mas em especial o hino, com extensão tendencialmente vasta – e, no seu último livro, coincidindo com um longuíssimo poema apenas. Com a sua obra, a poesia portuguesa recuperou a dicção rilkeana que raramente lhe foi conatural, se excluirmos os promissores poemas de Pascoaes e os hinos à noite, incorrectamente chamados «odes», de Pessoa ou ainda os «mistérios órficos» de António Rosa. De grande impacto na geração posterior, sobretudo em Jorge Felício (v.) e Maria Carlos Maria (v.), a sua poesia vem também exercendo um crescente fascínio sobre a crítica, em especial em Américo Lindeza Diogo e Pedro Mexia (Eduardo Lourenço dedicou-lhe um pequeno mas significativo ensaio, incluído na muito recente versão alargada de Tempo e Poesia).

«Ter falta de tudo, e ter tudo em falta, é o trabalho da sinédoque como figura da aspiração fracassada ao todo. Como é que um todo falta à parte, eis a questão. É preciso de tudo para fazer infimamente um mundo? Talvez… Como proporcioná-lo, eis talvez a questão. E que a parte seja mais integrante, com menos falta de tudo se o todo lhe faltar menos. A poesia é este dizer o que falta – e este dizer em falta».

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Dicionário Crítico por Intermitência

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Terça-feira, 19-05-2009

Inicio hoje, com esta nota preambular, a publicação daquilo que será uma série de verbetes para uma pequena obra em formato de dicionário sobre a literatura portuguesa de hoje. O primeiro micro-tomo será dedicado à poesia. Depois, se para tanto houver fôlego e inconsciência, surgirá um segundo, para a ficção, e um terceiro, sobre a crítica. Intitula-se a obra Dicionário Crítico por Intermitência (com o subtítulo Uma Descrição da Literatura Portuguesa Contemporânea) e cobre, em cada área, dois tópicos: 1) autores; 2) correntes dominantes. Proponho-a desde já a um editor benévolo ou, o que dá no mesmo, benevolamente hipócrita… Esclareço que creio moderadamente na originalidade deste meu opus, e duvido convictamente da sua pertinência. Mas uma vez que essa é uma boa descrição da minha existência, entrego-me serenamente à tarefa. O vento, como sempre, ajuizará.

Nas entradas sobre autores, deverá o leitor depreender que a citação final, em itálico, é um depoimento do autor. Abstenho-me de historiar miudamente a recolha de tais depoimentos, pois nos domínios do espírito tudo se ganha em abstrair da petite histoire, tantas vezes possuída de uma furiosa paixão pela petitesse. Nas entradas sobre práticas marcantes do campo literário de hoje, os depoimentos serão devidamente atribuídos em nota. Finalmente, esclareço que as entradas serão editadas sem qualquer preocupação de seguir a ordem alfabética, tal como deverá acontecer numa putativa edição em livro. Deixo-o aqui consignado a título de vontade última.

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