Os Livros Ardem Mal

Cenas tristes em S. Carlos

Posted in Artes, Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Sábado, 25-07-2009

Pelo que li, a primeira cena foi a seguinte (cito do Público):

 

O espectáculo “Recital e Tal”, produzido pelas Produções Fictícias, com selecção de textos de Nuno Artur Silva e Inês Fonseca Santos, e interpretação de Rita Blanco, Diogo Dória e Miguel Guilherme, adapta o “Manifesto Anti-Dantas”, de Almada Negreiros, para um texto anti-Ricardo Pais, incluindo a célebre frase “Morra o Dantas, morra! Pim”.

“Recital e Tal” foi apresentado há uma semana no Festival ao Largo, que encheu o largo do Teatro de São Carlos, em Lisboa, no último fim-de-semana.

 

Seguiu-se a segunda cena: Ricardo Pais, muito bem no seu papel, declarou que considerava o caso «uma insignificância».

Por fim, a terceira cena: a presidente do Conselho de Administração do S. Carlos e o director do D. Maria vieram «repudiar» a cena I, pedir desculpa a Ricardo Pais por ela, afirmando por fim: “Se tivéssemos sabido antecipadamente desta intenção teríamos optado por programar outro espectáculo”.

Um comentário breve, mas antes uma declaração de intenções: sou, creio, dos poucos portugueses que acham manifestamente abusivo o espaço ocupado pelas Produções Fictícias na produção do humor mediático em Portugal, e um dos que ressentem a ocupação do espaço público por essa empresa, no que se afigura um verdadeiro Take Over quase monopolista. Sou moderadamente apreciador de muita coisa dessa linha de produção: por exemplo, do Inimigo Público, que há muito não leio, do Eixo do Mal, etc.

Posto isto, o que é verdadeiramente lamentável nesta peça é o seu episódio III, digno de uma República (kultural) das Bananas. Não discuto o mérito de Ricardo Pais como encenador (mas suponho que o que está em causa é o seu lado «Citizen Kane»); mas também não discuto o direito das pessoas acima referidas a satirizá-lo, com ou sem razão (numa sociedade aberta, não é possível, nem legítimo, decidir dessa razão antes da sátira, que é aliás um direito cívico, ter lugar). O que me parece eminentemente discutível é o espectáculo, dado pelo director e presidente do Conselho de Administração de duas instituições centrais das nossas artes do espectáculo, de subserviência («respeitinho»), temor e inclinações censórias, confessadas de resto sem pejo. O que essas duas entidades conseguiram com a sua lamentável intervenção foi perverter o teor, inteligente, da declaração de Ricardo Pais sobre o espectáculo em causa. Por outras palavras, fizeram dele uma «não-insignificância».

Se era isto o que o Ministro da Cultura queria dizer quando afirmou, também ao Público, que o caso mostra que não evoluímos muito desde o «Manifesto anti-Dantas», os meus parabéns pela judiciosa opinião. Quanto aos intervenientes na triste Cena III, a única coisa a dizer é: Shame on you!

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Life in Motion (III)

Posted in Artes by Osvaldo Manuel Silvestre on Quinta-feira, 23-07-2009

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Life in Motion (II)

Posted in Artes by Osvaldo Manuel Silvestre on Quinta-feira, 23-07-2009

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Life in Motion (I)

Posted in Artes by Osvaldo Manuel Silvestre on Quinta-feira, 23-07-2009

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Check(Mating)

Posted in Artes, Comentários, Notas by Pedro Serra on Segunda-feira, 13-07-2009

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O jogo suspende o tempo para ganhar tempo, mas a Morte acaba por vencer: quando pensamos no xadrez teremos na retina, entre outras, a fantástica partida do Cavaleiro medieval, Antonius Block, e a Morte n’ O Sétimo Selo de Ingmar Bergman. No negócio dos óbitos, o xeque-mate é sempre jogada da Morte. Diria que Antonius Block não negoceia verdadeiramente, e não o faz por ética de classe: ou tudo ou nada, escatologia dos eleitos. A ética dos onzeneiros, sim. Dela é o purgatório que nasce na baixa Idade Média como estudou Le Goff: bálsamo de aflições pela salvação sufragada e pelo depósito a prazo. Antonius Block, paradigma de todas as virtudes violentas do guerreiro, joga xadrez com a Morte, furibundo bellator. Contudo, há uma outra tradição, também medieval, no imaginário do xadrez: a do jogo heterossexual, tradição que tem um avatar na performance de Marcel Duchamp e Eve Babitz de 1963. É esta tradição que justifica o post: não o xeque-mate, mas o (check)mating, estudado por Patricia Simons nos seguintes termos:

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Um bocadinho optimista, não?

Posted in Artes, Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Sábado, 11-07-2009

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Ver para crer

Posted in Artes, Óbitos by Osvaldo Manuel Silvestre on Sexta-feira, 26-06-2009

A. D.: Antes da Decadência. Num estado rigorosamente intangível, meio milímetro acima do atrito do mundo. Este é Michael Jackson. Tudo o que veio depois era já dolorosamente póstumo. E, como sempre foi manifesto, ele tinha uma trágica consciência disso.

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O Atelier de Tarsila

Posted in Artes, Notícias by Ana Bela Almeida on Terça-feira, 23-06-2009

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O “inferno verde” chegou a Santiago de Compostela. Até dia 31 de Julho, pode visitar-se na Fundação Caixa Galicia, gratuitamente, a exposição de Tarsila do Amaral, 82 obras entre quadros e estudos. Dos vários objectos expostos, quase todos relacionados com o motivo da “viagem” na vida e obra de Tarsila do Amaral, destaca-se um oratório mineiro do séc. XVIII. O rebuscamento das suas cores e formas acentua a inclinação neo-barroca do movimento Pau-Brasil, com o rosa pastel e o azul celeste do oratório reflectidos no espelho modernista “Manacá” (1927).

Manacá (1927)

Manacá (1927)

A presente mostra de Tarsila do Amaral, co-dirigida pela Fundação Caixa Galicia e pela Fundação Juan March, é apenas a terceira inteiramente dedicada à obra da autora na Europa. O poema “Atelier”, de Oswald de Andrade, que nos recebe na primeira sala da exposição, reforça a singularidade da ocasião. Se “Atelier” inaugura e, de certa forma, “legenda” a exposição, também acaba por sublinhar a própria ausência de Oswald. Não há dúvida que “o Tarsiwald”, na expressão de Mário de Andrade, é, desta vez, “a Tarsiwald”. Afinal, esta não é uma exposição dedicada ao Modernismo brasileiro, com Oswald de Andrade a servir de eterno anfitrião: esta é a exposição de Tarsila do Amaral, das suas pinturas e desenhos, das suas crónicas, dos seus ensaios, das suas fotografias e outras relíquias, com Oswald de Andrade como convidado no espaço/atelier tarsiliano. (more…)

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Ricardo Rangel (1924-2009)

Posted in Artes, Autores, Fotografia, Notícias by Osvaldo Manuel Silvestre on Terça-feira, 16-06-2009

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Sobre Ricardo Rangel, falecido a 11 deste mês e, com Kok Nam, um dos «inventores» da fotografia moçambicana, convirá ler Alexandre Pomar (aqui e aqui).

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O visível e o invisível em Paulo Valverde

Posted in Artes, Autores, Edição, Efemérides, Livros, Vária by Luís Quintais on Domingo, 10-05-2009

670954[Paulo Valverde. Fez agora em Abril passado, mais precisamente no dia 4, dez anos sobre a morte daquele que terá sido porventura um dos mais significativos antropólogos portugueses de sempre. Dir-se-á que é fácil atingir essa meta, porque a concorrência sempre foi de pequena monta. Sim, sem dúvida. Mas para quem alguma vez assistiu a uma aula deste homem que morreu com 37 anos, ou para quem teve o prazer de ler as suas páginas hoje tão esquecidas, a sua celebração é incontornável. Nesse sentido, gostaria de deixar aqui um ensaio meu já com alguns anos que desenvolve algumas linhas de interpretação do que poderá ser a sua escrita e a sua estratégia de recodificação desse «texto» que é a «cultura». O ensaio faz remissões ao livro póstumo que inclui muitos dos seus trabalhos mais teóricos e uma parte que creio substancial dos seus diários e notas de campo. Serve também o presente post para chamar a atenção para esse livro que deverá estar, estou certo disso, a apodrecer, exemplares muitos, nalgum canto escuro de um armazém de refugos. Triste sorte para um prosador extraordinário cuja escrita terá pouquíssimos antecedentes entre nós, e que, no seu melhor, ombreia com páginas de Malinowski e de Leiris. Ah, é verdade, aí vai a referência: Paulo Valverde, Máscara, Mato e Morte. Textos para uma etnografia de São Tomé, Oeiras, Celta, 2000.].

Entre a pequena comunidade de antropólogos sociais portugueses, é reconhecida a enorme perda intelectual e afectiva (sobretudo para aqueles que com ele privaram de perto) que representou o falecimento prematuro de Paulo Valverde (1961-1999). Vítima de malária contraída em São Tomé, Paulo Valverde afirmar-se-á cada vez mais como uma espécie de personificação trágica e mítica da figura do antropólogo enquanto herói. Não no sentido lévi-straussiano do termo, isto é, enquanto herói civilizador capaz de resgatar o fogo sagrado de culturas cujo recorte elegíaco ou crepuscular se tornou forçosamente aparente durante o século XX. Mas antes como aquele que, compreendendo o quanto há de culturamente perverso nas modalidades salavacionistas mais ou menos declaradas mais ou menos conscientes da disciplina, se afadiga em traçar-lhe novos rumos não apenas metodológicos (Paulo Valverde era alguém que, comprometido com uma dada tradição metodológica, o fieldwork situado e localista, parecia cada vez mais incomodado com os seus limites) , mas também, e com especial ênfase, novos rumos analíticos. O heroísmo, a haver um, está na determinação e no seu risco (um risco que ele assumira e que pode ser qualificado igualmente pela intimidade cultural, sem par entre os antropólogos sociais portugueses das últimas décadas, que foi assegurando no terreno). Paulo Valverde acreditava na possibilidade da disciplina se reconstituir enquanto analítica das metanarrativas modernas, entre as quais se encontrariam, certamente, os projectos salvacionistas e politicamente correctos evidenciados por tantos dos seus contemporâneos, e, de forma particularmente indiossincrática e inquestionavelmente sedutora, demonstrava-o através dos seus textos, aulas, e inúmeros momentos de discussão informal de que poderam beneficiar todos aqueles que foram seus alunos e colegas. (more…)

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Edgar Allan Poe sem intuição e sem acaso

Posted in Artes, Autores, Comentários, Crítica, Edição, Efemérides, Livros, Notas, Poesia, Recensões, tradução, Vária by Luís Quintais on Domingo, 03-05-2009

d2687f5ef69d40cb8a6dc5b3121b3b95-smallbookPoe é um dos portais da modernidade literária. Sem ele, outra seria a nossa percepção do que foram/são Baudelaire, Mallarmé, Eliot, Pessoa, etc. Sem ele, não teríamos muito provavelmente, o drama da emoção e da razão tal como o viveram e expressaram os modernos.

Nos duzentos anos sobre o seu nascimento (Poe nasceu a 19 de Janeiro de 1809 e faleceu a 7 de Outubro de 1849), o mais traduzido dos autores americanos em Portugal, tem nesta Obra Poética Completa uma das suas homenagens mais significaticas.

Poe foi talvez um dos primeiros poetas a explicitar uma poesia por vir, marcada pelos desígnios maiores da ciência. A diluição dos «enigmas» da natureza e do humano, a convivência com um mundo «desencantado», a urgência de recodificação através das lições do gelo que a ciência comportava e comporta inexorovelmente: tudo temas que a poesia de Poe articula de um modo constante, ao mesmo tempo que pretende aceder a um patamar de reinvenção formal da escrita onde se apela a uma exigência de «método» (que o célebre ensaio «A Filosofia da Composição» enuncia).

Esta tensão entre o desencantamento do mundo e a sua requalificação pode ser ilustrada através do poema «Soneto – À Ciência»: «Ciência, ó filha do Tempo Velho! / Que, de olhos coruscantes, tudo espreitas, / Por que rasgas ao poeta o amplo peito, / Abutre de asa rude que se engelha? Como te pode amar, crer-te avisada, / Que o não deixaste andar, errante, ao vento, / Buscando as jóias que há no firmamento / Ainda que o singrasse de asa ousada? / Diana escorraçaste da quadriga, / Do bosque a Hamadríade (fugindo / Ela a abrigar-se em estrela mais amiga), / À Náiade tiraste a onda cava, / Ao elfo o prado, e a mim o tamarindo / Em cuja sombra eu no Verão sonhava.» (OPC, p. 80).

A edição é primorosa, com uma excelente tradução, introdução e notas de Margarida Vale de Gato (uma tradutora que merece referência pela qualidade e quantidade do seu trabalho de tradutora), e com notáveis ilustrações de Filpe Abranches.

Acresce ainda o já referido ensaio  “A Filosofia da Composição” (pp. 273-288), onde Poe explicita a génese de «The Raven» (ler p. 277), e nos revela a intenção de uma poesia sem «acaso» e sem «intuição».

É pena que a edição não seja bilingue; porém é compreensível: tal projecto iria seguramente encarecer uma edição desta exigência gráfica.

Edgar Allen Poe, Obra Poética Completa. Tinta-da-China, 2009 [ISBN 978-972-8955-93-9].

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Nas Carolinas (Wallace Stevens)

Posted in Artes, Autores, Livros, Oficina, Poesia, tradução by Luís Quintais on Domingo, 26-04-2009

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Os lilases murcham nas Carolinas.
Já as borboletas adejam sobre os camarotes.
Já os recém-nascidos interpretam o amor
Nas vozes das mães.

Mãe intemporal,
Como é que teus galantinos mamilos
De uma vez verteram mel?

O pinheiro adoça o meu corpo
A íris branca embeleza-me
.

[Trad. Luís Quintais]

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Acidente e simulação em JG Ballard (pré-publicação)

Posted in Artes, Autores, Crítica, Efemérides, Livros, Notícias, Recensões, Vária by Luís Quintais on Segunda-feira, 20-04-2009

ballardsroom6Negativity is a positive task.
Paul Virilio

De que forma é que a literatura cooptou um dos dados mais fundamentais da experiência moderna: a presença incontornável (e o lado inexorável dos processos que essa presença reclama) de uma paisagem radicalmente transformada pelo concurso da ciência, ou melhor, da tecno-ciência? A pergunta instala-se imediamente num contexto de contornos difusos, mas mesmo assim decisivo para nós. A noção de tecno-ciência faz-nos assumir que o conhecimento científico se inscreve em complexas configurações de natureza social e material que lhe dão a sua gravidade, densidade, e poder. De que forma é que a literatura respondeu às figurações utópicas e distópicas do projecto moderno que visava projectar o mundo de acordo com os preceitos de um conhecimento politicamente necessário porque experimentalmente validável e universalmente verdadeiro?

Como alguém que prefere uma singularidade para fazer ecoar forças  de improvável cartografia que a atravessam, sugiro que nos concentremos num exemplo cujas reverberações se tornam, a meu ver, reveladoras. A minha sugestão é que nos atenhamos a uma espécie de genealogia mais ou menos solta da escrita de um romance particularmente influente e sobre o qual se projecta uma luz que gostaria de caracterizar como oracular, isto é, como se se tratasse de um objecto que reclama uma exploração extrema (e extremada) realizada num território de potencialidades que parecem emergir sinuosamente do presente, esse presente que se dilata e que nos colhe irremediavelmente. Estou a falar de Crash (1973) de JG Ballard, e Crash pode ser pensado a montante, porque o livro é o resultado de um conjunto de obsessões que lhe são prévias.

Em conformidade com um dos preceitos ballardianos que nos diz que, para lá das nossas obsessões, pouco haverá que valha a pena ser perseguido, Ballard aventurou-se quase sistematicamente, desde finais da década de sessenta, num território de inquietação profunda a que Freud designou de Das Unheimliche, e a que o antropólogo Victor Turner chamaria certeiramente de liminar, isto é, um território de improvável classificação, porque betwixt-and-between: nem dentro nem fora, mas antes no umbral, aí onde a viscosidade (um mundo que não é líquido e que não é sólido) se torna uma constante afectiva, e onde aquilo que nos fascina é igualmente aquilo que nos repugna.

O cenário é o de um mundo onde se dramatiza e performatiza o espectáculo debordiano de uma sociedade de consumo que faz das derivas tecnológicas – e dos sulcos que estas deixam no tecido da história e da paisagem – uma alavanca para o seu exercício autofágico e onde, polémica e prescientemente, tecno-ciência e pornografia se associam num exercício de reconfiguração do poder e do desejo.

(…)

No seu último Miracles of life, Shanghai to Shepperton: an autobiography (2008), Ballard revisita Crash, revelando-nos, mais uma vez, como se trata um livro profundamente enraizado num período histórico (os sixties) e como a tópica do «acidente» e da (more…)

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JG Ballard

Posted in Artes, Autores, Balanço, Comentários, Efemérides, Livros, Notas, Notícias, Vária by Luís Quintais on Segunda-feira, 20-04-2009

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Faleceu o nosso correspondente em Shepperton. Leia-se, por exemplo, o obituário do Guardian.

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O sentido é revisitação ou uma selva dentro da selva ou por que é que o cérebro não explica a arte ou só a explica parcialmente

Posted in Artes, Autores, Comentários, Livros, Notas, Oficina, OLAM, Vária by Luís Quintais on Sexta-feira, 03-04-2009

neuronUm dos aspectos mais interessantes das chamadas neurociências cognitivas contemporâneas prende-se com a relevância que aí assume uma imagem do cérebro enquanto estrutura dotada de uma complexidade e de uma plasticidade extraordinárias.

A arte pode ser pensada frutuosamente como um aspecto da cognição humana, isto é, como algo que resulta de um processo multiforme de aquisição de conhecimento, e, nesse sentido, como algo que radica em processos que poderíamos descrever como mentais.

O problema começa talvez aqui.

A minha tese é a de que sem cérebro não há mente (o que é, desde Thomas Willis e da «neurocentric age», uma evidência incontestável), mas que a mente não é o cérebro; penso, aliás, que não há consensos alargados sobre aquilo que a mente é, e de que forma é que podemos passar das ontologias na terceira pessoa para as ontologias na primeira pessoa, ou, de outro modo, da objectividade para a subjectividade, e vice versa. Estamos na fronteira, e toda a gente sabe como são as fronteiras que tornam a ciência fascinante, difícil, ou, de outro modo, de exercício quase improvável. Somos confrontados com aquilo que não sabemos, ou, eventualmente, com os limites do que sabemos.

De acordo com uma leitura wittgensteiniana do que se encontra aqui em causa, talvez estejamos perante um problema de linguagem ao dizermos que são os cérebros que pensam.

Wittgenstein ensinou-nos, como nenhum outro, a suspeitar da linguagem. As palavras podem trair-nos e levar-nos a olhar para certos problemas como problemas reais, quando eles não passam de puzzles que devem ser desmontados. Assim, se os estômagos não comem também é muito improvável que os cérebros pensem, ainda que, e volto a enfatizar este ponto, não possa haver pensamento (e todos os seus avatares: consciência, intenção, memória, etc.) sem cérebro.

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As máscaras da fome no teatro da contemplação (III)

Posted in Artes by Osvaldo Manuel Silvestre on Quinta-feira, 29-01-2009

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Ao entrar, conduzido pelo «revisor», no hall do andar inferior do edifício do Teatro da Cerca, o «espectador» ouve, imóvel e em silêncio, o início do conto de Kafka, Um artista da fome. E quando desemboca enfim na sala, todo o seu trabalho de «contemplação insone» do espectáculo é acompanhado pela escuta do texto de Kafka, lido por António Jorge, na jaula com que se mima o dispositivo «cénico» central do texto.

Escuta ou audição? Barthes notava que a segunda é um fenómeno físico, enquanto a primeira exige uma disponibilidade do foro psicológico. Ao entrar no edifício, as primeiras palavras do conto ressoam naquele regime auditivo de quem ouve uma informação em altifalante num qualquer não-lugar: um aeroporto, uma estação ferroviária, um hall de entrada de uma instituição pública. As palavras «O interesse por artistas da fome diminuiu muito nas últimas décadas» chegam aos ouvidos dos espectadores na modalidade pragmática de uma saudação: «Bem-vindos ao teatro!» Mas quando o espectador, já na sala, se depara com o espectáculo beckettiano do meio corpo do actor que lê, na jaula, o texto de Kafka, é demasiado claro que o alcance dramática daquela cena exige escuta: esvaziamento e disponibilização do sujeito para a re-saturação do seu espaço interior pela ressonância da palavra. É nesse ponto que o conflito mais produtivo do espectáculo se desencadeia, entre a necessidade de escuta de um texto que propõe a irrepresentável figura de um «artista da fome» e a imposição, sem fuga possível, de um espectáculo saturado de objectos significantes que não pode deixar de ser visto e percorrido até aos limites de toda a possibilidade de descrição. Os problemas, sintácticos e semânticos, da «instalação teatral» de António Jorge moram justamente aqui: (i) no facto de a opsis dispor nesta obra de uma força impositiva tal que tende a relegar a relação com a palavra para o estatuto da mera audição, quando de facto necessitaria (ii) que a palavra reordenasse, a partir de uma hierarquia centrada em si, o visível e a tirania fenomenológica da imagem sobre essa entidade reveladoramente (mas sempre erroneamente) denominada «espectador».

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As máscaras da fome no teatro da contemplação (II)

Posted in Artes, Crítica by Osvaldo Manuel Silvestre on Quinta-feira, 08-01-2009

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Boa parte das questões levantadas pelo espectáculo criado por António Jorge a partir da sua colecção de máscaras pode colocar-se sob a égide daquela proposição wittgensteiniana que prescreve a impossibilidade da teoria e a sua necessária substituição pela «mera» descrição. A estranheza do objecto parece de facto pedir a restrição cognitiva de quem se predispõe a tão-só descrever o que vê e ouve, uma vez que as teorias com que chega ao espectáculo – sobre «teatro», «espectáculo», «público», etc. – chocam com a coisa ali defronte (que aliás, e aí começam os problemas, não está «ali defronte»). Porque, desde logo, não é claro que a coisa integre as «artes performativas»; e porque uma das questões decisivas do espectáculo reside justamente na forma como põe em cheque a delimitação territorial mais pregnante na área, nas últimas décadas, entre «teatro» e «performance», delimitação na qual, a priori, o primeiro termo faz o papel conveniente de segmento estável de uma relação na qual o segundo termo funciona como elemento mais vasto, omnipresente, omniformativo e omnipotente. Digamos, por agora, que na actual economia desta relação a performance necessita de que o teatro seja uma coisa – um objecto, a que corresponde, na topografia de Philip Auslander, uma disciplina «objectual»: os estudos teatrais – para que a performance seja uma não-coisa a que corresponderia, ainda para Auslander, uma disciplina «paradigmática»: os estudos da performance.

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As máscaras da fome no teatro da contemplação (I)

Posted in Artes, Crítica by Osvaldo Manuel Silvestre on Segunda-feira, 29-12-2008

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700 Máscaras à Procura de um Rosto ou Um Artista da Fome é o estranho título do último espectáculo em cena n’ A Escola da Noite. Inicialmente anunciado para um curto período em Dezembro (de 11 a 20), o espectáculo foi felizmente prolongado para o período de 6 a 17 de Janeiro. Digo «felizmente» por se tratar de um espectáculo de grande impacto visual e de assinalável inteligência «conceptual», que seria pena limitar a 9 dias, ainda que em sessões duplas. O impacto do espectáculo deve-se à exibição das 700 máscaras, além de outros objectos escultóricos, da autoria de António Jorge, actor, cenógrafo, aderecista da companhia e obsessivo artesão; a inteligência, essa está patente na proposta de articulação, não muito evidente à primeira vista, entre a «mostra museológica» de 700 máscaras e o texto de Kafka «Um artista da fome», um texto dotado da capacidade de perturbação dos  textos maiores do autor.

O espectáculo vem com uma indicação de género: «Instalação teatral». Ou seja, não é claro que seja teatro, mas também não é claro que o não seja. Podíamos resolver o problema, como é usual na cena contemporânea das artes, decretando a impertinência teórica da questão; não creio que ele fosse assim resolvido, antes «pontapeado para canto», sendo talvez mais pertinente sugerir que não se trata ainda – e, n’A Escola da Noite, seria caso para dizer que essa é uma fronteira sempre repelida – de «teatro pós-dramático», uma vez que o espectáculo, como sempre na companhia em causa, confia aos poderes do texto boa parte do seu sortilégio: a estratégia de recurso a um grande texto literário, propondo a sua recodificação dramática, é aliás reconhecível no código genético da companhia. Em todo o caso, estamos, com este espectáculo, num dos limites de qualquer noção, por mais alargada, de «teatro»: o limite da imobilidade e da (quase) ausência de representação. O que é o mesmo que dizer que não nos livramos da questão colocada com grande inteligência pela designação «Instalação teatral», sendo ainda minha convicção que, mesmo apesar do texto (e apesar do texto ser de quem é), não conseguimos também, por causa de tudo o que no espectáculo solicita e responde à designação «Instalação teatral», livrar-nos da questão a que Hans-Thies Lehmann deu o nome de «teatro pós-dramático».

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