Os Livros Ardem Mal

Sobre um livro sobre o livro

Posted in Crítica, Livros by Manuel Portela on Sexta-feira, 13-03-2009

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No prefácio das autoras ao seu Dicionário do Livro: Da escrita ao livro electrónico fica claro um dos problemas do livro – não deste livro em particular, mas do próprio conceito e forma que designamos pela palavra ‘livro’. Confrontadas com a vastidão do tema e com a natureza, em última análise, arbitrária das categorias que temos de usar para classificar o mundo – ainda quando esse mundo é o mundo aparentemente determinável e ordenável do léxico bibliográfico -, Maria Isabel Faria e Maria da Graça Pericão tentam explicitar as múltiplas racionalidades com que o vocabulário do livro se constelou nas cerca de 25000 entradas (sim, 25000!, não é gralha) que integram esta opus magnum. Por exemplo:

«[…] pretendemos registar os termos do passado que, pouco a pouco, foram sendo abandonados; fazê-lo em simultâneo com a terminologia a que chamaremos de ponta, que as novas tecnologias da comunicação aplicadas à informação trouxeram consigo. Pretendemos também conservar na língua portuguesa algum vocabulário cujo desaparecimento tende a verificar-se com o advento e a imposição de novas técnicas.» (p. 7)

«A terminologia que a obra contempla pretende ser a mais característica de ciências e/ou disciplinas como história da escrita e sua natureza (paleografia, diplomática, filologia), sigilografia (importância documental orgânica do selo), bibliografia, história do livro, biblioteconomia, codicologia, novas tecnologias ao serviço da informação (informática e ciência do audiovisual), sociologia da informação – suas incidências e problemáticas sociais, ciências físico-químicas (no que respeita a problemas e técnicas de conservação dos suportes de escrita e seu restauro) e novas questões da ciência da informação, indústria da informação, gestão de documentos e gestão da informação.» (p. 9)

Esta dificuldade em circunscrever a terminologia a incluir não decorre apenas da intenção de combinar organização sincrónica e diacrónica, dando conta de momentos históricos significativos através da terminologia específica de certas épocas e tecnologias. Decorre também da participação do livro em inúmeros processos sociais e culturais, e das consequentes associações semânticas que expandem o vocabulário do livro para múltiplos contextos de produção, transmissão e recepção. E decorre ainda de uma intensa proliferação lexical nas três últimas décadas – em muitos casos através da importação de palavras e expressões em inglês – originada pela acelerada transição da cultura impressa para a cultura digital, que reconfigura a materialidade do livro. Por causa deste processo, milhares de novos termos oriundos da linguagem das aplicações e das redes informáticas passaram a fazer parte do vocabulário do livro. O efeito combinado destes três factores parece tornar vã qualquer tentativa de saber exactamente o que constitui um abecedário do livro num horizonte que se estende do manuscrito ao electrónico.

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Scriptor ex machina (VI)

Posted in Autores, Crítica by Manuel Portela on Sábado, 20-09-2008

«A Respiração» (77-102)

A água treme no livro. Corre, apagando as letras que iluminavam. (81)

Aqueço a letra na porcelana. Destilo a fúria. Separo o eco, a alegria. A forma indico e o encanto. (84)

O incêndio começou primeiro nos livros.
A gramática que todos os dias se menstruava faleceu entre dois tempos dum verbo. O dicionário que era o mais perigoso dos desportos onde a respiração nos faltava entre duas consoantes adormeceu aos pés duma palavra nova que fabricava mulheres e sol.
Às janelas dum compêndio de geografia um rio com os vestidos em chamas amaldiçoava os professores.
Um rei enforcou-se à porta dum reinado depois de ter dormido ao fundo duma página com a mais virgem das rainhas e desacreditou a história do país.
Só mais tarde o incêndio veio na pele do jornal e envenenou muitos homens na província.
Lídia adormece, morre nesta linha.
A barba leva o vento para a cidade. (85)

Os teus mamilos fi-los. (86)

Sê louco leitor. (Ao menos uma vez.) Come esta folha. (89)

Lá fora o meu calor continua.
Às vezes, leio. (100)

Julho. E termino de pé. Para emagrecer finalmente esta solidão. E respiro este livro. (102)

 
Manuel da Silva Ramos, Os Três Seios de Novélia, Dom Quixote, 2008 [3ª edição]. ISBN 978-972-20-3597-2 [1ª edição, Inova, 1969; 2ª edição, Fenda, 1996]

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Scriptor ex machina (V)

Posted in Autores, Crítica by Manuel Portela on Sábado, 20-09-2008

«Um Longo Nascimento» (49-76)

Só tenho uma única ambição na vida: conhecer o Alberto Caeiro. (59)

Dorme à vontade. O pão está já escrito. (59)

Folheias os livros. Os lábios. Os olhos às vezes. Nada encontras. Nem som. Nem sangue. Folheias sempre. (59)

Zola: uma vela de três sous era uma noite de literatura. Escrevo à sombra da electricidade. Entre dois meios de iluminação a mesma preocupação. A mesma atmosfera sobre as costas. (60)

Manuel da Silva Ramos compra Manuel da Silva Ramos. (61)

Manhã do lápis. Compreendes? Lápis que (me) se gasta. (62)

Tenho os olhos no dicionário. Grossos. Inflamáveis. (63)

Na relva que está para lá dos barcos e para cá da rua há uma criança que brinca com uma bola. Às vezes, a criança apanha a bola e leva-a ao peito. Outras vezes esconde-a nas costas. A bola nasceu bem dela. A bola vive e há-de morrer como a criança.
O pai de mãos nos bolsos, perto, não pensa nisso porque criou a criança com sangue. Ainda hoje era capaz de semear as suas mãos pela criança. Embora a criança lhe coma lentamente a vida.
Se a criança lançasse a bola ao poema eu apanhá-la-ia? (63)

Entretenho-me com as pessoas. Combino-as. Meto-as depois na minha vida. Assim a caneta vai forçando o papel: uma rapariga e um rapaz. (64)

Um dia hei-de ser velho… Não. Nunca serei velho. Mato-me. Há mais, muitas pessoas no café. Mas a tinta falta-me. Procuro a tampa e enrosco-a no aparo e escondo a caneta no corpo interior do casaco e deixo de pensar. Como se fosse a entrar no sono sem nada na manga. (64-65)

P.S. Um vómito para o leitor. (70)

Manuel da Silva Ramos, Os Três Seios de Novélia, Dom Quixote, 2008 [3ª edição]. ISBN 978-972-20-3597-2 [1ª edição, Inova, 1969; 2ª edição, Fenda, 1996]

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Scriptor ex machina (IV)

Posted in Autores, Crítica by Manuel Portela on Sábado, 20-09-2008

«Os Três Seios de Novélia» (17-48)

 
De pé desço a rua duma grande cidade.
De pé sobes a rua duma grande cidade. (17)

Aqui neste café, onde sou docemente desconhecido, olho para a décima sétima página do romance. Poiso os olhos sobre as coisas como se quisesse que elas falassem e ganhassem de repente mil e uma formas tranquilas ou assustadas e depois decrescessem lentamente até desaparecerem por completo. A décima sétima página é todo um sorriso de Novélia. Um sorriso vivo. Pedi-lhe um sorriso. Meti-o entre duas páginas. Até ele depois se colar à cara dum leitor. Mas é um sorriso que deve ficar no livro. Por isso, o leitor o retribuirá depois. São e salvo. Escrevo «Há apenas dez maneiras de sorrir. A primeira, é sorrir antes do tempo…» (38)

«Quem tocou nas letras com as mãos? Que estacas as seguravam? Também perguntei a mim mesmo: as palavras nunca se cansam, não fazem outra coisa senão correr sem cessar de manhã à noite; mas, onde param? Quem as força a correr desta maneira? Quem as manda? Ontem na minha página não havia uma só letra nascida: fui lá hoje e encontrei várias. Quem deu a terra, a sabedoria, o poder para o fazer? E tapei a cara com as mãos.» (40)

Portugal. Hoje, Novélia não apareceu. A rua desta cidade crescia à cinco e um quarto da tarde. De Novélia apenas o cheiro característico da rua: Arothron aerostaticus. É que para lá da rua há um mercado. Agora a rua ganhou a sua exacta dimensão real e está assente finalmente na estatística com as suas leis, geometria, equilíbrio vital, tempo rígido. Uma rua que ia dar a todas as ruas do mundo. Uma rua onde nunca mais passarei. (47)

Manuel da Silva Ramos, Os Três Seios de Novélia, Dom Quixote, 2008 [3ª edição]. ISBN 978-972-20-3597-2 [1ª edição, Inova, 1969; 2ª edição, Fenda, 1996]

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Scriptor ex machina (III)

Posted in Autores, Crítica by Manuel Portela on Sábado, 20-09-2008

…no ano em que entrei para a escola o meu pai morreu. Foi uma tia, uma velha tia, solteira, perdida na memória das famílias que me levou para a sua casa e que me ensinou a correr com ela pela tabuada fora. Depressa aprendi o brilho dos números e a evidência das letras. Depressa descobri o lápis, a borracha, o desenho. Ficava longas horas a copiar o gato da minha tia. Nunca o consegui meter no papel. Um dia o gato morreu e como não tinha mais nada para desenhar comecei a olhar para a minha tia às escondidas. Ela ficava todo o dia sentada numa cadeira a experimentar, a multiplicar o fio, o frio, porque dali sairia uma camisola para o meu inverno. Eu espreitava pela porta entreaberta: o lápis nos dedos, o caderno no chão e com um grande incêndio nos olhos. (23-24)

A sensorialidade é a sensorialidade da máquina evocativa e rememorativa da escrita. Mas é sobretudo a própria materialidade da língua, nas associações sonoras e semânticas, na corporalidade perceptiva dos seus sons e sentidos, na dinâmica permutativa e recursiva das frases. Os Três Seios de Novélia contém o genoma da escrita como acto de escrita que exulta com a sua capacidade de invenção, que é capacidade de associação infinita e de ressignificação inesperada, de replicação regenerativa do código verbal. A oscilação entre impulso narrativo e impulso lírico produz, a nível discursivo, um ritmo imagético que ecoa o ritmo sincopado do fraseio sintáctico. E o riso, à beira de estalar a meio da frase -um dos efeitos viscerais da escrita no acto de leitura -,  logo se transmuda em devaneio surreal, em imagem fantástica, em acontecimento recordado, em acontecimento observado. É o histrionismo do acto de escrita que aqui se escreve a si mesmo, e que coloca em dúvida, no próprio momento em que a ela se entrega, a possibilidade de referência extratextual: «E ao fundo da décima sétima página, já na curva para a décima oitava encontro Novélia sentada.» (39)

Tal como a personagem, o escritor surge como um efeito da radiação ontológica da máquina da escrita que o produz como sujeito do seu acto de escrita: «13/ Só tenho uma única ambição na vida: conhecer o Alberto Caeiro. 14/ Dorme à vontade. O pão está já escrito.» (59) Dentro do texto, o mundo é o efeito do seu acto de fala particular, do acto de escrever, que é ao mesmo tempo o acto de fala que o produz como escritor fora do texto e lhe confere identidade social. A profunda consciência do acto da escrita e o encantamento sensorial com as possibilidades narrativas e estilísticas da língua são duas características definidoras da sua obra posterior – uma obra onde o plano do discurso e o plano da estória parecem encantar-se não só com a ficcionalidade da ficção, mas com a ficcionalidade da linguagem. Mais do que a sua dimensão representacional, é esta espécie de luxúria verbal ou de gozo com a língua que constitui a experiência de leitura nos romances de Manuel da Silva Ramos. A sensorialidade da palavra, a sua verbalidade, faz retroceder para segundo plano a arquitectura narrativa, fixando o leitor no desenrolar das próprias frases como essência da narratividade. E é essa função da palavra e da escrita que Os Três Seios de Novélia mostram através da consciência nascente do escritor enquanto scriptor ex machina. O verbo faz surgir o mundo, sim, mas faz surgir sobretudo o mundo do verbo. Um mundo onde é possível ao escritor inventar para os leitores a carnalidade da linguagem que os constitui – escritor e leitores – como produtos e sujeitos de actos de escrita e de actos de leitura particulares.

Manuel Portela

Manuel da Silva Ramos, Os Três Seios de Novélia, Dom Quixote, 2008 [3ª edição]. ISBN 978-972-20-3597-2 [1ª edição, Inova, 1969; 2ª edição, Fenda, 1996]

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Scriptor ex machina (II)

Posted in Autores, Crítica by Manuel Portela on Sábado, 20-09-2008

Não conseguir dizer o que lhe acontece com os signos que inventou – para se dizer e para dizer o mundo – parece constituir a própria natureza dos signos e do ser simbólico que através deles lhe cabe ser. Nasce, cresce, reproduz-se, morre. A cada frase revive a insuficiência das palavras para o dizerem e para dizerem o mundo. O mundo é uma breve alucinação que não chega sequer a apreender, e o sujeito um produto dessa alucinação contaminada de signos. Escrever a escrita é seguir as frases até onde não sabe que elas o levam. É abrir com elas um caminho que não havia antes. Fazer aparecer, ao mesmo tempo, como que por magia, um ponto de vista sobre o mundo e o mundo que esse ponto de vista faz aparecer. E essa é uma das experiências que a leitura de Os Três Seios de Novélia lhe oferece: a experiência da singularidade do acto de fala da escrita, capaz de fazer acontecer o que diz, seja a escrita, seja o sujeito, seja o mundo. Novélia surge como a própria condição da novela e do romance, da ficção enquanto possibilidade de mundo. Não é apenas um nome que abre a possibilidade de um referente extratextual, isto é, a mulher que a escrita conjura nas ruas e lugares da cidade. Novélia é também – é sobretudo – o movimento incessante da própria escrita que aponta para si mesma e para a natureza do seu acto. O escritor escreve-se ao escrever. Produz a linguagem que lhe há-de permitir ver-se como produto da performatividade da escrita. A escrita faz acontecer a escrita e o mundo como efeito da escrita. É esta descoberta da escrita como acto de fala o que sobressai neste três primeiros textos de Manuel da Silva Ramos. Escrevendo-se (isto é, descrevendo-se e narrando-se a escrever), o narrador descobre a co-extensibilidade entre mundo e linguagem. Um e outra são o avesso e o direito da capacidade de representação e de expressão contida na escrita. Escrever é uma forma particular de criar mundo, de criar mundos no mundo: «Novélia (chamo-te Novélia) mostra as mãos. Agora sorri para eu sorrir. Para eu acreditar. Para tu viveres.» (18)

«Romance? Poema?» – a interrogação com que Óscar Lopes apresentava a edição de 1969, vale ainda, quarenta anos depois, para toda a obra posterior de Manuel da Silva Ramos. A tensão entre o desejo de narrativa e de hetero-referência do romance, por um lado, e o desejo de plenitude lírica do poema como lugar auto-suficiente de comoção com a beleza dolorosa mundo, por outro, continua a constituir o motor da combinatória linguística que a sua escrita inventou. Dessa tensão fazem parte a oscilação frequente entre clímax e anti-clímax, a combinação da pincelada psicológica com a caricatura social, a surrealização do registo realista, a paródia estilística (como no «Sermão de Santo António aos Astronautas») e uma lógica combinatória nas variações técnicas e temáticas (como os nomes de ruas e cafés n’ «Os Três Seios de Novélia», ou os meses do ano n’ «A Respiração», ou os aforismos em «Um Longo Nascimento»). Reconhece-se, retrospectivamente, o início da sua escrita maximalista e inclusiva, à maneira de James Joyce, de acumulação das múltiplas formas da experiência humana. Reconhece-se também a permutação gerativa, à maneira de Calvino. A técnica de justaposição desierarquizada, de que depende a lógica onírica do texto, contamina igualmente o registo realista, cuja sensorialidade surge assim intensificada.

Deitado. Nu. Vou pedalando pela modorra. Acordei há meia hora e vou. Minha bicicleta tentando a velocidade. Às vezes um furo. Um prego? Um grito duma mulher na rua. No guiador levo um embrulho antigo: a minha cabeça. Não há vento. A manhã vai turvando. Agora é dum verde reluzente. Pinga. A estrada pouco desce. É branca. Relincha. Dos lados há homens e mulheres amando-se. Risos, choros, gás, gaviões. Dolorosa fila indiana. Sangue, esperma, filhos, países. (34)

Manuel Portela

Manuel da Silva Ramos, Os Três Seios de Novélia, Dom Quixote, 2008 [3ª edição]. ISBN 978-972-20-3597-2 [1ª edição, Inova, 1969; 2ª edição, Fenda, 1996]

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Scriptor ex machina (I)

Posted in Autores, Crítica by Manuel Portela on Sábado, 20-09-2008

O que tem de específico uma forma de escrever? O que faz um acto de escrita? Se considerarmos que a escrita é uma categoria particular dos actos de fala, de onde lhe vem a força? Ou quais são os seus efeitos? O que é que a escrita faz acontecer? Que relação institui entre escritor e texto, entre texto e mundo, entre escritor e leitor?

Escrever, na sua manifestação mais aberta, isto é, quando a escrita é a invenção e a descoberta de si mesma e das possibilidades contidas na língua, parece tomar a forma de uma luta contínua entre o sujeito e a linguagem. Se o sujeito se constitui na linguagem, que lhe oferece a possibilidade de se auto-referir e de referir o mundo, isso significa também que o ser, as formas do ser, são produzidas pela linguagem. É nelas e através delas que é dado ao sujeito a possibilidade de se constituir: pensar-se, sentir-se, ver-se; pensar o mundo, sentir o mundo, ver o mundo. É talvez essa experiência da intimidade entre língua e ser que a escrita permite tornar processualmente consciente no acto de fazer traços sobre o papel ou de digitar as letras que o teclado transfere para o ecrã. O desejo pode então ser pensado como um processo, sempre diferido, de o sujeito tentar dizer a linguagem que o diz a si próprio e ao mundo.

Mas dizer a linguagem só é verdadeiramente possível fazendo a linguagem dizer o não-dito, o ainda não-dito, o entre-dito, o interdito, o que não se sabe como dizer, o que não se sabe que é possível dizer. Esse é, num certo sentido, o ofício do escritor: descobrir e inventar hipóteses de dizer-se e de dizer o mundo contidas nas possibilidades combinatórias da língua. A sua função particular consiste nisto: entregar-se ao jogo combinatório da língua e produzir as frases capazes de dizer a possibilidade de o sujeito e o mundo serem na linguagem. Em certa medida, a luta com os signos é uma luta perdida e um acto falhado, que o escritor está disposto a perder e a falhar, sempre mais uma vez, sempre disposto a recomeçar. Este fracasso é também o seu esplendor, já que cada lance de dados da escrita abre uma nova possibilidade de mundo e de ser. Pensado como acto de fala singular, cada acto de escrita constrói uma forma específica de mundo e de ser. O efeito principal da escrita é a própria escrita. Por outras palavras: a escrita é o registo de si própria. Dá-se a ver dando-nos a ver como nos mostra o mundo, quer dizer, como cria o mundo que nos mostra.

Manuel Portela

Manuel da Silva Ramos, Os Três Seios de Novélia, Dom Quixote, 2008 [3ª edição]. ISBN 978-972-20-3597-2 [1ª edição, Inova, 1969; 2ª edição, Fenda, 1996]

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A Sala Magenta

Posted in Autores, Crítica by Manuel Portela on Domingo, 20-07-2008

A advertência com que Mário de Carvalho abre o seu último romance sinaliza a condição paradoxal do próprio romance enquanto género. Constituindo-se como representação ficcionada de um mundo que é co-presente ao acto de escrita, o romance tem de reafirmar, a cada instanciação, e a um mesmo tempo, a sua verosimilhança e a sua ficcionalidade. Lê-se na advertência: «A acção e as figuras deste romance reportam-se a um mundo ficcional de entrada franca, sem chaves ou gazuas. Procurar moldes da vida real para acontecimentos e personagens é ter em má conta a imaginação do autor. Pode ser que ele o mereça, mas não os lesados por equívocos de leitura.» (7)

O que isto quer dizer é que o mundo representado deve ser reconhecível, mas toda a referencialidade não deve ser senão intratextual – própria da escrita enquanto acto de fala que cria um mundo imaginário no acto de o escrever. Procurar os seus referentes no mundo real seria desconhecer a pragmática da comunicação literária e aplicar um código de leitura duplamente inadequado: primeiro, porque a este romance não se aplicaria o modo de leitura dos romances-com-chave, e das suas cifras e alegorias; segundo, porque a possibilidade de fazer existir na linguagem o mundo que representa parece residir integralmente na ficcionalidade enquanto exercício de imaginação.

A advertência não deixa, no entanto, de contemplar a possibilidade de uma leitura factual, e de dar voz ao receio dessa leitura. Marcando a distância entre os dois mundos (o da vida real e o da imaginação do autor), reconhece-se, em simultâneo, a sua proximidade, a quasi-contiguidade. A existir, tal leitura da vida real no mundo ficcional resultaria de uma deficiência nos circuitos de produção e recepção do discurso do romance: ou um equívoco no lado da leitura, ou um défice de imaginação do autor, mas nunca produto da sua intencionalidade. Ler o real na ficção resultaria de um fracasso do acto de escrita ou do acto de leitura. Para que o mundo ficcional possa constituir-se, todo o real deve ter sido transfigurado para além dos défices de escrita e dos equívocos de leitura.

Procurar referentes extratextuais para acontecimentos e figuras seria ou sair fora do pacto de leitura da ficção, ou um efeito secundário de um mau exercício da função autoral, como se a escrita só fosse possível a partir de uma contiguidade indicial com acontecimentos e figuras da vida real. Esta indicialidade, que uma chave pudesse vir descodificar, seria ainda uma marca do défice de imaginação, de uma entrada estreita à mercê de uma gazua. Ao mesmo tempo, o desejo de proximidade entre real e ficção constitui o paradoxo do romance, já que este quer representar uma experiência do mundo que é contemporânea e co-extensiva com o acto de escrevê-la.

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A Produção de uma Autora (I)

Posted in Crítica by Manuel Portela on Quarta-feira, 21-05-2008

Num certo sentido, o livro produz o autor tanto quanto o autor produz o livro. Na medida em que os livros circulam como unidades discursivas formadas pelo par título-autor, uma das suas funções é produzir a categoria autor e fazê-la circular no discurso social. O autor surge assim, dentro do sistema cultural e económico de produção de livros, como originador e proprietário da organização singular de signos que o livro codifica. No caso de autores que deixaram muitos textos em manuscrito, como Fernando Pessoa ou Emily Dickinson, a produção de identidade autoral e textual através dos seus editores [editors] é uma das manifestações dessa produção bibliográfica da autoria. ‘Fernando Pessoa’ não é apenas a designação do autor dos textos atribuídos a Fernando Pessoa ou o referente de um conjunto de narrativas biográficas. É também, em larga medida, uma construção dos seus sucessivos editores, que transcreveram e ordenaram os seus manuscritos e dactiloscritos de formas diversas, realizando intenções editoriais específicas.

Emily Dickinson é, neste aspecto, um caso elucidativo da tradução que pode ocorrer na passagem do manuscrito ao impresso. A maior parte dos seus poemas tem uma forma manuscrita, seja em fascículos organizados por si própria, seja em cartas, seja ainda em fragmentos dispersos. A edição fac-similada dos manuscritos, organizada por R.W. Franklin [The Manuscript Books of Emily Dickinson, Belknap Press of Harvard University Press, 1980] revelou até que ponto as edições tipográficas anteriores tinham normalizado aspectos significativos da espacialização e da pontuação dos poemas de acordo com as convenções tipográficas. Além disso, este novo olhar para os manuscritos permitiu reconhecer na materialidade caligráfica dos fascículos, das cartas e dos fragmentos uma poética do manuscrito. A visualidade do traço e dos espaços podia ser lida como parte do processo material que se manifestava verbalmente através das quebras sintácticas e das atracções fónicas. O ritmo suspenso e sincopado dos versos de Emily Dickinson parece não poder ser pensado sem esse ritmo da escrita da mão sobre o papel. A fisicalidade da sua linguagem depende da presença dos movimentos da mão na letra do poema, e do fascículo manuscrito como código bibliográfico.

Em Editing Emily Dickinson: The Production of an Author, Lena Christensen analisa o modo como a autora ‘Emily Dickinson’ tem sido produzida pelas decisões editoriais que, desde os finais do século XIX, codificaram linguística e bibliograficamente a sua obra. As formas textuais específicas que os manuscritos tomam na sua circulação impressa reflectem as convenções da materialidade tipográfica, e a racionalidade editorial que, em cada momento, determinou a sua transcrição, organização e anotação. Nesta produção editorial da autora, são analisados os momentos iniciais, através da edição de Martha Dickinson Bianchi e Alfred Leete Hampson (1924); a canonização, através da edição crítica de Thomas H. Johnson (1955); a revalorização dos manuscritos, através da edição fac-similada de R. W. Franklin (1980) e, por último, a nova edição digital (em curso desde 1995) nos Dickinson Electronic Archives, da responsabilidade de Martha Nell Smith, Lara Vetter, Ellen Louise Hart e Marta Werner.

Christensen encontra dois princípios determinantes na estruturação e apresentação dos materiais dos Arquivos Electrónicos Dickinson. Por um lado, a intenção editorial de recontextualizar os poemas no conjunto documental de onde foram extraídos. Esta recontextualização é feita no conjunto de fascículos encadernados por Emily Dickinson, na correspondência dirigida a vários interlocutores, nos fragmentos sem qualquer organização definida, e em algumas publicações periódicas. Desta contextualização, os Arquivos Electrónicos Dickinson destacam as interacções manifestas na correspondência com a sua cunhada, Susan Dickinson. A colaboração entre Emily e Susan Dickinson está documentada pelo menos na escrita e revisão do poema «Safe in their Alabaster Chambers». A intenção de socializar a actividade autoral justifica a inclusão dos textos e da correspondência de Susan Dickinson e de Edward Dickinson como parte do arquivo, construindo uma imagem que desfaz o mito da autora solitária, devolvendo-a ao quotidiano familiar e social.

Manuel Portela

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A Produção de uma Autora (II)

Posted in Crítica by Manuel Portela on Quarta-feira, 21-05-2008

Por outro lado, os Dickinson Electronic Archives estendem ao espaço electrónico a valorização da materialidade particular dos manuscritos como parte da forma da obra de Emily Dickinson, característica da reconceptualização operada nas últimas três décadas. Procuram representar de forma mais detalhada e exaustiva os manuscritos, ligando fac-símiles digitais a transcrições diplomáticas desses manuscritos, e estas transcrições, por sua vez, a texto electrónico em XML. A ênfase é colocada na natureza manuscrita da obra, isto é, nos originais como contendo os marcadores da intencionalidade autoral nas suas várias transfigurações. Neste processo de autenticação é especialmente importante a noção de que poemas e cartas nem sempre mantêm a separação genérica habitual. Por vezes, a sua forma manuscrita não permite separá-los. Essa codificação resultou, em parte, da imposição das categorias do livro tipográfico aos manuscritos. Por isso as editoras do Arquivo se referem a esta forma como carta-poema, sublinhando a continuidade entre uma e outro.

Na medida em que não se libertam da sacralização do original, os DEA acabam por reproduzir as hierarquias de valor das instituições bibliográficas, designadamente as que convergem na própria figura do autor tal como foi analisada por Foucault, isto é, enquanto função discursiva destinada a controlar a proliferação do sentido. Parece assim haver uma contradição entre a tentativa de libertar a obra de Emily Dickinson dos constrangimentos das edições bibliográficas, dispersando-a nas diferentes versões e vestígios documentais, e, ao mesmo tempo, manter as categorias que definem a ideologia conservadora do arquivo. Tratar-se-ia, no fundo, de adoptar os mesmos princípios das edições críticas impressas, e melhorar o rigor na representação académica dos textos da autora, afirmando a sua superioridade enquanto edição na competição entre os média que define o momento tecnológico actual. Por outras palavras, a re-produção electrónica de Dickinson nos Arquivos Electrónicos Dickinson não só não põe em causa a categoria autoral como, pelo contrário, a reforça. Lena Christensen chega às seguintes conclusões:

A figura da autora, da ‘Dickinson digital’, que emerge do ambiente electrónico do DEA não é a de uma poeta radicalmente digital. A experiência de ver um manuscrito simulado digitalmente no écrã não é substancialmente diferente de ver esse manuscrito em fac-símile impresso. A ‘diferença’ entre ler um poema de Emily Dickinson num livro impresso e no DEA baseia-se no uso do espaço electrónico como substituto da monografia, da edição tipográfica e da edição fac-similar: mesmo se o DEA produz Dickinson enquanto autora num contexto, não abdica da autora, Emily Dickinson, como produtora de Writings of Emily Dickinson. Em todos estes aspectos, o arquivo é útil, mas não constitui um desafio às edições em livro, e oferece decididamente o ‘original’ como fonte da autêntica Dickinson e, desse modo, leva-nos de volta ao ‘arquivo’ da etimologia de Derrida: guardião do património cultural a ser preservado mais do que a ser radicalmente produzido. (154-155)

Christensen contextualiza o projecto dos DEA na progressiva adopção das novas tecnologias pelas instituições de investigação e na forma como as questões de acesso e de propriedade se reproduzem nos novos média sob a forma de um capitalismo informacional – uma extensão, de resto, da lógica proprietária com que instituições como a Harvard University Library e outras restringem a reprodução dos manuscritos de Emily Dickinson. A análise de Lena Christensen é interessante precisamente por confrontar a estrutura e o conteúdo do arquivo com a racionalidade teórica com que as editoras dos DEA justificaram as suas decisões. Christensen mostra o arquivo como uma construção crítica e ideológica, historicamente situada, cuja remediação do livro reproduz algumas das hierarquias de valor que se propunha refazer. Este é, com efeito, um aspecto central no modo como as edições e os arquivos electrónicos em curso organizam a migração dos textos para o espaço digital. De que forma os manuscritos ou as páginas impressas são simulados, e qual o resultado dessa virtualização na eventual reconfiguração (ou não) das categorias texto, autor e leitor? Que diferença faz a edição electrónica? Trata-se apenas de uma forma de editar textos que incorpora no novo meio as práticas características da edição bibliográfica ou, pelo contrário, transforma esse paradigma editorial com consequências para uma teorização geral dos fenómenos da textualidade?

Manuel Portela

Lena Christensen (2008). Editing Emily Dickinson: The Production of an Author. London: Routledge, 200 pp. [ISBN: 9780415955867]

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A Invenção da Informação (I)

Posted in Crítica by Manuel Portela on Terça-feira, 22-04-2008

Em The Modern Invention of Information, Ronald E. Day faz uma história da produção social da informação e da sociedade da informação. A “era da informação”, tropo descritivo do momento actual, é analisada como elemento nas transformações ideológicas que legitimam as formas contemporâneas de produção do sujeito e de controlo social através das tecnologias da informação. A história desse tropo, que se tornou dominante em múltiplas formações discursivas (científicas, políticas, económicas, financeiras, educativas, sociais), pode ser traçada a partir dos discursos técnicos e profissionais que, ao longo do século XX, contribuíram para a construção do significado social da informação e da comunicação. Mais do que mera descrição, “era da informação” seria um tropo futurológico, cuja retórica, reproduzindo-se em diferentes domínios culturais, condiciona o desenvolvimento das sociedades segundo determinado modelo tecnológico. O poder metafórico e metonímico do livro como agente desse futuro global da sociedade do conhecimento, prolongado depois no computador, determinou o significado social das tecnologias da informação e da comunicação.

Ronald E. Day identifica três momentos discursivos na produção da “era da informação”: a teoria documentalista europeia que se desenvolveu no período anterior e posterior à Segunda Guerra Mundial; a teoria da informação e a cibernética, que se desenvolveram nos Estados Unidos da América no contexto da Guerra Fria, imediatamente a seguir à Segunda Guerra Mundial; e a chamada “era virtual”, que caracteriza a actualidade. Para Ronald E. Day, a emergência e disseminação da ideologia da informação reflecte estruturas específicas de poder e serve, em particular, o desenvolvimento da ciência na modernidade. A história da produção do conceito de informação constitui por isso um lugar privilegiado para observar a intersecção entre linguagem e economia política. Trata-se de um poderoso agente no desenvolvimento de formas de organização social globais, que dependem da organização e transmissão de informação e da produção de sujeitos adequados a esse regime informacional.

O primeiro momento, exemplificado através das obras de Paul Otlet e de Suzanne Briet, consistiu na expansão do significado social e da importância da documentação e da informação. A emergência da ciência da informação é já um sinal da reificação moderna da informação. Enquanto técnica essencial ao desenvolvimento das ciências que se constrói, ela própria, como meta-ciência, a ciência da informação legitima-se através dessa relação mimética e metonímica com a ciência que procura representar. Paul Otlet, em Traité de documentation (1934), conceptualiza o livro (biblion) como motor da expansão universal do conhecimento. Simultaneamente organismo e materialização dinâmica de energia, os livros constituiriam redes, internas e externas, na relação que estabelecem entre si e com o mundo. O conhecimento seria o resultado dessa interacção gerativa e evolucionária de repetição e amplificação materializada nas relações internas entre os livros, agregados em colecções globais ou universais. Paul Otlet imaginou, ainda antes de Vannevar Bush (cujo artigo sobre o Memex data de 1945), uma possibilidade de integração documental (comparável às redes electrónicas actuais) que colocaria no ecrã individual de cada leitor o acesso ao conhecimento universal. [cf. Françoise Levie (2007). L’homme qui voulait classer le monde. Bruxelles: Les Impressions Nouvelles. ISBN 2-87449-022-9]

Manuel Portela

Ronald E. Day (2008), The Modern Invention of Information: Discourse, History, and Power. Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois University Press [1ª ed. 2001], 140 pp. [ISBN 0-8093-2847-X]

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A Invenção da Informação (II)

Posted in Crítica by Manuel Portela on Terça-feira, 22-04-2008

Com a metáfora do livro-máquina torna-se clara a função produtiva do livro, quer como parte do sistema geral de produção, quer como extensão do corpo humano, isto é, como organismo cibernético. O livro como máquina do conhecimento e como ciborgue, que produz e sustém uma rede de relações, prefigura as metáforas construídas para os computadores e redes digitais. Funciona ao mesmo tempo como repositório, capaz de conter a multiplicidade do mundo, e como transformador, capaz de produzir o novo dentro de uma ecologia de afectos: «Estes dois aspectos apontam simultaneamente para um entendimento cultural mais antigo do livro (que via os livros e as bibliotecas como repositórios do conhecimento) e para um modelo mais moderno da tecnologia da informação, que vê as formas documentais como agentes produtivos numa criação em rede de produtos e fluxos de informação.» (19) A rede de livros como uma forma de representação total assenta e promove uma visão da sociedade em que a estandardização se torna pré-condição para o conhecimento.

Suzanne Briet, em Qu’est-ce que la documentation? (1951), define documentação enquanto testemunho ou índice: os documentos caracterizam-se pela sua relação indiciária com outros documentos e com outras representações documentais (como registos bibliográficos). Estas redes de relações indiciárias, controladas por dispositivos institucionais (bibliotecas, arquivos, colecções, museus, etc.), produzem os documentos enquanto termos de um sistema semiótico. Na medida em que as colecções das bibliotecas participam na produção científica do real, a ciência torna-se o significante dominante (a narrativa-matriz) para a lógica de produção da informação e para o seu valor. Rapidez, eficiência, precisão e estandardização, por seu turno, aproximam a descrição dos sistemas de tratamento documental dos modos de produção industrial: «A documentação liga numa mesma rede agentes documentais e agentes humanos num sistema dinâmico de produção cultural industrial.» (31)

Manuel Portela

Ronald E. Day (2008), The Modern Invention of Information: Discourse, History, and Power. Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois University Press [1ª ed. 2001], 140 pp. [ISBN 0-8093-2847-X]

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A Invenção da Informação (III)

Posted in Crítica by Manuel Portela on Terça-feira, 22-04-2008

A redefinição da linguagem através da noção de informação quantificável, realizada pela teoria da informação e pela cibernética, representaria, segundo Ronald E. Day, a apropriação da cultura e da linguagem pela ideologia da informação. A teoria cibernética da informação expande-se de uma teoria técnica para uma teoria geral da psicologia individual e da comunicação humana e animal. O modelo matemático de Claude E. Shanon e Warren Weaver (enunciado em The Mathematical Theory of Communication, 1949) formaliza um sistema constituído por fonte da informação/ mensagem/ transmissor + sinal/ fonte de ruído/ sinal recebido + receptor/ mensagem/ destino. Transposto da comunicação cibernética para a comunicação humana, este sistema pressupõe (1) uma intenção original de um emissor codificada numa mensagem, (2) a transmissão de uma mensagem codificada em sinais através de um canal neutro, e (3) a representação da intenção do emissor pelo receptor manifesta através dos efeitos comportamentais resultantes da descodificação. A emissão é resultado da escolha que realiza as probabilidades do que pode ser enviado, enquanto a recepção é função da redundância estatística da mensagem, que permite recuperá-la distinguindo-a do ruído.

Este modelo comunicativo, quando aplicado à linguagem humana, pressupõe a identidade da intencionalidade, na emissão e na recepção, e um modelo do ser humano que exclui a singularidade e o inconsciente, isto é, todo o excesso de sentido da linguagem: «o desejo é canalizado através de um controlo estatístico imaginado sobre as palavras e sobre as coisas» (45). Norbert Wiener (em Cybernetics or Control and Communication in the Animal and the Machine, 1948 , e em The Human Use of Human Beings, 1950) naturaliza este modelo técnico numa utopia social, procurando uma definição universal da lei e descrevendo a linguagem em termos de engenharia de sistemas: «Ao conceber a linguagem em termos de informação e comunicação e ao conceber informação e comunicação em termos de “sistemas” de valor de troca constantes que cruzam diferentes domínios discursivos ou “moedas”, Wiener tenta manter afastado o caos dos afectos em todos os domínios da sociedade e da natureza. A redução da linguagem a uma economia comunicacional e informacional evita o encontro com a linguagem ou com os afectos enquanto alteridade radical, fractura, e caos. Esta redução confina a linguagem e o ser a uma escala e economia de gestão e leva Wiener a conjugar os termos “comunicação” e “controlo”.» (48-49) Daqui emerge uma visão de um Estado comunicacional, que requer cada vez maior quantidade de estandardização e controlo: o espaço social prescrito pela cibernética representa os seres, a linguagem e a comunicação como um conjunto de relações operacionais em nome de uma “comunidade global”. A linguagem é redefinida como comunicação do que pode ser representado como informação, e os produtos e a produção de informação como o principal valor da linguagem.

Manuel Portela

Ronald E. Day (2008), The Modern Invention of Information: Discourse, History, and Power. Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois University Press [1ª ed. 2001], 140 pp. [ISBN 0-8093-2847-X]

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A Invenção da Informação (IV)

Posted in Crítica by Manuel Portela on Terça-feira, 22-04-2008

No terceiro momento de produção da informação como ideologia, o virtual é definido como telos da presença mediada digitalmente, enquanto espaço histórico e social colectivo. Esta idealização é exemplificada através do conceito de virtual nas obras de Pierre Lévy (Que’est-ce que le virtuel?, 1995, e L’intelligence collective, 1995). Ronald E. Day encontra no tropo da rede e da conectividade técnica, hiperbolizados na obra de Lévy, um tropo para o todo da organização social e para um futuro em que a existência surge mediada por tecnologias de representação. A imagem do cérebro colectivo ou virtual depende da constituição da linguagem e dos eventos enquanto trocas reguladas de identidades subjectivas estandardizadas e de objectos identificáveis: «a ‘aura’ do objecto informacional esconde a face oculta da sua produção e da sua força social produtiva» (79). Recodificadas como determinantes do futuro, as tecnologias da informação e da comunicação são produzidas enquanto representações do espaço social que instituem uma determinada ordem social. A ubiquidade desta representação como representação do futuro da humanidade tornou invisível a sua função ideológica de naturalização da estandardização do espaço social. Um espaço construído pela construção estética do conhecimento através de técnicas de representação.

No contexto de estabelecimento da cultura de massas na década de 1930, o autor assinala a presença de uma visão alternativa da linguagem, do pensamento e da sociedade, que não assenta na crença na representação unitária ou na transmissão sistémica. Recorde-se que as tecnologias de informação e de comunicação desempenham já na década de 30 uma importante função no controlo, vigilância e perseguição totalitária, assim como na mobilização de vastos espaços sociais para a guerra. Da percepção de que a reprodução técnica da cultura condiciona os processos de organização e engenharia social surge a pergunta sobre o significado da reprodutibilidade técnica. No período em que a teoria moderna da documentação e a ciência da informação estão em construção, Martin Heidegger e Walter Benjamin criticam a reificação do conhecimento e a fetichização da informação por meio da organização técnica. As reflexões de Heidegger e Benjamim revelam a consciência da emergência da forma específica de conhecimento público designada como “informação” e dos processos modernos de “comunicação” num momento anterior à naturalização dessas formas como modos de conhecimento e de linguagem durante a segunda metade do século XX. Encontramos nos seus textos uma visão filosófica e historiográfica não-positivista da informação na modernidade.

Em “Die Zeit des Weltbildes” [“A Era da Imagem do Mundo”], de 1938, e nas obras posteriores de crítica da metafísica da tecnologia, Heidegger critica a noção de conhecimento como representação, na medida em que essa identificação oblitera a interpretação e a natureza situada do ser no espaço e no tempo. A visão técnica informacional assenta na crença de que o ser humano pode representar todos os seres e todas as suas relações, um prolongamento da tradição metafísica da representação. Heidegger vê a ciência moderna e a tecnologia maquínica como formas específicas da metafísica da modernidade: «Para Heidegger, a essência da investigação moderna consiste numa projecção (reissen: traçar, esboçar, desenhar) dos seres fora de uma totalidade fenomenológica e na presentificação desses seres como entidades empíricas dentro de uma estrutura ou sistema de conhecimento (isto é, enquanto uma espécie particular de ave ou planta, comportamentos particulares, tipos particulares de pessoas, etc.)» (96). Isto significa que, para a ciência moderna, a re-presentação de seres e de eventos só pode ocorrer de acordo com a lógica cultural da ciência, e para efeitos de gestão e de uso. Este modo de experiência humana do mundo presentifica-se através da mediação da reprodução técnica: a visão do mundo no ecrã privado (imaginada por Otlet como forma do conhecimento universal) é uma imagem da distanciação estética em que assenta o entendimento do mundo como representação:

Neste modo de produção, o homem luta pela posição em que pode ser aquele ser particular que determina as medidas e define as regras para tudo o que é. Na medida em que esta posição garante, organiza, e se articula como uma visão do mundo, a relação moderna com aquilo que é, é uma relação que se torna, no seu desenrolar decisivo, uma confrontação entre visões do mundo; e, na verdade, não de visões do mundo aleatórias, mas apenas daquelas que, tendo tomado já a posição fundamental do homem, sejam as mais extremas, e o tenham feito com a determinação mais absoluta. Para esta luta entre visões do mundo, e de acordo com o seu significado, o homem faz-se valer do seu poder ilimitado de cálculo, planeamento e modelação de todas as coisas. A ciência como investigação é uma necessidade absoluta para este modo de estabelecimento do sujeito no mundo; é um dos caminhos através dos quais a voracidade da idade moderna se dispõe a realizar a sua essência, com uma velocidade desconhecida de todos os participantes. (Heidegger, 1938; citado por Day: 98-99).

Manuel Portela

Ronald E. Day (2008), The Modern Invention of Information: Discourse, History, and Power. Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois University Press [1ª ed. 2001], 140 pp. [ISBN 0-8093-2847-X]

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A Invenção da Informação (V)

Posted in Crítica by Manuel Portela on Terça-feira, 22-04-2008

A ideia de que a verdade documental está na correspondência entre o mundo e a imagem do mundo pode ser analisada também através da historiografia crítica de Walter Benjamin, em ensaios como “O Autor como Produtor”, de 1934, “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”, de 1935, “Alguns Motivos em Baudelaire”, de 1939, ou “Teses sobre Filosofia da História”, de 1940. Ao analisar o advento da modernidade no século XIX, Benjamin sublinha a bifurcação da experiência produzida pela reprodução técnica, que incorporou os indivíduos nas grandes multidões anónimas das cidades industriais, simultaneamente como consumidores de bens produzidos em massa, vendidos em grandes mercados longe das fontes de produção, e como trabalhadores submetidos ao trabalho repetitivo das máquinas industriais. A representação da experiência nos meios de comunicação de massas (jornal, rádio, cinema) reflecte a crescente disjunção e distância entre experiência pessoal e a representação da experiência como informação pública:

«Os jornais constituem uma das muitas provas dessa incapacidade [de o ser humano moderno «assimilar os dados do mundo à sua volta através da experiência»]. Se a intenção da imprensa fosse a de fazer o leitor assimilar a informação que lhe fornece não atingiria o objectivo. Mas a sua intenção é precisamente a oposta, e esta, sim, é conseguida: isolar aquilo que acontece do domínio em que poderia afectar a experiência do leitor.» (Walter Benjamin, 1935; citado em Day: 104)

A historiografia crítica, reconceptualizada como montagem atenta aos restos da história, permite a Walter Benjamin expor contradições e antagonismos ocultados pela narrativa do progresso histórico. Este procedimento crítico revela os processos e enquadramentos que inscrevem certos sentidos nos objectos, isto é, o jogo de forças políticas de que emerge o sentido de determinados objectos históricos. Pode assim recuperar-se a materialidade do processo histórico através do qual determinada percepção foi construída e determinado sentido se generalizou ao espaço social. É isso que Ronald E. Day tenta fazer, mostrando a estreita relação entre o discurso profissional que produziu a moderna ciência da informação e o discurso de outras instituições dominantes que produziram uma imagem das sociedades e do seu futuro como ‘sociedades da informação’. ‘Informação’, longe de ser um estrito conceito cibernético, revela-se como uma das ideologias mais pregnantes, mais naturalizadas e mais poderosas da era da reprodução digital:

«”Informação” é um termo ideológico central porque determina e policia o seu próprio significado numa vasta extensão de espaços sociais e culturais. Através da informação, vocabulários para o futuro são incluídos ou excluídos, dando forma à história num sentido condizente com informação e com pouco mais. O mundo da informação que nos é dado pelos textos fundacionais e pelas tradições da informação no século XX é um mundo profundamente perturbador e problemático. Perturbador, por causa da sua aparente naturalidade e senso comum, e por causa do à-vontade das suas predições para uma era da informação presente e futura. Problemático, porque as suas pretensões são demasiado simplistas e redutoras da complexidade do sentido, do conhecimento e da agência no mundo e porque um exame cuidadoso das suas pretensões e modelos fundacionais revela enormes e profundas exclusões e contradições.» (117)

Manuel Portela

Ronald E. Day (2008), The Modern Invention of Information: Discourse, History, and Power. Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois University Press [1ª ed. 2001], 140 pp. [ISBN 0-8093-2847-X]

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Doces Sonhos

Posted in Crítica by Manuel Portela on Domingo, 06-04-2008

Não é preciso ver muitas exposições ou ler muitos catálogos de arte contemporânea para fazer três constatações. A primeira: uma parte significativa daquilo que constitui a arte contemporânea, nos grandes museus públicos e nas galerias privadas, serve essencialmente para capitalizar o circuito de produção de valor que define o sistema da arte – uma constatação que se aplica, obviamente, tanto à produção meramente derivativa, como às obras que abrem de facto perspectivas e modos de representação novos. A segunda: na produção dos anos 90 e do momento actual (seja na pintura, na instalação, na escultura, no vídeo, na fotografia, nos novos média digitais ou na performance), verifica-se com frequência a assimilação de imagens e formas provenientes das indústrias culturais e da arte de massas, em particular da cultura dos média. A terceira: uma parte significativa daquilo que constitui a análise crítica destas obras de arte faz uso de categorias herdadas das ortodoxias teóricas do modernismo e do pós-modernismo, que se revelam quase sempre inadequadas para os seus objectos. Estas três constatações são o ponto de partida para a análise brilhante de Johanna Drucker, que ensaia em Sweet Dreams uma tentativa de repensar a arte contemporânea no modo de responder, em simultâneo, à interpelação estética das formas e às condições sociais e económicas que determinam a sua produção.

A maior parte do livro consiste na articulação dessa complexa relação através de um conjunto seleccionado de obras dos últimos quinze anos. Através dessa amostragem é enunciado um conjunto de problemas relevantes para o entendimento das práticas artísticas actuais: o sistema de produção da arte como moeda; a relação entre trabalho e arte; a relação da cultura da arte com a cultura da moda; as novas formas de monumentalidade e do sublime; a figuração do monstruoso e da carnalidade; a redefinição da pintura como meio impuro; a hibridez de formas e materiais; a objectualidade e a coisificação; a assimilação da cultura dos média; a natureza da documentabilidade fotográfica; a tecnologização prostética do corpo; a mercantilização e a mediatização da identidade; a imagem de marca e a obra de arte como produto de design; a natureza mediatizada da vida contemporânea, etc. Johanna Drucker analisa em detalhe obras dos seguintes artistas: Vanessa Beecroft, Jerelyn Hanrahan, Rachel Whiteread, Lorraine O’Grady, Jason Rhoades, Paul McCarthy, Nancy Rubins, Gary Simmons, Francis Alÿs, Andreas Gursky, Philip Pearlstein, John Isaacs, Charles Ray, Nancy Davidson, Sarah Whipple, Elizabeth McGrath, Dana Hoey, Jeff Wall, Tom Patton, Warren Neidich, Daniella Dooling, Roxy Paine, Alan Rath, Stelarc, Orlan, Molly Blieden, Andrea Zittel, Nam June Paik, Mariko Mori, Jim Campbell, Gregory Crewdson, Robert Colescott, Catherine Howe, Llyn Foulkes, Lisa Yuskavage, Mira Schor, Cecily Brown, Julio Galan, Lari Pittman, Susan Bee, Alexis Rockman, Daniel Wiener, Jessica Stockholder, Bill Davenport, Anna Gaskell e Yasumasa Morimura.

Johanna Drucker mostra também como o cânone crítico do modernismo, que se desenvolveu no sentido de uma valorização crescente da abstracção auto-referencial dos meios e dos materiais (corolário da ilusão da autonomia da arte), escamoteou outras práticas e formas artísticas produzidas nesse período. Isso explicaria, por exemplo, que toda a produção figurativa e grande parte da produção com origem na cultura de massas tenha sido excluída daquela narrativa particular do modernismo. A história da arte comprova, no entanto, uma presença contínua da cultura da imagem de produção industrial, pelo menos desde a industrialização da imprensa e da introdução de tecnologias de reprodução de imagens em larga escala a partir do século XIX. Sweet Dreams contém, implícita, uma reivindicação para uma história alternativa da arte modernista, diferente da que se institucionalizou nas universidades:

O meu projecto em relação à arte contemporânea consistiu em deslocar o fulcro em que assenta a avaliação crítica das práticas actuais. Mostro aqui que o legado da crítica oposicional, de uma posição negativa arrogando-se superioridade moral e distância relativamente às ideologias em que a arte participa, já não se pode sustentar. Ainda que míticos, estes sistemas de crenças não descrevem adequadamente a nossa condição actual ou a história passada. O Modernismo, e o modernismo visual em particular – do qual a arte constitui apenas uma parte, não o todo, e nem sequer a força dominante -, carece ainda de um entendimento e de uma descrição completa, e há-de ser repensado nas próximas décadas. O olhar que não se deixa cegar, capaz de examinar a relação cúmplice entre a arte e a sua condição ideológica (de produção, recepção, avaliação, efeito, e mesmo concepção e composição formal), há-de encontrar um campo rico e fértil. (251-252)

Numa escrita vibrante e provocatória, livre dos clichés do discurso crítico, Sweet Dreams abre uma outra forma de ver não apenas a arte contemporânea, mas a história da arte do século XX. Lendo Sweet Dreams percebe-se como a escrita constitui um instrumento essencial da crítica: a possibilidade de produzir conhecimento sobre um objecto vincula-se à linguagem com que conseguimos construí-lo enquanto objecto. É a versatilidade da linguagem crítica que dá ao pensamento a rapidez suficiente para poder pensar objectos novos e problemas novos. Uma velocidade que se encontra em cada uma das palavras e das frases deste livro, exigente no confronto com os objectos artísticos analisados. Ao sublinhar a condição da arte contemporânea como parte das indústrias culturais, sublinha-se a sua cumplicidade nos circuitos de produção de valor, que dependem de uma reprodução ideológica da arte como esfera separada e autónoma. Aquela cumplicidade tornou-se ainda mais clara, nos últimos anos, através da emergência de um modo particular de assimilação das imagens da cultura de massas (diferente da apropriação distanciada, valorizada quer pelos preceitos formalistas modernistas, quer pelos preceitos feministas, pós-coloniais e identitários pós-modernistas), a que é estranha qualquer dialéctica negativa de oposição ou de transgressão ou de resistência. Recontextualizada deste modo, a arte deixa de poder ser vista como operando fora das ideologias que a produzem. A sua função estética – gerar uma resposta perceptiva ao efeito de uma forma, que nos permita imaginar o que somos e o mundo em que vivemos – reinscreve-se na condição de cumplicidade que a produz e faz circular enquanto obra de arte, isto é, como parte dos circuitos gerais de produção de valor.

Johanna Drucker (2005), Sweet Dreams: Contemporary Art and Complicity, Chicago: The University of Chicago Press, 292 pp. [ISBN-13: 978-0-226-16505-9].

Manuel Portela

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Fluidez Textual

Posted in Crítica by Manuel Portela on Terça-feira, 04-03-2008

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Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos

Em The Fluid Text: A Theory of Revision and Editing for Book and Screen, John Bryant apresenta uma teoria integrada dos processos de revisão textual, identificando modos e códigos de revisão. O seu objectivo é construir uma síntese entre as teorias elaboradas no âmbito da crítica genética e da teoria do texto social, sem descurar a crítica textual intencionalista. Trata-se, no fundo, de propor instrumentos capazes de conceptualizar as várias formas de instabilidade textual de modo a poderem ser úteis na edição de textos significativamente multiformes. Para isso propõe o conceito de fluidez textual, isto é, a ideia segundo a qual todos os textos existem em mais do que uma versão e que essa alteridade não resulta apenas do processo transmissional, mas está já inscrita no próprio modo de produção literário. A natureza processual do acto criativo implica a multiplicação das manifestações materiais dos textos, seja em pré-publicação ou em pós-publicação. A fluidez textual é testemunho do processo criativo enquanto intencionalidade que se altera e se revê a si mesma, manifestação gráfica dos discursos da cultura e da linguagem que se produzem no sujeito. Bryant lê esse diferimento da obra em termos desconstrucionistas, isto é, como diferimento do sentido e do fechamento da própria obra enquanto tal.

Em geral, a notação convencional usada para dar conta desta dimensão textual relega para um aparato crítico subalterno (em nota ou em apêndice) as marcas do processo de composição e de revisão. Segundo Bryant, a edição ecléctica, ao construir um texto contínuo a partir de diversas fontes oculta a sua própria historicidade e a sua natureza hipotética ou especulativa. Seguindo Jerome McGann, que define o texto como a forma residual de um evento social que depende da colaboração criativa do leitor, Bryant adopta a hermenêutica materialista que localiza o sentido na conjunção entre os códigos linguísticos e os códigos bibliográficos. Por esse motivo, opõe à narratividade da edição crítica tradicional (que apaga a especificidade dos códigos bibliográficos) a necessidade de representar as negociações que ocorrem no processo de revisão textual e que revelam a sua condição social. Propõe um conjunto de códigos de revisão que permitem destrinçar as intencionalidades autorais e editoriais (num sentido lato) que dão forma às versões textuais. Ao mesmo tempo, defende a invenção de formas de notação bibliográfica e electrónica que permitam recombinar texto e aparato crítico, superando a hierarquia e a interrupção inerentes à notação tradicional.

A edição do texto fluído, isto é, a edição que permite tornar legível a fluidez que caracteriza a textualidade, tem levado a repensar as práticas de crítica e edição textual. Com efeito, muitos textos clássicos da história cultural existem enquanto textos múltiplos e em multiplicação continuada. Esta instabilidade material representa a inscrição da historicidade particular do seu modo de produção e de circulação na própria obra, através das versões que a modificam e transformam. Existem nessa condição de textos múltiplos, por exemplo, obras como King Lear, The Prelude, Frankenstein, Leaves of Grass, os poemas de Emily Dickinson, Ulysses, ou Livro do Desassossego. Mas a lista é virtualmente expansível a todo o universo textual, intrinsecamente definido pela proliferação e pela variação. Uma das tentativas dos últimos anos de representar a fluidez textual encontra-se na edição electrónica, ou na combinação da edição electrónica com a edição impressa. O que Bryant sugere é precisamente uma sinergia entre o potencial específico do códice impresso – obrigado, apesar de tudo, a oferecer uma leitura de um texto contínuo – e o potencial específico do computador e do ecrã electrónico – que permitem representar materialmente uma infinidade de variantes textuais na virtualidade do seu modo de simulação gráfica. [continua aqui >>>]

Manuel Portela

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Máquinas de Escrever

Posted in Crítica by Manuel Portela on Segunda-feira, 18-02-2008

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A mediação digital alterou a ecologia dos dispositivos de mediação técnica, reconfigurando as relações entre diferentes meios. As tecnologias de representação e de simulação cooperam e competem num processo acelerado de remediação, isto é, de emulação de uns meios por outros e de migração de uns meios para outros. Esta mutação generalizada na ecologia da mediação tecnológica é o tema da obra Writing Machines de N. Katherine Hayles, originalmente publicada em 2002. Ao contrário da teorização de Baudrillard, que imagina uma progressiva substituição teleológica das representações (isto é, mediações com referente no mundo real) por simulações (isto é, mediações sem referente, como acontece em Matrix, por exemplo), Hayles descreve o processo em curso como de remediação contínua e dinâmica de uns meios por outros: representações por simulações por representações por simulações, etc. Neste mundo digital, Writing Machines procura encontrar um vocabulário crítico que permita dar conta quer dos processos de virtualização e simulação cada vez mais ubíquos, quer da materialidade das representações, na sua natureza textual, científica, técnica, industrial. Trata-se de encarar a mediação na sua dupla face de simulação e de representação em simultâneo.

Para isso usa como modelo três artefactos literários inter-média: a obra electrónica Lexia to Perplexia, de Talan Memmott; o livro de artista A Humument, de Tom Phillips; e o romance tipográfico House of Leaves, de Mark Z. Danielewski. Nestas obras, exemplos da criação como investigação da natureza multimediada do sentido, a co-dependência entre a obra e o medium acentua a natureza material da textualidade e da significação. De resto, a forma gráfica e narrativa de Writing Machines chama ela própria a atenção para as relações entre a página de papel e a página electrónica, e entre o discurso teórico e a historicidade particular que se oculta nesse discurso. Hayles estrutura a sua obra como um ensaio, mas usa ao mesmo tempo os procedimentos da autobiografia, servindo-se para isso da mediação de uma narradora, a quem chama Kaye. A esta mediação narrativa acrescenta-se a mediação gráfica de Anne Burdick, cujo grafismo simula na página de papel características da tipografia digital do écrã electrónico. Ou seja, a obra de Hayles adopta na sua forma expositiva e argumentativa procedimentos de representação e de simulação equivalentes àqueles que analisa noutros meios e noutras obras. A persona de Kaye é usada para contar a estória da sua aprendizagem individual do processamento simbólico, desde o primeiro contacto com os livros na infância até às simulações de animação digital.

Um dos conceitos que estrutura esta teorização da materialidade textual e hipertextual é a noção de tecnologia de inscrição. Aos dispositivos que geram modificações materiais que podem ser lidas como sinais, Hayles chama tecnologias de inscrição. A literatura seria, num certo sentido, uma dessas tecnologias. Os textos literários que interrogam os dispositivos materiais que os produzem geram circuitos de retro-alimentação entre o mundo imaginário gerado pelos significantes e o dispositivo material em que esse mundo imaginário se corporiza. Esta propriedade auto-reflexiva é constitutiva da semiose literária em geral, mas surge de forma acentuada em obras que ligam verbalidade e materialidade. A estas obras Hayles chama tecnotextos, explicitando nestes termos o sentido do seu título: «‘Máquinas de Escrever’ designa as tecnologias de inscrição que produzem textos literários, incluindo prelos de imprimir, computadores e outros dispositivos. ‘Máquinas de Escrever’ é também aquilo que os tecnotextos fazem quando expõem os mecanismos que conferem realidade física às suas construções verbais.» (26)

A análise das três obras referidas serve como ponto de partida para investigar a relação entre os componentes verbais e não-verbais da literatura e da arte electrónica, mostrando como a materialidade das inscrições determina o mundo representado através da interacção comunicativa que as inscrições estabelecem com o/a leitor/a: «Não é por acaso que textos electrónicos como Lexia to Perplexia, livros de artista como A Humument, e romances tipográficos como House of Leaves imaginam sujeitos que se formam com e através das tecnologias de inscrição que estas obras usam. As máquinas de escrever que criam fisicamente sujeitos ficcionais através de inscrições também nos ligam enquanto leitores aos seus interfaces, impressos ou electrónicos, que nos transformam ao reconfigurar as interacções que estabelecemos com as suas materialidades. Inscrevendo ficções consequentes, através das inscrições que escrevem e que as escrevem, as máquinas de escrever redefinem o que significa escrever, ler, e ser humano.» (131)

Manuel Portela

N. Katherine Hayles (2002), Writing Machines, Cambridge, Mass: MIT Press. 144 pp. [ISBN 0-262-58215-5]

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