Os Livros Ardem Mal

O Atelier de Tarsila

Posted in Artes, Notícias by Ana Bela Almeida on Terça-feira, 23-06-2009

tarsila

O “inferno verde” chegou a Santiago de Compostela. Até dia 31 de Julho, pode visitar-se na Fundação Caixa Galicia, gratuitamente, a exposição de Tarsila do Amaral, 82 obras entre quadros e estudos. Dos vários objectos expostos, quase todos relacionados com o motivo da “viagem” na vida e obra de Tarsila do Amaral, destaca-se um oratório mineiro do séc. XVIII. O rebuscamento das suas cores e formas acentua a inclinação neo-barroca do movimento Pau-Brasil, com o rosa pastel e o azul celeste do oratório reflectidos no espelho modernista “Manacá” (1927).

Manacá (1927)

Manacá (1927)

A presente mostra de Tarsila do Amaral, co-dirigida pela Fundação Caixa Galicia e pela Fundação Juan March, é apenas a terceira inteiramente dedicada à obra da autora na Europa. O poema “Atelier”, de Oswald de Andrade, que nos recebe na primeira sala da exposição, reforça a singularidade da ocasião. Se “Atelier” inaugura e, de certa forma, “legenda” a exposição, também acaba por sublinhar a própria ausência de Oswald. Não há dúvida que “o Tarsiwald”, na expressão de Mário de Andrade, é, desta vez, “a Tarsiwald”. Afinal, esta não é uma exposição dedicada ao Modernismo brasileiro, com Oswald de Andrade a servir de eterno anfitrião: esta é a exposição de Tarsila do Amaral, das suas pinturas e desenhos, das suas crónicas, dos seus ensaios, das suas fotografias e outras relíquias, com Oswald de Andrade como convidado no espaço/atelier tarsiliano. (more…)

Comentários Desativados em O Atelier de Tarsila

Acho difícil

Posted in Média, Notícias by Ana Bela Almeida on Sexta-feira, 19-06-2009

Hoje, no Público:

“Na sala encontravam-se José Blanc de Portugal e o general Ramalho Eanes. O ministro agradeceu àqueles que ajudaram o país a fazer justiça a Jorge de Sena e a que se devolvesse Sena aos portugueses através da Biblioteca Nacional.”

Comentários Desativados em Acho difícil

Uma Pequeníssima Introdução à Sexualidade

Posted in Crítica, Livros by Ana Bela Almeida on Sexta-feira, 05-06-2009
Véronique Mottier

Véronique Mottier

 

 

 

 

 

 

 

 

A colecção “A Very Short Introduction”, publicada pela Oxford University Press, já vai em mais de 200 títulos, e conta com página web, blogue e programa de eventos relacionados. Estes livrinhos, verdadeiramente portáteis, procuram estabelecer de forma sucinta a história de um conceito, escrita por nomes maiores de várias áreas do saber, e onde cabe quase tudo o que se possa imaginar, da Teoria da Literatura (por Jonathan Culler), passando pela Guerra Civil Espanhola (Helen Graham), A Cabala (Joseph Dan), O Marquês de Sade (John Phillips) ou mesmo O Sentido da Vida (Terry Eagleton).

Desengane-se quem procura a introdução impessoal, neutra, ao estilo das sebentas e dos manuais escolares, a acumulação de factos providenciada por alguma máquina de escrever História. O volume Sexuality:A very short introduction (2008), de Verónique Mottier não é apenas um manual de introdução à história da sexualidade, mas é marcadamente um ensaio de Verónique Mottier sobre este tema, cada página indelevelmente assinada pelas preocupações intelectuais e estilo da autora.

Seguindo de perto Foucault, Mottier começa por uma curta abordagem à História da Sexualidade (Ocidental) desde a pederastia grega, passando pela castração/castidade cristã, e rapidamente avançando para a viragem do século XIX para o XX, com a centralidade dos conceitos de feminismo e de direitos dos homossexuais no nosso tempo. A particular atenção dada aos elementos marginalizados na estrutura de poder (mulheres heterossexuais; homossexuais homens e mulheres) prende-se àquilo que Mottier classifica como a grande” ironia”da História: o facto de os elementos mais marginalizados da heterossexualidade terem sido os principais agentes nas transformações das sexualidades e das formas de relacionamento (heterossexual ou não) da contemporaneidade.

Aliás, Mottier vai mais longe, ao questionar se, neste mundo pós-moderno em que vivemos, a natureza fluida da identidade de género e da identidade sexual não fará de todos nós “POMOssexuais” (PÓs-MOderno):

Does that mean that, in future, we will all think of ourselves as pomosexuals? Are we currently witnessing the final death throes of heterosexuality and homosexuality?

Anthony Giddens, citado na contra-capa deste livro, diz a propósito do mesmo que deveria ser de “leitura obrigatória em todos os cursos sobre sexualidade que há no mundo”. Eu atrevo-me a dizer que deveria ser de literatura obrigatória para todos aqueles a quem diz respeito, ou seja, para todos nós. Recomendo-o muito especialmente a@s noss@s deputad@s, que tão à deriva se encontram neste “mundo líquido” da modernidade.

Véronique Mottier, Sexuality: A Very Short Introduction, Oxford, Oxford University Press, 2008. [ISBN 978-0-19-929802-0]

Comentários Desativados em Uma Pequeníssima Introdução à Sexualidade

Acabou o Mundo Perfeito

Posted in Comentários by Ana Bela Almeida on Quinta-feira, 30-04-2009

A Isabela decidiu pôr fim ao Mundo Perfeito, após apropriação dos textos dela sobre o período colonial por um blogue racista e de extrema-direita, com a conivência dos comentadores de blogues que, ao contrário do que ocorreria num mundo realmente perfeito, acham que na blogosfera vale tudo.

http://omundoperfeito.blogspot.com/

Comentários Desativados em Acabou o Mundo Perfeito

Uma livraria

Posted in Livros by Ana Bela Almeida on Sábado, 18-04-2009

celestina3

Ninguém lhe chama “um espaço”. Ninguém lhe chama “um conceito”. Não é multimédia. Não vende café. Não funciona como sala de concertos. Não é um projecto inovador. Não vende pins nem postais. Não é o último grito da vanguarda. Não é uma galeria. Não vende cd’s. É só uma livraria.

Comentários Desativados em Uma livraria

Amor líquido

Posted in Efemérides, Livros by Ana Bela Almeida on Domingo, 15-02-2009

s_glass_of_water

When i fall behind in the quest for pleasure
I shall treasure this short time with you

“Timewatching”, do álbum Liberation dos Divine Comedy.

Numa recente viagem de avião, folheando a revista oferecida pela companhia aérea, entre vários artigos dedicados ao “mês de São Valentim”, atentei num sobre os novos serviços de dating através da internet. Segundo o director de uma destas empresas de relacionamentos, parece que é nos países mais desenvolvidos economicamente que os clientes apresentam mais queixas sobre a relação entre a qualidade do “produto” e o tempo dispendido a procurá-lo. Pagam para encontrar o amor depressa e, se tal não sucede, reclamam. A singularidade desta reportagem provém do facto de não constituir, como as outras da revista – quase todas publicidade a destinos de viagem mascarados de “românticos” e todos situados na rota da referida companhia aérea – um apelo ao consumo de um produto em nome do amor, mas de expressar um entendimento do próprio amor como objecto de consumo. Ocorreu-me logo a canção de António Variações, um grito que vem do que em nós ainda é humano: “Não me consumas!”.

Para uma reflexão sobre a relação do consumidor, que todos somos, com o amor, sugiro a leitura de Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos de Zygmunt Bauman. O amor como produto de consumo rápido, em série, descartável, que faz de todos nós isso mesmo: produtos consumidos em série, descartáveis. A salvação, segundo Bauman, passará pelo regresso ao compromisso e à permanência nos relacionamentos, apresentada como a única possibilidade de resistência do indivíduo contra o império da fragilidade neste mundo liquido, de empregos e amores flexíveis e em part-time:

(…) libertar o sexo da soberania da racionalidade do consumidor (…) que essa racionalidade seja destituída da sua actual soberania sobre os motivos e estratégias da política da vida humana.” (pag.70)

(more…)

Comentários Desativados em Amor líquido

O melhor livro que eu não li em 2008

Posted in Balanço by Ana Bela Almeida on Sexta-feira, 16-01-2009

Imaginem que havia um escritor que publicava um livro para… não ser lido. Eu sei que parece tratar-se de uma impossibilidade – ou de um conto do Rui Manuel Amaral – mas aconteceu mesmo. Há dias procurava o recentíssimo A Faca não corta o Fogo de Herberto Helder e a livreira sorriu-me com incredulidade, eu diria mesmo que com alguma pena: ” Não sabe que essa obra esgotou em dois dias? Os livros já estavam quase todos encomendados antes de chegarem à livraria. E o autor não quer reedição. Está esgotado, para sempre. Coisas dos escritores… “. Fiquei aborrecida. Bolas, chega o melhor livro de 2008, e parte, e eu nem lhe ponho a vista em cima. Os 3 ou 4 eleitos que o conseguiram devem estar agora mesmo a embriagar-se na sua leitura, ou a negociá-lo no mercado negro. Até deve existir uma espécie de maçonaria de pessoas que conseguiram o melhor livro de 2008. O livro único, irrepetível, imaterial. O melhor livro é sempre aquele que eu não li.

Comentários Desativados em O melhor livro que eu não li em 2008

Papel vegetal

Posted in Crítica by Ana Bela Almeida on Quinta-feira, 11-12-2008


Quem já leu Expiação de Ian McEwan sabe que o romance vai colocando vários alçapões ao leitor e que a frustração das nossas expectativas pelo primeiro turning point é só uma brincadeira se comparada com a do segundo.

Mas, se a primeira surpresa do enredo se relaciona com aquilo que Briony Tallis vê – a violação da prima por Robbie -, a segunda terá que ver com a forma como nós vemos Briony – quando no fim da vida, e do romance, nos revela um outro desenlace possível para a história da irmã Cecília com Robbie. Ao conhecermos uma outra Briony, autora e narradora de Expiação, e apresentando-nos esta um enredo alternativo àquele que, sem sabermos que era da sua autoria, tínhamos acabado de ler, é insuportável a angústia da nossa impotência de leitores que só podem saber uma verdade contada por outros.

Quando do interrogatório a Briony pela polícia, afirmando esta a culpa de Robbie, a distinção entre saber e ver revela-se crucial:

– Então viste-o?
– Sei que era ele.
– Vamos esquecer o que tu sabes. Estavas a dizer que o viste.
-Sim, vi-o.
– Tal como estás a ver-me a mim.
– Sim.
– Viste-o com os teus próprios olhos.
– Sim. Vi-o. Vi-o. (McEwan, 208:209)

Se ver é importante para se poder saber, isso é exactamente aquilo que está vedado aos leitores. Nós somos aqueles que não vemos. Resta-nos acreditar no que é contado, seguir as pistas e a lógica, e chegar a uma conclusão. Aliás, este foi o procedimento de Briony, ao juntar os vários elementos de acusação, numa sequência lógica, imbatível a seus olhos, mas que conduziu a uma conclusão falsa e de consequências dramáticas, dada a inocência de Robbie. Se o livro não nos permitisse espreitar o mesmo objecto de todos os prismas, não erraríamos exactamente como Briony e não consideraríamos o seu acto de denúncia de Robbie a decisão mais acertada, boa e justa a tomar?

O filme Expiação (Joe Wright, 2007) vale a pena, não só pela Keira Knightley, mas porque nos permite o visionamento de uma obra que dá tanta importância à própria questão da visão. É difícil esquecer a cena em que Briony espreita a irmã através do vidro. Ou melhor, a cena em que Briony se vê a si mesma no reflexo do vidro, como num espelho, é difícil de esquecer. Quero dizer, é difícil esquecer a cena em que nós vemos o reflexo do olhar de Briony no vidro.

Talvez o motivo por que esta cena nos fica na memória resida na própria impossibilidade de ser fixada numa só imagem, como que a dizer-nos que a verdade só se deixa ver em papel vegetal, sobreposta, fragmentada.

Ian McEwan (2005). Expiação, Lisboa: Gradiva, [ISBN: 978-972-662-822-4] Tradução: Maria do Carmo Figueira

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em Papel vegetal

O acontecimento

Posted in Notícias by Ana Bela Almeida on Domingo, 23-11-2008

Encontrando-se o nosso Público em plena crise de imaginação, aguardemos que se inspire no vizinho El Pais e na sua colecção de antologias da melhor poesia que se escreveu em castelhano no séc. XX, devidamente prologada pelos estudiosos da área. Começa hoje, com a entrega das antologias poéticas de Antonio Machado e Juan Ramón Jiménez. Nas palavras de José Manuel Caballero Bonald, director da colecção, em entrevista a El Pais:

Creo que si se ve desde el periodismo, puede parecer un atrevimiento, pero si se mira desde la poesía, es un acontecimiento.

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em O acontecimento

Uma questão de intuição

Posted in Comentários by Ana Bela Almeida on Sexta-feira, 21-11-2008

2053400236_9ae2e78d633

Um dos momentos-chave do filme A Turma (Laurent Cantet, 2008) encontra-se na cena em que, repreendida a turma por não fazer a distinção entre o registo escrito e o oral nos seus textos, a aluna pergunta ao professor: “Como é que sabemos quando usar um ou o outro?”. O professor parece surpreendido com a obviedade da pergunta, como se esta não fosse realmente necessária: “É uma questão de intuição”. Acontece que a intuição, ao contrário do que se infere do discurso do professor, não é uma condição natural. A vida daqueles miúdos, que vivem a 30 minutos de Paris e nunca lá puseram os pés, não lhes confere “naturalmente” essa intuição. Sabem que existe aquela a que chamam “a linguagem dos burgueses”, mas não lhes pertence, a deles é a MTV e a Playstation. Aquilo que eles são, a vida deles, não é compatível com o discurso escrito, com a escola. E a escola não pode substituir-se à vida deles, não pode ensinar-lhes aquilo que deveriam ser, por “intuição”. E assim, professor e alunos são reféns de um desencontro que talvez não possam e não lhes caiba resolver. A última cena do filme – a sala de aulas vazia, as cadeiras tombadas e o silêncio a tomar conta de tudo – parece querer dizer-nos que a trégua tem que ser procurada algures lá fora, do outro lado dos muros.

[Também aqui]

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em Uma questão de intuição

Apocalipse now

Posted in Crítica by Ana Bela Almeida on Quarta-feira, 17-09-2008


A cena em que Wall-E dança diante do velho televisor, numa imitação patética da coreografia humana em tecnicolor, é uma das sequências mais tristes que alguma vez vi no cinema. Lembra-me aquela frase da amante, já não sei de que filme ou livro, que no momento da despedida dizia: “Eu serei a última a esquecer”. Também o robot Wall-E será o último a esquecer que um dia existimos no mundo e a sua repetição maquinal dos gestos humanos não fará mais do que sublinhar essa ausência. É significativo que os únicos seres humanos de carne e osso deste filme sejam os que aparecem em reprodução televisiva (na sucata de Wall-E e no ecrã da nave espacial) e que os que se julgam seres humanos às voltas no espaço sejam apenas desenhos animados, simulacros de gente. Em rigor, o próprio Wall-E, o robot criado à imagem dos humanos, não existe: é só um sinal, um rasto de alguma coisa que já houve, um bocado que ficou para trás.

O filme lembra o poema “Natura et ars” de Adília Lopes, também em cenário de fim da Terra, embora muito menos nostálgico dos tempos passados.

Natura et ars

(…)

Imagino o fim da Terra assim
todas as casas e todas as ruas
desaparecem
assim como todas as pessoas
graças a um cataclismo
sobrevivem apenas os telefones
as baratas e as listas dos telefones
marcianos nos dias a seguir
tentam interpretar a lista dos telefones
os marcianos não estabelecem uma relação
entre os telefones e a lista dos telefones
mas entre a lista dos telefones e as baratas
e essa relação é plenamente satisfatória

A tarefa de interpretação do mundo cabe agora aos marcianos, que não estabelecem uma relação entre os telefones e a lista dos telefones, mas sim entre a lista dos telefones e as baratas. Num mundo pós-humano a nossa divisão entre seres vivos (baratas) e coisas (telefones e lista dos telefones) não tem por que existir, e não é “natural”, se os próprios marcianos não pertencem a nenhuma das duas categorias. O universo em que a nossa faculdade de o interpretar cessa, abre-se a todas as possibilidades, e todas são plenamente satisfatórias.

Os marcianos de Adília, ao contrário de Wall-E, não ficam longo tempo memorando e inauguram um verdadeiro mundo novo, desumanizado, e suspeito que, para Adília Lopes, plenamente satisfatório. Já o pobre Wall-E ficará para sempre assombrado pelo nosso fantasma, imitando a cena da dança, que por sua vez é uma imitação da vida. A arte imita a vida que imita a arte que imita a vida até que o apocalipse nos separe.

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em Apocalipse now

Ler Auschwitz na praia

Posted in Comentários by Ana Bela Almeida on Domingo, 31-08-2008

Nunca concordei com a ideia de que há livros que não são para ler na praia. Às vezes ouve-se dizer que autores como Guimarães Rosa ou Proust “não são autores para serem lidos na praia”. Por mim, desde que à sombra, e sem bolas por perto, tanto me dá ler na praia como noutro lugar qualquer. Tendo crescido sem um “room of my own”, sempre achei piada, nos inquéritos sobre hábitos de leitura, a quem diz só conseguir ler livros sentado na cadeira do escritório, à mesa. Para isso é preciso ter escritório, cadeira e mesa, um verdadeiro luxo. Alguns de nós lêem com crianças a correr pela casa, em salas com a televisão acesa, curvados no sofá, em más posições, com barulho, de todas as maneiras. O lugar onde se lê não é importante, quando começa a leitura o movimento exterior suspende-se e o livro passa a ser a única coisa que existe. O livro tem esta particularidade de permitir que o seus bons leitores não sejam necessariamente os mais apetrechados de mobiliário.

Apesar desta minha convicção da inexistência de livros impróprios para a praia, este Verão aconteceu-me levar um livro e não conseguir começar a lê-lo. O livro em causa é Os que sucumbem e os que se salvam, uma compilação de ensaios de Primo Levi, publicado originalmente em 1986, uma reflexão sobre o pós-Auschwitz e a recepção crítica a Se Isto É Um Homem. A obra é atravessada pela ideia da dificuldade da leitura de Se Isto É Um Homem por parte daqueles que não são sobreviventes de Auschwitz . Os muitos leitores com quem Primo Levi contactou em conferências e escolas, através de cartas, etc., têm em comum o facto de não terem experienciado o lugar do horror. O facto de serem/ sermos leitores de livros faz de todos nós elementos estranhos ao Lager, onde, segundo Primo Levi,

poder só dar uma olhadela a um jornal já era um acontecimento inusitado e perigoso (pag.138).

Tentei ler este livro em casa, mas não é livro para se ler com a barriga cheia do almoço e o conforto dos ruídos familiares à nossa volta. E continua a ser difícil lê-lo, quando temos combinado ir fazer compras ao Colombo. E não melhora no conforto da biblioteca, nem na calma do parque. Ou seja, não há lugar para ler este livro. Ter nas mãos um livro, e o tempo e vida para o ler, é o primeiro sinal da nossa fortuna e radical distância da experiência que nos é contada.
Concluindo, acabei por voltar à praia e li-o todo lá.

Levi, Primo, Os que sucumbem e os que se salvam, Lisboa: Teorema, 2008, 204 pp.
Trad. José Colaço Barreiros[978-972-695-751-5]

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em Ler Auschwitz na praia

Mulher, 30 anos, leitora de Cossery

Posted in Comentários by Ana Bela Almeida on Sexta-feira, 11-07-2008

A condição enunciada no título deste post é, segundo o próprio Albert Cossery (Cairo, 1913-2008), uma raridade. Na longa entrevista concedida a Michel Mitrani afirma nos seus livros gostar de “troçar” um pouco das mulheres:

Das mulheres, não das raparigas. E, não obstante, tenho leitoras femininas que me lêem… (p.98)

O clube de Cossery seria, então, aquele onde “menina não entra”, quero dizer, onde a mulher não entra. O mundo Cossery só admite homens, crianças, raparigas até aos quinze anos e papagaios de papel. Sempre me pareceu injusto (sempre, desde que passei dos quinze) não encontrar lugar neste universo cosseriano, das sestas prolongadas e do ópio nos cafés. O espaço de fuga à vida adulta, alheio ao dinheiro e ao trabalho, é o mais propriamente literário dos lugares.

Mitrani, a dada altura, comenta aquilo que considera ser o grau de “humanidade” das personagens do escritor egípcio:

– Estas personagens são também muito humanas. Medhat é de tal forma humano que, por compaixão, se casa com a filha de um varredor. (pag.67)

Ao que Cossery responde:

As minhas personagens são os únicos seres humanos que existem. (pag.67)

Pode ser que as personagens sejam os únicos seres humanos com uma existência real, no sentido em que esta é certamente mais duradoura e imutável do que a nossa. Mas penso que Cossery quer aqui dizer uma coisa muito mais simples: as personagens são os únicos seres dotados de humanidade no sentido em que são os únicos com um verdadeiro sentido de compaixão pelo outro, de piedade, que, de certa forma, seria sempre um sentimento incompleto e frustrado no lado de cá dos livros.

Mitrani, Michel (entrevista), Conversas com Albert Cossery, Lisboa: Antígona, 2002, 105 pp. Trad. Ana Paixão[972-608-134-3]

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em Mulher, 30 anos, leitora de Cossery

A cena do crime

Posted in Vária by Ana Bela Almeida on Terça-feira, 24-06-2008

Cena 1: Uma mulher é violada num parque de estacionamento. Há pessoas nos outros carros, que vêem a cena, mas ninguém faz nada. De facto, os carros desviam-se da cena do crime, como se nada fosse.

Cena 2: Um idoso é atropelado ao atravessar uma estrada. Há pessoas nos outros carros que vêem a cena, mas ninguém faz nada. De facto, os carros desviam-se da cena do crime, como se nada fosse.

Uma destas duas cenas encontra-se no romance Cocaine Nights (1996) de J. G. Ballard. A outra passou há umas semanas no telejornal e pode ver-se no YouTube. A cena ficcional insere-se numa narrativa que lhe dá sentido, numa sequência lógica, num espaço de conforto. A outra não.

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em A cena do crime

Um jogo de futebol

Posted in Vária by Ana Bela Almeida on Domingo, 08-06-2008

Em tempos de Euro e do Polónia-Alemanha de hoje, fica aqui o testemunho de outra celebração “euro”, festejada com outra partida de futebol (Polónia-Itália), em Maio de 1945, tal como a relata Primo Levi em A Trégua. A Polónia venceu esta partida.

A vitória e a paz também foram festejadas de outro modo, que por pouco, indirectamente, não me custou caro. Em meados de Maio teve lugar um jogo de futebol entre a equipa de Katowice e uma representativa dos italianos. (…) A partida realizou-se num campo da periferia bastante longe de Bogucice, e os russos, para a ocasião, concederam saída livre a toda a gente do campo. Foi furiosamente disputada não só entre as duas equipas contendoras, mas também entre estas e o árbitro: porque árbitro, convidado de honra, titular do camarote das Autoridades, director da prova e juiz de linha ao mesmo tempo, era o capitão da NKVD, o inconcreto inspector da cozinha. Já perfeitamente curado da fractura, parecia seguir o jogo com interesse intenso, mas não de natureza desportiva: com um interesse de natureza misteriosa, talvez estético, talvez metafísico. O seu comportamento era irritante, aliás: extenuante, se julgado com o metro dos muitos competentes presentes no meio do público, por outro lado, hilariante, e digno de um cómico de grande escola.(…) Nestas condições a partida (que foi merecidamente ganha pelos polacos) arrastou-se por mais de duas horas, até quase às seis da tarde, e prolongar-se-ia provavelmente até à noite se dependesse só do capitão, que não se preocupava minimamente com o horário e se comportava em campo como se fosse ele o Senhor a seguir a Deus, e aquela sua mal entendida função de director de jogo parecia dar-lhe um divertimento louco e inesgotável. Contudo, pelo crepúsculo o céu obscureceu rapidamente, e quando caíram as primeiras gotas de chuva apitou-se o final.

Primo Levi, A Trégua, Lisboa: Editorial Teorema, 252 pp. [ISBN:972-695-575-0]

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em Um jogo de futebol

Animalario

Posted in Comentários by Ana Bela Almeida on Segunda-feira, 02-06-2008

A minha edição do Animalario: (arte de la India) foi encontrada numa feira do livro na Galiza, perdida na secção de livros infantis. Não é por acaso que sublinho a propriedade deste livro – mencionando «a minha edição» – e que o considero mais «perdido» do que normalmente estão todos os livros que se amontoam em feiras de livros.
O Animalario é um livro da Faktoria K, uma editora de Vigo vocacionada para a edição do livro infantil, e consiste em reproduções em serigrafia de imagens de animais na tradição da arte religiosa, ritual e decorativa da Índia. São imagens originalmente pintadas, sobretudo por mulheres, nas paredes das casas, em tecidos e em folhas de palma. Nas palavras de uma das coordenadoras da obra, cada imagem é tratada «como se fosse uma pintura original». A sensação de se estar na posse de um livro original é reforçada pelo slogan – «A arte de criar Livros Únicos» – e pelo número de série atribuído (o meu é o nº610) numa «edição especial» de 2000 exemplares. Este livro, impresso artesanalmente na Índia – o folheto que o acompanha menciona a impressora Heidelberg de 1950 onde foi feito e mostra a fotografia do homem que o coseu e encadernou à mão – permite-me a ilusão da possibilidade da fuga à reprodução, à lógica do mercado em grande escala, com os direitos das vendas do livro a serem repartidos por todo os/as artistas indianos/as que trabalharam neste projecto. Chamo-lhe ilusão porque o privilégio de possuir um livro «como se fosse» só meu também pode ser partilhado por outros 1999 leitores.
Resta agora entender como é que esta «peça de coleccionismo para bibliófilos» (volto a citar o folheto promocional), ao qual foi atribuído o 1º Prémio do Ministério da Cultura Espanhol para o Livro de Arte Melhor Editado em 2007, vai parar à secção dos livros infantis nas feiras do livro e, suponho, também nas livrarias. Afinal, trata-se de um livro de arte ou de um livro infantil, ou de ambas as coisas? Questiono-me sobre o que fará com que estas reproduções sejam classificadas para um público infantil, quando são imagens que, na origem, têm uma função religiosa, normalmente relacionadas com mitos e crenças hindus, e que são pintadas em ocasiões de casamentos e festivais indianos. Talvez por ser um livro com ilustrações de macacos, girafas e leões. Ou talvez por ser um livro sem texto, acessível a crianças que ainda não sabem ler. Ou talvez por ser um livro profusamente colorido – azuis eléctricos, amarelos florescentes, vermelhos sanguinolentos- que foge ao branco e negro da idade adulta. Ou talvez porque o estilo naif das imagens é traduzido em «europeu» por «arte infantil». Eu gosto de pensar que é porque só um curator de renome, ou um miúdo de cinco anos, podem verdadeiramente entender a beleza destes animais.

Arni, Kanchana e Gina Wolf (coord.). Animalario: (arte de la India), Vigo: Faktoría K de Libros, 2006, 74 pp. [ISBN: 978-84-934713-6-184-934713-6-4]. Tradução de Beasts of India, Reino Unido, Tara Publishing, 2003. [978-84-934713-6-1-84-934713-6-4]

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em Animalario

Dia do pai

Posted in Vária by Ana Bela Almeida on Quinta-feira, 20-03-2008

MourinhoOntem, “dia do pai”, passei a tarde à procura de um presente de última hora no centro comercial. Depois de me maçar com tantos cachimbos, gravatas e camisas às riscas, acabei por ir parar à Fnac. Como muitos dos filhos que por lá se acotovelavam, procurava um livro pertencente a uma categoria específica que é a dos “livros que não são para ler”. Aliás, a Fnac deveria ter um espaço específico para os “livros para ler” e outro para os “livros que não são para ler”, de preferência divididos por uma cortina negra e espessa, para separar bem as águas. Além de que a dita cortina aumentaria o efeito de tentação para ambas as partes e bem poderíamos começar a ver fervorosos amantes de Machado de Assis a espreitarem para o outro lado, viciados em livros com posições de ioga e pilates; assim como estóicos folheadores de livros de dietas a serem iniciados nos vários volumes de Proust.

Tinha pressa, mas não foi difícil encontrar o presente ideal porque as livrarias têm mesmo muitos “livros que não são para ler” e no top ten dos livros dedicados ao “dia do pai” havia pelo menos oito nesta categoria. Ainda olhei para um catálogo dos “melhores vinhos portugueses”, e para outro que mostrava “todas as aves de caça em território português”, mas acabei na secção de desporto, quero dizer, de futebol, quero dizer, na secção de biografias do Mourinho. Estive com duas na mão, mas uma delas, a de capa dura, tinha demasiado texto, quase que era “um livro para ler”, e por isso abandonei-a. Fiquei com a outra, uma compilação de citações a partir de entrevistas ao José Mourinho, com uma mancha gráfica de tamanho generoso e abundante espaço em branco, um livro sem início nem fim, a prenda ideal. Deixo alguns excertos:

“Prefiro o quatro, três, três.” (Daily Star, 2 de Abril de 2005)

A sua resposta quando, em Telavive, lhe perguntaram se politicamente era de esquerda ou de direita. (p.78)

“Sei perfeitamente em que filme estou. Sei quem são os produtores. Sei também qual é o final da história, mas, como um dos actores principais, tenho o direito de tentar mudar esse final.” (João Almeida Moreira, Record, 17 de Novembro de 2000)

Um filme que não ficou para a história nem sequer foi candidato aos Óscares. (p.83)

É pena que, às citações de Mourinho, muitas vezes brilhantes, se siga a desnecessária mediação do compilador. Seja como for, o livro foi recebido com sucesso. Segue-se, em breve, o “Dia da Mãe”.

John Amhurst (compilador), Mourinho: Eu sou Especial – O que ele diz de si e dos outros. Adaptação portuguesa de Rui Tovar. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 2006, 219 pp. [ISBN 972-46-1664-9]

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em Dia do pai

Um marciano na Galiza

Posted in Crítica by Ana Bela Almeida on Domingo, 09-03-2008

Rivas

O livro Unha Espia no Reino de Galicia reúne crónicas do escritor galego Manuel Rivas, publicadas entre 1990 e 2004, em vários jornais e blogues. Estas crónicas propõem-se uma tarefa impossível: a de descrever um país a um alien que o vê pela primeira vez. A impossibilidade não resulta da existência do marciano, mas da dificuldade em fixar o presente de uma realidade sempre em andamento, numa Galiza que é uma constante post-Galicia. Um país onde, por unha estrada de curvas, un turbodiésel adianta un tractor que adianta un vello carro. Por um segundo, nesta dupla ultrapassagem, o “turbodiésel”, o “tractor” e o “vello carro” encontram-se num espaço paralelo. Manuel Rivas procura fixar este efémero encontro das várias velocidades, esse instante que é, em si mesmo, um “post-instante”. Neste livro, que faz lembrar o Miguel Esteves Cardoso de A Causa das Coisas ou de As Minhas Aventuras na República Portuguesa, escrito num género desvalorizado, o da crónica, num registo menor, o do humor, sobre um país periférico, a Galiza, encontra-se alguma da prosa mais inteligente que se tem escrito a norte do norte:

Atlántico Norte Mediterráneo. Clima variábel, galego variábel, Galicia variábel. Por unha estrada de curvas, un turbodiésel adianta un tractor que adianta un vello carro. Aceleración. Derrapaxe. Buguinas. Tanatorios. Hiper-feiras. Festas. Dj’s. Arqueoloxia industrial. Pop-feísmo arquitectónico. Museo etnográfico. Body-art na pel da catastro-fermosura. Ondiñas veñen, ondiñas veñen e van. Encrechar pedras eternas. Recomezar.

Manuel Rivas, Unha Espía no Reino de Galicia (2004). Vigo: Xerais. 229 pp. [ISBN 84-9782-193-9]

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em Um marciano na Galiza

A verdade do veneno

Posted in Notas, Recensões by Ana Bela Almeida on Quarta-feira, 13-02-2008

docglas.jpgUm médico estende ao amigo uma caixa de cigarros, para que este se sirva, após generoso jantar. O amigo agradece e responde: «Este cigarro tem bom ar. Deve ser bom. Ainda bem, porque eu já começava a ficar preocupado. Sendo médico, tu saberás que os melhores cigarros são os mais venenosos. Estava com medo que me fosses oferecer um daqueles que não prestam.»

O fait divers passaria despercebido, se o médico não fosse o Doutor Glas, personagem cujo nome serve de título a este romance do sueco Hjalmar Söderberg. Meia dúzia de páginas antes, o médico tinha estendido uma caixa a um outro conviva de mesa num café, o clérigo Gregorius, que passado pouco tempo caíra redondo, vítima de enfarte. Em vez de cigarros, Gregorius aceitara tomar o comprimido vivamente recomendado pelo médico como sendo bom para melhorar o mal-estar e as palpitações que se seguem a uma refeição. Era um comprimido de cianeto.

O que pode levar um respeitado médico de família, dedicado à profissão, a induzir um paciente a tomar cianeto e, deste modo, executar um assassínio? Em que circunstâncias pode um médico, aliado da vida, encontrar na morte a resposta mais ética?

Neste romance em forma de diário vamos acompanhando os dilemas do Doutor Glas, na procura de uma verdade moral, como um carrossel, impossível de apreender. Como diz o seu amigo Merkel: «A verdade é como o sol, o seu valor depende inteiramente da distância a que estamos dele.»

Quando da sua publicação em 1905, na Suécia, Doctor Glas causou escândalo por apresentar um médico que defende a eutanásia e o aborto, práticas que apenas não exerce por hipocrisia, mas a questão da morte neste romance estende-se bem para além disto. O Doutor Glas nunca cederá às inúmeras súplicas de pacientes grávidas contra vontade; nem se pode chamar “eutanásia” ao que acontece. Quando Helga Gregorius o procura no consultório para que a ajude a livrar-se das atenções sexuais do clérigo Gregorius, o marido indesejado, e poder assim viver livremente o romance com o seu jovem amante, está longe de imaginar o alcance deste pedido. Está longe de saber que, para este homem solitário e virgem, que se define como um observador da vida dos outros, este será um chamamento à acção e, por assim dizer, à vida. Assistimos ao seu sofrido debate interior, e vemos como num processo próximo do de Raskolnikov de Dostoievski, surgem os argumentos contra e a favor do assassinato, e como toda a lógica o decide a agir. A defesa do amor dos dois jovens constitui, para o Doutor Glas, uma questão de vida ou morte. No entanto, o Doutor Glas, na sua inexperiência, não se apercebe da sua própria distância do sol. Não sabe que com a morte do clérigo, o amante de Helga rapidamente se desembaraçará desta para casar com outra, e que Helga acabará grávida, abandonada, sem nunca mais lhe dirigir palavra. O seu é um erro de cálculo que surge da inexperiência do amor, da distância que o leva a pensar o amor como uma questão de vida ou morte. A verdade é o maior dos venenos, aquele que lhe irá queimar as entranhas: «A pequena quantidade de verdade que te é útil, recebe-la a troco de nada; e se está cheia de mentiras e erros, isto também é para teu bem; não diluída, queimar-te-ia as entranhas.»

Nota: As citações são de tradução minha.

Hjalmar Söderberg (2002), Doctor Glas, Anchor Books Edition, New York, pp.150 Prefácio de Margaret Atwood. Traduzido do sueco para o inglês por Paul Britten Austin

Ana Bela Almeida

Comentários Desativados em A verdade do veneno