Scriptor ex machina (VI)
A água treme no livro. Corre, apagando as letras que iluminavam. (81)
Aqueço a letra na porcelana. Destilo a fúria. Separo o eco, a alegria. A forma indico e o encanto. (84)
O incêndio começou primeiro nos livros.
A gramática que todos os dias se menstruava faleceu entre dois tempos dum verbo. O dicionário que era o mais perigoso dos desportos onde a respiração nos faltava entre duas consoantes adormeceu aos pés duma palavra nova que fabricava mulheres e sol.
Às janelas dum compêndio de geografia um rio com os vestidos em chamas amaldiçoava os professores.
Um rei enforcou-se à porta dum reinado depois de ter dormido ao fundo duma página com a mais virgem das rainhas e desacreditou a história do país.
Só mais tarde o incêndio veio na pele do jornal e envenenou muitos homens na província.
Lídia adormece, morre nesta linha.
A barba leva o vento para a cidade. (85)
Os teus mamilos fi-los. (86)
Sê louco leitor. (Ao menos uma vez.) Come esta folha. (89)
Lá fora o meu calor continua.
Às vezes, leio. (100)
Julho. E termino de pé. Para emagrecer finalmente esta solidão. E respiro este livro. (102)
Manuel da Silva Ramos, Os Três Seios de Novélia, Dom Quixote, 2008 [3ª edição]. ISBN 978-972-20-3597-2 [1ª edição, Inova, 1969; 2ª edição, Fenda, 1996]
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