Os Livros Ardem Mal

Da leitura como perdição

Posted in Cinema, Livros, Vária by Sandra Guerreiro Dias on Sábado, 21-02-2009

Rezza

O caminho para a perdição pode ser um qualquer que queiramos, se a isso nos for dada escolha. Pode ser o que seguimos a torto ou a direito, que no fim não sabemos nunca onde vamos dar. Em Caminho para Perdição, de Sam Mendes, são muitos os caminhos que se cruzam sem o fim que seja o deles, nem o de quem os escolheu percorrer. Ao contrário de que sempre assumimos como risível dado adquirido e risível, e que o é apenas de vez em quando, um caminho pode ser isso mesmo que é ou tão somente o caminho que há e mais nenhum a caminho de nada que seja o suficiente do que é em si, ou um outro ainda, que se percorre sem se percorrer para se dizer do lugar das coisas e do que elas aparentemente são sem o serem e sendo-o ante o que quisermos que seja. Em Caminho para Perdição, ensaia-se o que em perspectiva, esta que em cima se adianta, carece de formulação explícita no filme para que assim se simule e se afirme enquanto manobra de actuação e intervenção. Há por isso, e para que se efective essa possibilidade de denúncia do que é para então se ser de um outro modo, dois caminhos que se percorrem ao contrário e que se completam do fim para o princípio, no princípio que com o fim é o que começa, no fim quando percebemos que a perdição, no que é de génese e conceito variável, ou sempre o mesmo, poderá ser o princípio de todas as coisas, independentemente do que queiramos: salvar-nos ou perder-nos.

É Deleuze quem afirma que «pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer coisa», referindo-se ao lugar em devir para onde nos projectamos quando escrevemos, isto é, a morte, qualquer que seja a aproximação anterior antes desta. E que a morte seja a perdição, que o caminho seja para a morte e que essa qualquer coisa a que nos aproximamos, sejamos nós do princípio para o fim ou do fim para o princípio, também o pode ser para a salvação, a salvo de sermos salvos. No filme de Sam Mendes, adaptado do romance homónimo de Max Allan Collins, a criança que lê desesperadamente, intenta, aduz, interpreta, resistindo e opondo-se ao enredo de é que insolitamente obrigada a fazer parte. Por outras palavras, procura por isso, ao invés de salvar-se, perder-se. Assim, quando não come, lê, quando tem medo, lê, quando não dorme lê, quando não mata, lê. Tudo para que se não salve e inexoravelmente se assuma enquanto instância de si própria que, perseverante no que exige de si, alega a legitimidade de um outro mundo possível, e, ainda que mais perigoso, porque em falência, mais belo. O menino que lê à luz da lanterna debaixo do lençol enquanto o pai mata, o menino que lê para se esconder, o menino que lê para não ter fome e sofregamente resistir à dor, assim, e só assim, sobrevivendo ao assassínio da mãe e do irmão, é o mesmo menino que, no fim, portanto no princípio depois do fim ser o princípio, não mata para se perder, expulsando-se irreversivelmente desse mundo em contradição. A leitura como acto de ler, acto de probabilidade, aclive que simula uma salvação em modo avesso, porque afinal perdição e delírio, acha em Michael Sullivan, filho, a liquidação de uma permanente impugnação que induz a ideia da inocência perdida, falsa portanto já que a inocência que se perde é a da criança que passa a saber do mundo, não como o que é mas antes pelo que este sugere e suscita de si através do que não é mas podia ser (recuperando-se aqui a acepção de Aristóteles de poesis, ou o que podia ter sido, por oposição à mimesis, ou o que efectivamente foi).

Assim, essa fabulação, aqui derivação de um modo de ser do próprio mundo que se auto-recusa, de que falava Bergson, e que Deleuze refere nos termos de uma «função fabuladora [que] não consiste em imaginar nem em projectar um eu (…) [mas sim] acede[r] antes a essas visões, [e] eleva[r]-se até aos seus devires ou potências», corresponderá assim a uma condição quase axiomática que se assume enquanto premissa de uma consciência que se permite «perder-se» à procura, não de se salvar a si, mas ao mundo. E porque a «literatura é delírio, e como tal joga o seu destino entre dois pólos do delírio», ainda Deleuze, portanto e se então o mundo não vai já a tempo de se salvar, que a literatura não salve, antes mate, assim se salvando a si própria.

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