Os Livros Ardem Mal

«Um Lugar Imenso, talvez» *

Posted in Livros, Notícias by Sandra Guerreiro Dias on Quarta-feira, 28-01-2009

Julian Duran

«Cinquenta por cento dos jovens deste país que estão dentro do sistema de ensino, com 15 anos não compreendem uma frase familiar. É dramático.» (António Prole)

«Correctamente, devemos ler pelo poder. Um homem que lê é um homem intensamente vivo. O livro deve ser uma bola de luz nas nossas mãos.» (Ezra Pound)

Porque ler é existir, conhecer e participar, promover a reflexão e o debate acerca do lugar da leitura nas sociedades e no mundo foi o mote lançado pelo Congresso Internacional de Promoção da Leitura que teve lugar nos passados dias 22 e 23 na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Organizado pela Casa da Leitura, organismo afecto àquela fundação criado há três anos com o objectivo de difundir a literatura infantil e promover a leitura, o encontro Formar Leitores para Ler o Mundo contou com a participação de especialistas de diversas áreas da leitura, da literatura, e da literatura para a infância, vindos do Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Espanha, França, Brasil e Portugal. Entre eles, Teresa Colomer, Michel Fayol, Peter Hunt e Lawrence Sipe. Estruturado a partir de três grandes painéis temáticos – a saber, Literatura para a Infância e a Formação de Leitores, Estratégias de Leitura e Compreensão Leitora e Projectos de Promoção da Leitura -, a discussão entre os diversos especialistas assumiu uma perspectiva que pretendeu ser simultaneamente analítica e crítica, prognóstica e indicativa das múltiplas e complexas questões levantadas a partir de cada uma das áreas em relevo. Entre elas, o papel e a formação dos mediadores de leitura, o analfabetismo funcional, o novo conceito de alfabetização e a compreensão leitora, as competências de leitura e a leitura enquanto acto de cidadania.

No dia 22, no painel dedicado à Literatura para a Infância e a Formação de Leitores, Sandra Lee Beckett, Professora do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas Modernas da Universidade de Brock, Canadá, e antiga Presidente da Sociedade Internacional de Investigação para a Literatura Infantil, defendeu, explicitando, as preeminências do fenómeno do «crossover» ou «ficção de cruzamento», a partir do que se estipula a formação de leitores com histórias que tematizam as grandes questões históricas e sociais e que dão voz, problematizando, a muitas das grandes inquietações. A partir de um vasto conjunto de obras de autores como Peter Pohl, Philip Pullman, David Almond, Jostein Gaarder, Stephanie Meyer e J. K. Rowling, entre outros, esta especialista defendeu que «a ficção de cruzamento» adquire neste contexto de permanente dissolução do lugar da leitura nas sociedades contemporâneas um papel incontornável na efectiva «formação de leitores para compreender o mundo».

Da parte da tarde, e a finalizar o painel dedicado às Estratégias de Leitura e Compreensão Leitora, Pepe Duran, livreiro, presidente de diversas cooperativas de trabalho associado nesta área, teraupeuta gestáltico e contador de histórias, defendeu o conceito de leitura com o corpo, o corpo como leitura, o conto como relato e leitura do mundo:

«As palavras lidas, ou contadas, ajudam-nos a recuperar a memória sensitiva, sentimo-nos vivos, apercebemo-nos de como a vida se manifesta através do nosso corpo. As palavras lidas, ou contadas, esclarecem o nosso viver no mundo. Um mundo que podemos ler e podemos contar para conhecer, para habitar, para desfrutar, para compartilhar com os outros no qual podemos crescer, e ser felizes para morrer, no final, entregando a nossa experiência de vida

No dia 23, numa das últimas prestações do painel reservado à apresentação de Projectos de Promoção de Leitura, Galeno Amorim, actual Director do Observatório do Livro e da Leitura do Brasil e uma das presenças mais aplaudidas neste congresso, abriu a sessão asseverando que:

«Os livros não mudam o mundo. Os livros mudam as pessoas. As pessoas mudam o mundo

Assumindo o caso específico do Brasil, onde, afirmou, com base em dados estatísticos recentemente divulgados a partir do estudo «Retratos da Leitura no Brasil – 2008», que o próprio coordenou, 95 milhões de habitantes são leitores e 77 milhões, não leitores, o escritor e jornalista especialista em políticas públicas do livro e da leitura, defendeu as acções locais de promoção da leitura, referindo, a título de exemplo, o significativo sucesso de inúmeras iniciativas que têm vindo a ser levadas a cabo naquele país. Projectos como «Fome de Livro» (cujo objectivo foi o de, refere, «zerar o número de cidades brasileiras sem bibliotecas»), «Imposto Zero para o Livro», «Ribeirão das Letras» (projecto responsável pela inauguração de 80 novas bibliotecas em três anos), ou ainda o projecto «Arca das Letras», cujo resultado foi a criação de 6.000 minibibliotecas em zonas rurais, aldeias indígenas e comunidades de antigos escravos, foram apenas alguns de entre os muitos casos referidos.

Depois do almoço, num dos três fóruns que se realizaram para cada um dos painéis em simultâneo e aberto à participação de todos os presentes, Teresa Colomer, professora da Universidade Autónoma de Barcelona, especialista em literatura infantil e juvenil e em ensino da leitura e da literatura, deixou algumas orientações teóricas e metodológicas de trabalho efectivo da leitura em contexto de sala de aula, entre eles, «a leitura autónoma, a leitura partilhada, a leitura relacionada com os diferentes objectivos curriculares e a leitura orientada pelo docente.» Ainda neste âmbito, e a propósito precisamente do papel indispensável e incontornável dos mediadores de leitura, Pedro C. Carrilho defendeu o seguinte:

«Se o êxito da ‘sociedade de conhecimento’ é um objectivo da sociedade, como dizem os governos desde há algum tempo, é imprescindível que também o seja a aquisição da capacidade de leitura dos cidadãos, pois é esta que tornará possível o acesso ao ‘conhecimento’, e não só à informação’. Neste século, dominado pelo avanço das novas tecnologias, é mais necessário do que nunca um cidadão leitor, competente e crítico, capaz de ler diferentes tipos de textos e de descriminar a abundante informação que lhe é oferecida diariamente através de diversos suportes, ou seja, um cidadão com capacidade de leitura

E porque «adquirir o hábito da leitura é construir um refúgio para quase todos os males da vida» (W. Somerset Maugham), e em jeito de síntese, o encontro encerrou com um diálogo aberto e informal em que o tema em análise foi precisamente «A leitura em debate», para o qual foram convidados a intervir José Barata-Moura, enquanto representante da Universidade de Lisboa, Fernando Savater, escritor espanhol e Eduardo Marçal Grilo, administrador da Gulbenkian, tendo a moderação do painel ficado a cargo de António José Teixeira, Director da Sic-Notícias. Quase a finalizar, debateram-se questões relacionadas com as diferentes formas de relacionamento entre o leitor e o livro, o lugar deste na descodificação do mundo e a leitura enquanto processo de auto-conhecimento.

Uma palavra ainda para a exposição comissariada por José António Portillo, presente no espaço apenas durante os dias de realização do congresso, intitulada «Eu Estava Lá! – Artifícios para contar e criar histórias» e cuja matriz partiu do conceito de narrar para viver ou o conto como exercício de catarse, «acto de escuta» e «acto expressivo». Acrescenta o Professor de 1º ciclo e Animador Cultural: «As minhas exposições pretendem escapar à contemplação consumista da arte. Procuram no mínimo um diálogo de silêncio com o objecto», refere o autor que se auto-designa ainda «analfabeto plástico». A instalação reúne objectos diversos (pequenas caixas, pedras, materiais reciclados, bonecos, etc.) que foram sendo produzidos no contexto de mirabolantes projectos que se dão pelo nome de «Biblioteca de cordas e nus», «Bibliotecas de textos deitados ao lixo» e «Biblioteca de textos sem publicar», todos criados, coordenados e dinamizados por Portillo.

E se é urgente «substituir o aborrecimento de viver pela alegria de pensar», Bachelard citado algures, não o é menos assumir que devemos «ler para viver» (Flaubert), já que, por tudo e por nada, ler é antes de todas as palavras, um acto de profunda responsabilidade social, um direito elementar e operante que nos assiste e que por isso nos torna mais livres no que somos e no que queremos ser enquanto sociedade e mundo.

* Título da performance concebida a partir do clube de leitura para pais e filhos «Os Papa-Livros», que decorre na Biblioteca Municipal de Beja, apresentado no dia 22 no Congresso Internacional Formar Leitores para Ler o Mundo com encenação de Gisela Cañamero e participação dos pais e filhos envolvidos no projecto.

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