Os Livros Ardem Mal

Transparente

Posted in Comentários by Miguel Cardina on Quarta-feira, 18-03-2009

Em Timbuktu, Paul Auster fala de uma invenção por fazer: a torradeira transparente.

“Por que é que a gente não há-de poder ver o pão passar do branco inicial ao castanho dourado, ver a metamorfose com os nossos próprios olhos? Qual é a vantagem de fecharmos o pão a sete chaves e de o escondermos atrás daquela coisa tão feia que é o aço inoxidável? O que eu proponho é vidro transparente, com as espirais cor de laranja refulgindo lá dentro. Seria o Belo em nossas casas.”

Pensem nisto empreendedoras e empreendedores do nosso país. Pensem nisto. E depois digam, como o outro, que “não há almoços grátis”. Ou livros úteis.

Comentários Desativados em Transparente

2008 Vintage: Miguel Cardina

Posted in Balanço by Miguel Cardina on Domingo, 18-01-2009

Melhor livro
Cingindo-me apenas ao domínio da história, três obras editadas em 2008 merecem destaque. Desde logo, Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, Cultura e História no século XX, de José Neves (ed. Tinta-da-China), na qual o autor percorre com mestria os fios que enovelaram «comunismo» e «nacionalismo» na história do PCP (ao mesmo tempo que nos mostra que a história pode não ser um mero relato dos factos). Em segundo lugar, cabe destacar a volumosa narrativa sobre Humberto Delgado, escrita pelo seu neto, Frederico Delgado Rosa: Humberto Delgado, Biografia do General Sem Medo (ed. Esfera dos Livros). Por fim, mencione-se o estudo comparativo de Manuel Loff sobre a ditadura portuguesa e espanhola: O nosso século é fascista! O mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945) (ed. Campo das Letras).
(à margem, porque não é de um livro que se trata, anote-se  a importância didáctica e o cuidado gráfico dos fascículos Os Anos de Salazar, que durante algumas semanas foram distribuídos com o Correio da Manhã e a Revista Sábado. Estranhamente – ou talvez nem por isso, depois da manhosa publicidade – pouca gente lhe parece ter dado importância…).

Melhor blogue / Melhor blogger
No último ano, e como foi bem lembrado aqui, os blogues mais dedicados à análise e ao comentário político sofreram um processo de «concentração» (e também de fractura) que, apesar de tudo, não chegou para lhes injectar doses adicionais de interesse e novidade. Entre a linguagem sisuda e proto-institucional, de uns, e o rebaixamento do nível argumentativo até ao limite facilmente enjoativo do bitaite, de outros, sobraram algumas paisagens limpas. Uma corrente blogosférica particular manteve o vigor: aquela constituída pelos blogues que optam pelo nervo subjectivo e pelo diletantismo da escrita em vez da busca de um qualquer estatuto «de referência». Três exemplos distintos: o registo aforístico e «vagamente inútil» de João Gaspar, em Last Breath; a genialidade só aparentemente niilista do Luís Januário; Os olhares do Pedro Vieira, em mono ou em stereo.

Comentários Desativados em 2008 Vintage: Miguel Cardina

Malhas do comunismo nacionalizado

Posted in Recensões by Miguel Cardina on Segunda-feira, 05-01-2009

znComunismo e Nacionalismo em Portugal abre com uma história curiosa contada por André Malraux: durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), nas proximidades de Toledo, abate-se sob as tropas republicanas mais um punhado de bombas do céu que, ao contrário de tantas outras, desta vez não explodem. Surpreendidos, os republicanos descobrem-lhes no dorso uma mensagem em português – «camarada, esta bomba não explodirá» – indiciando a sabotagem dos engenhos algures na passagem de Portugal para Espanha. Como nota José Neves, este exemplo permite dar conta da «tendência internacionalista que trespassou fronteiras estatais e identidades nacionais sem revelar grande consideração por qualquer tipo de ideologia nacionalista». O livro em causa, no entanto, analisa precisamente o reverso dessa disposição: o modo como o Partido Comunista Português, sobretudo a partir da «reorganização» empreendida nos anos 40, forjou um «nacionalismo comunista» oposto e em competição com o nacionalismo do Estado Novo.

Se é verdade que o internacionalismo proletário, por um lado, e o nacionalismo fascista, por outro, não deixaram de se confrontar – como aparece evidenciado no episódio contado por Malraux – não é menos verdade que a mundivisão comunista – nomeadamente, aquela oriunda dos partidos da Terceira Internacional – foi também animada por uma forte pulsão soberanista. Assim sendo, o nacionalismo comunista construiu-se como um nacionalismo alternativo ao do Estado Novo, mas nem por isso menos convicto na invenção de uma identidade nacional, a qual se deveria acomodar com a figura revolucionária do proletariado, numa dinâmica tensional em regra desequilibrada. Como assevera o autor: «Pretendendo-se um nacionalismo instrumental, um meio para um outro fim, o nacionalismo comunista acabou por assumir uma importância tal na história do PCP reorganizado que em nenhum momento este terá programaticamente proposto uma terra sem estados nacionais. Uma terra sem amos, sem dúvida que sim, mas não a Internacional».

(more…)

Comentários Desativados em Malhas do comunismo nacionalizado

As vozes que ainda nos falam da guerra

Posted in Recensões by Miguel Cardina on Domingo, 05-10-2008

A guerra civil espanhola foi, durante décadas, embebida numa espécie de silêncio espesso, apenas interrompido pelos discursos triunfais sobre a «paz» dos vencedores e pelas evocações dos seus mártires. Num lúcido estudo intitulado Memoria y Olvido de la Guerra Civil Española, publicado pela primeira vez em 1996, Paloma Aguilar Fernández anotou a existência na Espanha democrática de uma «memória colectiva traumática da Guerra Civil». Neste domínio, a transição não só não ajudou a sanar a ferida como contribuiu para a reforçar, ao sustentar-se num «pacto tácito entre as elites mais visíveis para silenciar as vozes amargas do passado». Como é sabido, este processo tem vindo a ser progressivamente desbloqueado por diferentes associações ligadas à recuperação da memória histórica. E recebeu importantes impulsos nos últimos tempos, com a aprovação da Lei da Memória Histórica e a mediática iniciativa do juiz Baltasar Garzón de investigar o destino das vítimas de Franco.

Significativamente, e se as primeiras obras de fôlego sobre a guerra civil foram escritas por autores estrangeiros (Hugh Thomas, Anthony Beevor, Ronald Fraser, Paul Preston), a verdade é que os espanhóis têm vindo a revelar nos últimos anos um interesse espantoso pelo assunto. Basta efectuar um passeio despreocupado pelas livrarias de uma qualquer cidade do país vizinho para nos apercebermos da crescente historiografia dedicada ao conflito que opôs republicanos e nacionalistas. Também no campo da ficção têm aparecido obras – como este volumoso As Vozes do Rio Pamano, de Jaume Cabré – que se propõe tomar o evento como alavanca narrativa. No caso deste romance, trata-se sobretudo de abordar o tempo da «ressaca», o surdo e espaçado jogo do gato e do rato que a ditadura teve de travar, durante a década de quarenta, com os fogachos ainda acesos da resistência republicana. (more…)

Comentários Desativados em As vozes que ainda nos falam da guerra

A primeira vaga «maoísta»

Posted in Crítica, Recensões by Miguel Cardina on Sexta-feira, 25-07-2008

Quem, de algum modo, conhece a história dos conflitos ideológicos no campo da esquerda durante as décadas de sessenta e setenta, identifica o papel fundamental que desempenhou o chamado «maoísmo» na construção de um discurso simultaneamente de proximidade e ruptura com as práticas dos partidos comunistas tradicionais, bem como a sua importância na politização de algumas franjas da sociedade, com intensa expressão nos territórios estudantis. Em O um dividiu-se em dois, José Pacheco Pereira (JPP) procede à revisão atenta do conflito sino-soviético, anotando a constituição, um pouco por todo o mundo, de estruturas autónomas alinhadas com as teses de Pequim. A genealogia ideológica da inaugural manifestação portuguesa desse fenómeno – a FAP/CMLP, criada em 1964 – é também objecto de tratamento neste volume, que é apresentado como o primeiro de uma série dedicada a diferentes aspectos dos movimentos radicais de esquerda desses anos.

Como sugere JPP, apesar dos grupos pró-chineses terem adquirido características específicas de acordo com a realidade nacional em que se inseriam, o certo é que a sua matriz é directamente devedora do questionamento chinês e albanês da tese da «coexistência pacífica» defendida por Moscovo. Se, no final da década de cinquenta, os primeiros confrontos, ainda latentes, têm como pano de fundo a questão da cooperação militar e os obstáculos ao programa de armamento nuclear da China, rapidamente a crítica se centra nas acusações do abandono soviético da luta de classes mundial, por entre acusações cruzadas de «revisionismo» e «esquerdismo». Em final de 1963 a cisão estava consumada e a partir desta altura começam a proliferar partidos alinhados com as teses chinesas. (more…)

Comentários Desativados em A primeira vaga «maoísta»

A inveja do criador

Posted in Comentários by Miguel Cardina on Quinta-feira, 17-07-2008


Sabe-se que Flaubert manifestou um dia a vontade de escrever uma obra sem assunto. Uma obra que, desligada do real, fosse a confirmação da suprema independência da arte relativamente à vida. Para alguns, esta auto-suficiência da arte não significaria a legitimação do nonsense mas, pelo contrário, uma afirmação inequívoca da possibilidade do sentido. De um sentido que, «neste mundo abandonado pelos deuses», como disse Lukács, apenas teria revelação no interior da obra de arte. Numa madrugada televisiva, meses atrás, George Steiner contribuiu para esclarecer esta ideia. Lembrou uma frase de Flaubert, enquanto esperava que um cancro no estômago lhe retirasse os últimos nacos de vida: «Eu aqui a morrer como um cão e a puta da Madame Bovary a ter vida eterna». Ofuscado pela dor, o romancista voltou a exprimir a primazia do escrito em relação ao vivido. Ou, o que é ainda mais patético, a triste incapacidade dos austeros em pensar o sentido na sua relação com a finitude.

Miguel Cardina

Comentários Desativados em A inveja do criador

Dolores de Rubén

Posted in Comentários by Miguel Cardina on Sexta-feira, 20-06-2008


A 14 de Setembro de 1942, Rubén caía morto em Estalinegrado. Ruben era Rubén Ruiz Ibárruri, filho de Dolores Ibárruri, la Pasionaria, figura cimeira do Partido Comunista Espanhol (PCE) e presença recorrente no panteão mitográfico comunista do século XX.

O sacrifício de Rubén Ibárruri valeu-lhe ser condecorado, postumamente, pelas autoridades político-militares da ex-União Soviética. Em Espanha, o seu nome disseminou-se por toda uma nova geração de bebés anti-franquistas. Deste modo se prolongava o exemplo do combatente morto na luta contra o fascismo e o nazismo, o mesmo inimigo que agora dominava uma Espanha varada a estilete. Ao mesmo tempo – imagem importante no catolicismo mediterrânico – a multiplicação do nome permitia sacralizar a dor de uma mãe que ofereceu o filho ao braço longo da História. O filho-herói tornava Dolores num símbolo da capacidade ontológica de triunfar sob a adversidade.

Nos anos quarenta, uma série de poemas de intelectuais comunistas espanhóis ajudaram a moldar esta imagem de claras ressonâncias religiosas. Jorge Semprún recorda que se ocupou durante anos de um nunca acabado Canto a Dolores Ibárruri que esperava terminar desta forma: «Se abrió la puerta. Nos alzamos / De nuestras sillas. Fuiste estrechando manos, / sonreías. / Y entonces estalló la primavera.» Mais arrebatado, Rafael Alberti, sob o pseudónimo de Juan Panadero, chamou-lhe «encarnação das manhãs» e «guia clarividente do povo», outorgando a Dolores uma santidade claramente mariana: «madre buena, madre fuerte / madre que para la vida / le diste un hijo a la muerte».

Quando, na sequência da crítica de Krutchev ao estalinismo, se começou a fazer o levantamento dos casos de «culto da personalidade» nos diferentes partidos comunistas, a Pasionaria aparecia como um dos exemplos mais apontados. Se Estaline era o «pai dos povos» Dolores era a mãe. A mãe órfã, carregando no seu luto as mágoas de um povo agrilhoado. A mulher dignamente revoltada pelo ventre, lugar da mais íntima das verdades. E no meio dela, Rubén, produzindo pela ausência a reprodução dos filhos do povo.

Miguel Cardina

Comentários Desativados em Dolores de Rubén

Assobiando

Posted in Comentários by Miguel Cardina on Segunda-feira, 09-06-2008

Sempre que me falam daqueles modos quotidianos de exercer o poder, de erguer tracejados sobre o que é legítimo e o que é interdito, lembro-me de um conto do Mário Dionísio. Chama-se Assobiando à Vontade e conheço-o publicado no volume O Dia Cinzento e outros contos. A acção desenrola-se num eléctrico apinhado de gente à hora de ponta. A dada altura, surge uma interferência na moleza introspectiva dos corpos: um homem começa a assobiar. A multidão anónima entreolha-se – cúmplice, silenciosa, unida na mesma censura. Ninguém se deve fazer ver assim, tão subversivamente, parecem pensar. Mas o homem continua enleado na sua abstracção construída. Quando o eléctrico pára, só ele sai. O assobio, esse, permanece algures, no escárnio arrumadinho dos outros. É o momento, diz-nos Dionísio, em que tudo volta «pesadamente, a encher-se de silêncio e dignidade». Até que alguém venha de novo romper os cristais baços da sisudez.

Miguel Cardina

Comentários Desativados em Assobiando

Aproveitando o embalo do Maio (coda)

Posted in Comentários by Miguel Cardina on Sexta-feira, 30-05-2008

Um número do L’Esprit interessado em esbater o predomínio «franco-francês» das evocações de ’68.

Miguel Cardina

Comentários Desativados em Aproveitando o embalo do Maio (coda)

Aproveitando o embalo do «Maio» (IV)

Posted in Comentários, Notas by Miguel Cardina on Quinta-feira, 15-05-2008

O carácter plural do «Maio de 68» e a sua dívida notória ao «tempo quente» no qual se insere – tantas vezes funcionando como uma metáfora do ano ou da década – tem levado a leituras distintas sobre o acontecimento, por vezes incapazes de ver que o pomo da discórdia está simplesmente na mútua parcialidade dos dialogantes.

Por outro lado, também é certo que a memória tende a recatalogar o passado de acordo com aquilo que o presente nele reconhece. Reescrita essa que é, por si só, um interessante objecto de análise, e porventura um processo salutar, mas que nem sempre conduz a um conhecimento mais completo (e complexo) do acontecido.

Por ambas as razões, é útil deixar aqui os onze temas principais que, segundo Bertram Gordon, constituem as linhas mais comuns através das quais, retrospectivamente, o antigo activista soixante-huitard olha para os acontecimentos:

1. O entendimento do movimento francês como parte de um fenómeno mundial;
2. A luta por uma sociedade anti-hierárquica e igualitária;
3. A componente radical [“More red than Mao”, dizia o L’Express a 13 de Maio];
4. A ênfase no socialismo e no melhoramento das condições de vida dos trabalhadores;
5. Argumentos a favor de uma revolução cultural e de uma transformação libertária;
6. O atenção às temáticas emergentes do feminismo;
7. A ideia de “fracasso”;
8. A contestação ao funcionamento da universidade;
9. A repressão policial;
10. Os efeitos a longo prazo nos participantes;
11. A importância do Maio de 68 no século XX francês.

Bertram Gordon (2003), “The Eyes of the Marcher: Paris, May 1968 – Theory and its consequences”. In: De Groot, G. (org.), Student Protest. The Sixties and After. London e New York: Longman, pp.39-53.

Miguel Cardina

Comentários Desativados em Aproveitando o embalo do «Maio» (IV)

Aproveitando o embalo do «Maio» (III)

Posted in Comentários, Crítica, Recensões by Miguel Cardina on Segunda-feira, 05-05-2008

Anti-Disciplinary ProtestEm Anti-Disciplinary Protest. Sixties Radicalism and Postmodernism, a australiana Julie Stephens procurou mostrar a correspondência entre o radicalismo da década de sessenta e a pós-modernidade, rejeitando a leitura comum que descobre uma relação entre o fracasso do período e o desespero político posterior. Ao mesmo tempo, a autora propõe um modo alternativo de equacionar a herança da década, assente na ideia de que foi o êxito deste movimento, e não o seu insucesso, que abriu caminho ao acolhimento de algumas noções hoje dominantes sobre a política e o político. Por outras palavras, o desencantamento trazido pela pós-modernidade foi o resultado do reencantamento do político efectuado pela contracultura dos anos sessenta. A tese de Stephens é, no entanto, um pouco mais complexa, introduzindo uma nuance significativa: se, por um lado, a contracultura sixtie abriu caminho ao entendimento da política como impasse, por outro, ela não abdicara de um certo ideal difuso de emancipação, ainda que o tenha reconfigurado radicalmente a partir do carácter paródico das suas intervenções.

Para se entender os contornos desta ligação, é necessário ter presente a noção foucaultiana de «protesto anti-disciplinar», eixo conceptual através do qual se vai desdobrando o texto. Para Stephens, a radicalidade dos anos sessenta resulta da invenção de uma nova linguagem de protesto, marcada pela celebração da ambiguidade e por uma recusa da «disciplina do político» (p.23). Partindo de uma re-leitura da década que se concentra em algumas vertentes mais radicais da contracultura, geralmente desconsideradas, a autora revê as interpretações que descrevem os anos sessenta a partir de distinções rígidas como as efectuadas entre activistas e hippies ou radicalismo político e intervenção cultural.

Na sua opinião, a nova linguagem de protesto caracteriza-se precisamente por uma transgressão deliberada destas distinções. É isso que Stephens procura demonstrar recorrendo à evocação de acontecimentos como a tentativa de levitação do Pentágono, encenada em 1967, ao exame de práticas e discursos de grupos como os Yippies e os Diggers ou à análise do conceito de «livre» [free], entendido já não apenas como resgate dos constrangimentos sociais, económicos e políticos, à maneira da esquerda tradicional, mas também como uma espécie de «qualidade corpórea» de «ressonâncias metafísicas» (p.43). De modo semelhante, e ao mesmo tempo que se elaborava uma crítica mais convencional ao imperialismo, patente nas manifestações contra a guerra do Vietname ou no apoio a Cuba, desenvolviam-se narrativas sobre o Outro – colonizado, estrangeiro, diferente – por vezes bastante afastadas da realidade mas que permitiam estabelecer relações de atracção com o longínquo.

A maneira como o movimento defendia uma «ética do prazer», contraposta a uma «ética do trabalho», levou a que se difundisse uma imagem comum que o associa à mera exaltação do hedonismo, característica que o havia tornado extremamente dócil e, portanto, facilmente apropriável pela lógica de consumo do capitalismo tardio. Num sentido diferente, Stephens ressalva que o esforço de ultrapassar a linguagem e a racionalidade disciplinar aponta para uma clara consciência dos perigos de uma cooptação pelo sistema. Esta problemática está, aliás, omnipresente ao longo dos anos sessenta e produziu duas repostas diferenciadas. A primeira foi elaborada por grupos como os Yippies, através do desenvolvimento de uma linguagem baseada na paródia, no humor e na ironia que, longe de procurar anular os paradoxos, os amplificava intencionalmente, num registo anti-disciplinar e, por isso mesmo, desconcertante. A segunda foi proveniente de organizações ultra-militantes como o Weather Underground que, influenciados pelo terceiromundismo e pela crença na necessidade de uma revolução violenta, trocaram a guerrilha teatral pela guerrilha real. A autora utiliza precisamente o exemplo dos Weathermen para atestar a tensão entre uma política disciplinar e anti-disciplinar no seio do movimento: por um lado, consideravam-se uma vanguarda composta por células secretas prontas para a acção armada contra o Estado, com tudo o que isso tem de devedor à ordem, ao auto-controlo e ao sacrifício pessoal; por outro, encaravam a revolução como um jogo perigoso e usavam LSD como forma de «libertar os membros do grupo de qualquer tipo de controlo interno ou externo» (p. 92).

Se a estetização do político foi uma das vias que deu oportunidade à neutralização da contestação, foi ela também que permitiu uma visão criativa, anti-burocrática e anti-disciplinar do político. A teatralização do protesto conduziu à tendência pós-moderna de esbatimento da tensão entre crítica e alienação, entre superfície e profundidade, entre realidade e representação, ao mesmo tempo que renovou a forma e o conteúdo do activismo, integrando elementos como o humor e a criatividade e concedendo uma atenção especial à polifonia dos sujeitos.

Julie Stephens (1998), Anti-Disciplinary Protest. Sixties Radicalism and Postmodernism. Cambridge: Cambridge University Press. 170 pp. [ISBN 0-521-62976-4]

Miguel Cardina

Comentários Desativados em Aproveitando o embalo do «Maio» (III)

Aproveitando o embalo do «Maio» (II)

Posted in Comentários by Miguel Cardina on Segunda-feira, 28-04-2008

Os ecos do «Maio de 68» na imprensa portuguesa da época; a memória dos portugueses que o viveram (Vasco de Castro, Isabel Alves Costa) e dos outros que ainda não tinham idade para isso (José Maria Vieira Mendes, João Fiadeiro, Raquel Freire); uma interessante entrevista a François Cusset, autor de La décennie, le cauchemar des années 80, a propósito da transformação da «festa» em «pesadelo»; os rumores do tumulto na música e no cinema; uma conversa com Adolfo Mesquita Nunes (CDS/PP) e José Soeiro (BE) sobre a herança do «Maio»; um texto de José Medeiros Ferreira em redor de um incómodo bailado de Maurice Béjart, em Lisboa, em Junho de 1968; um curioso guia, uma extensa bibliografia e muito muito mais. Onde? Na Obscena. Todinha disponível.

Miguel Cardina

Comentários Desativados em Aproveitando o embalo do «Maio» (II)

Aproveitando o embalo do «Maio» (I)

Posted in Comentários, Recensões by Miguel Cardina on Segunda-feira, 28-04-2008

Os quarenta anos do «Maio de 68», que aí se aproximam, são uma óptima oportunidade para questionar o legado desse tempo e passar em revista alguns contributos sobre os «quentes anos sessenta». Aparentemente, o campo editorial português ainda não descobriu esse filão e são pouquíssimas as obras de autores estrangeiros sobre o período. Se é provável que apareça com alguma rapidez a tradução de Forget 68, de Daniel Cohn-Bendit, a disponibilização em português de obras como The Year of the Barricades, de David Caute, ou 1968. The Year that Rocked the World, de Mark Kurlansky, seriam porventura mais úteis para se compreender a explosão contestatária ocorrida nesse «ano-metáfora».

Esta última obra segue o percurso da erupção abundante de tumultos ocorridos durante esse ano de 1968, momento histórico marcado por um difuso «desejo de rebelião, uma sensação de recusa da ordem estabelecida, e um profundo desagrado perante todas as formas de autoritarismo» (p.17). Às revoltas estudantis, tema incontornável dos discursos sobre este período, Kurlansky dedica uma parte significativa do texto. Polónia, França, México, Checoslováquia e Estados Unidos da América são, neste particular, os territórios analisados. Não há, contudo, a intenção de ler ’68 tendo apenas como referência aquilo que nos recintos universitários ia sucedendo. Ao invés, Kurlansky procura efectuar um desenho das mudanças ocorridas nesse «momento de assombrosa modernidade» e de «ingenuidade quase pitoresca» (p.19) que, nos mais variados domínios rejeitava um mundo autoritário, herdado das cinzas da II Guerra Mundial.

É a realidade americana que serve de modelo de abordagem, ocupando, aliás, mais de metade dos capítulos. Se isto pode parecer, à primeira vista, uma fraqueza do texto, por outro, o desenho do clima político-geracional que atravessa este território permite dar conta de uma série de fenómenos que não deixaram de ter impacto noutros países. De facto, uma das razões da coincidência cronológica da rebeldia está precisamente na existência de uma cultura juvenil, partilhada por faixas crescentes das juventudes urbanas escolarizadas em diferentes latitudes, uma boa parte dela proveniente dos Estados Unidos da América, e que era agora difundida a larga escala pelos meios de comunicação de massa. Foi, aliás, precisamente em 1968 que o sociólogo canadiano Marshall McLuhan criou a expressão «aldeia global» para designar essa nova realidade.

A partir da edição espanhola: Mark Kurlansky (2005), 1968. El año que conmocionó al mundo. Tradução de Patrícia Antón. Barcelona: Destino. 557 pp. [ISBN: 84-233-3706-5]

Miguel Cardina

Comentários Desativados em Aproveitando o embalo do «Maio» (I)

Um temor (quase) infundado

Posted in Comentários by Miguel Cardina on Quarta-feira, 26-03-2008

salazarwarhol

As primeiras leituras esconjuram receios aparentemente fundados: os quatro volumes já conhecidos de Os Anos de Salazar mostram uma colecção graficamente apelativa (deliciosas, as infografias) e com textos que vão para além da mera função de enquadramento histórico. A crer pela amostra, no final será possível dispor de um abrangente e reflexivo tratamento da época, de onde se destaca uma secção final na qual, em cada volume, se cruzam dois olhares distintos sobre um tema genérico: neste último livro, por exemplo, Fernando Martins e Alberto Pena discutem o significado do apoio de Salazar a Franco. De saudar e coleccionar, portanto. Só que uma obra não é só uma obra. É ela e a sua circunstância. E é difícil esquecer o evidente mau gosto do cartaz de propaganda, com um Salazar pop ornamentado por uma estranha frase: «nem bom, nem mau. Incontornável» (o quê? Salazar? O Estado Novo? A obra publicitada? O anúncio publicitário?). Num tempo em que é mais fácil encontrar o nome do ditador numa vitrina de livraria do que uma bíblia num templo protestante, é expediente rasteiramente sensacionalista. Algo que me fez recuperar uma frase de Baudrillard, na qual se fala da rasura da memória por uma espécie de nomeação excessiva do passado: «há duas formas de esquecimento: ou a liquidação lenta ou violenta da memória ou a sua promoção espectacular, a passagem do espaço histórico para o espaço publicitário». Felizmente, temores infundados. Se os livros forem para ler, claro.

Miguel Cardina

Comentários Desativados em Um temor (quase) infundado

Dilatar o logos pela lei da paródia

Posted in Crítica by Miguel Cardina on Segunda-feira, 18-02-2008

guardadorretretes.gif«Algumas palavras ladrar-vos-ão-ão na cara», avisa Pedro Barbosa as «excremências» às quais dedica O Guardador de Retretes, cuja recentíssima 4.ª edição foi agora disponibilizada pela Afrontamento. Trinta anos passados sobre o texto original, os latidos podem ter perdido, com o tempo, alguma da corrosibilidade, mas o estilo – feito do jogo constante entre a inventividade subversiva e a simulação de uma oca grandiloquência académica – continua a deliciar.

Estávamos em 1976, com o ar ainda carregado de certezas rutilantes, quando foi publicado este (anti-)estudo sobre a sapiência escondida no anonimato das casas-de-banho. Nele se respigam e analisam desabafos, comentários, poemas, aforismos ou proclamações feitas naquele lugar-momento «que os bons costumes sempre escarneceram, vilipendiaram, cobriram de ignorância» e que tem a virtude de colocar todos os homens – a retretologia feminina é pouco abordada – em pé de igualdade.

Com o objectivo confesso de «provocar a indigestão intelectualista», Pedro Barbosa desenvolve um soberbo exercício da arte de mal-dizer, marcado pela pulsão iconoclasta que os ventos pós-1968 foram semeando. A filiação nesta ambiência soixante-huitard é notória, tanto na crítica mordaz à instituição universitária (na linha das intervenções-choque efectuadas pelos situacionistas), como na denúncia da cultura dominante, feita através do recurso a uma realidade discursiva marginal – a «portografia retretológica» – aqui trabalhada com evidentes, e por vezes sublimes, traços de ironia e humor.

Ao mesmo tempo que desfere um forte ataque ao agostiniano repúdio pelo corpo, o autor caricatura um tipo de racionalidade hermética e auto-referencial, utilizando para isso a descontextualização do estilo e a consequente activação do ridículo como arma. Daí que Pedro Barbosa defina o texto, nas primeiras linhas do prefácio a esta edição, como a «ficção de um ensaio». Ficção, portanto, e como tal apelando à transfiguração daquilo que é dito à superfície. Mas em tempos de (algum) pluralismo metodológico e de abertura a objectos científicos menos ortodoxos, não é possível ler este O Guardador de Retretes sem se ser atravessado por uma perplexidade: e se alguém academicamente levasse a ideia a sério?

Pedro Barbosa (2007), O Guardador de Retretes. Porto: Edições Afrontamento. 109 pp. Com posfácio de Manuel Frias Martins. 1.ª edição: 1976 [ISBN: 978-972-36-0920-2]

Miguel Cardina

Comentários Desativados em Dilatar o logos pela lei da paródia

A transição anunciada

Posted in Recensões by Miguel Cardina on Domingo, 10-02-2008

cuba.gif«A doença de Fidel anuncia uma outra época». É com esta frase que Janette Habel conclui o ensaio que abre Cuba: a transição, uma pequena colectânea de textos, acabada de editar pela Dinossauro, sobre o presente e o futuro da ilha caribenha. Provenientes da área da esquerda socialista radical, os autores afirmam a sua fidelidade de fundo ao projecto revolucionário cubano, ao mesmo tempo que apontam os problemas actuais da pequena ilha rebelde, situada a apenas 200 km do eterno inimigo yankee.

Num exercício pouco comum nesta área política, todos eles se afastam, de uma maneira ou de outra, da retórica desculpabilizadora que elege o bloqueio dos EUA como causa de todos os males. Narciso Isa Conde nomeia a corrupção – resultado da influência do modelo de burocracia de Estado proveniente do socialismo real – como o elemento mais corrosivo da actual sociedade cubana; James Petras e Robin Eastman-Abaya falam das distorções sociais provocadas pelo turismo, verdadeiro substituto da monocultura do açúcar e alavanca da recuperação económica dos anos noventa; Guillermo Almeyra aponta a escassa produtividade agrícola, o «sentimento de asfixia» provocado pela desinformação e pelo controlo oficial da comunicação, o «péssimo transporte» e o estado degradado das habitações.

Recusando a perspectiva de adopção do modelo democrático-liberal na ilha, os autores não deixam, ainda que com diferente intensidade, de contestar alguns aspectos da relação do regime com as liberdades individuais. Como acentua Janette Habel, a redefinição de um novo paradigma institucional terá necessariamente de articular as conquistas da revolução com os confortos materiais e com uma maior abertura cultural exigidas pelos cubanos. Neste país onde Fidel exerce(u) o poder exclusivo durante perto de meio século, e que sofre por isso de um «síndroma do patriarca», este é talvez um feliz destino improvável.

Aavv (2008), Cuba: a transição. Tradução de Ana Barradas. Lisboa: Edições Dinossauro. 127 pp. [ISBN: 978-972-8165-548-2]

Miguel Cardina

Comentários Desativados em A transição anunciada