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Longe de Camões, próximo de Montaigne

Posted in Comentários by Luís Quintais on Quinta-feira, 02-07-2009

«Se queríamos verdades caseiras melhor seria que tivéssemos ficado em casa.» (Clifford Geertz)

Gostaria, num primeiro momento, de vos levar a pensar Camões e Os Lusíadas de acordo com uma dada figuração do tempo que me parece ser aquela que lhe serve de contexto. Gostaria ainda, num segundo momento, de estabelecer um paralelo entre Camões e um seu contemporâneo, Michel de Montaigne (1533-1592). Esta comparação pretende mostrar como uma sensibilidade antropológica moderna estará porventura muito mais do lado de Montaigne do que de Camões.

tomb-camoes3-cc-brunurbCamões (c. 1524-1580) e Montaigne escrevem num período em que emerge uma recodificação do tempo da viagem e das suas narrativas. Dir-se-ia que é durante esse período que surge aquilo a que qualificamos como «antropológico» e que passa pelo reconhecimento da diferença e pela vontade de saber que se lhe encontra associada, ainda que em moldes muito pouco consonantes com aquilo que virá a acontecer já em pleno século XX com Bronislaw Malinowski na Europa e Franz Boas nos EUA.  Mas aquilo que talvez possamos dizer, em abono da verdade, é que não há no nosso épico, até onde posso perceber, um modo de escapar às encruzilhadas conceptuais, vocabulares e narrativas de um tempo que tendia a ver na alteridade representada por povos distantes no espaço um sinal de uma realidade mírifica a ser domesticada ou apropriada exemplarmente e a todo o custo. Lamento dizê-lo, mas se quisermos fazer remontar a sensibibilidade antropológica da qual nos reclamamos hoje a alguém desse período, o melhor é deslocarmos a nossa atenção para Michel de Montaigne.

Mas voltemos ao nosso ponto de partida. Ao tempo da viagem e da narrativa que é o do século XVI.

Para uma certa matriz judaico-cristã (ou tradição), o tempo foi concebido e celebrado como uma sequência de acontecimentos de uma narrativa sagrada, isto é, como o instrumento de uma sacralização da história. O caminho para a modernidade – onde podemos situar Camões e Montaigne -, de onde haveria de surgir a sensibilidade antropológica, dá-se com a secularização do tempo. Esta secularização, como nos mostrou Johannes Fabian em Time and the other (1983), foi o resultado de uma «generalização» e «universalização» do tempo judaico-cristão. O «tempo universal» foi estabelecido politicamente na Renascença como uma resposta aos desafios cognitivos lançados pelos Descobrimentos.

O que contribuiu de uma maneira notória para a transformação de um tempo sagrado num tempo secular foi aquilo a que Fabian denomina de «topos da viagem». Na tradição cristã, as passagens do Salvador e dos santos sobre a terra eram entendidas como os elementos constitutivos de uma história sagrada. O que se traduzia em viagens envoltas em desígnios espirituais: as cruzadas, as peregrinações e as missões são exemplos de tais demandas sagradas. Dir-se-ia que o tempo de Camões e de Montaigne é um momento de transição para outra coisa que se tornará muito clara no Iluminismo.

A sermos rigorosos só podemos dizer que a viagem se torna verdadeiramente fonte de conhecimento «filosófico» e secular no século XVIII – é pelo menos aí que essa explicitação se torna clara. Por exemplo, é em 1800 que se publica A observação dos povos selvagens de Jopseph Marie Degérando. Nele, escreve Degérando: «[O] filósofo viajante, navegando até aos confins da terra, está de facto a viajar no tempo; ele está a explorar o passado; cada passo que dá é a passagem de uma era» (cit. Fabian 1983: 7). Neste fragmento podemos pressentir, desde logo, a viagem entendida como um veículo de auto-descoberta e de afirmação de um tempo secular. É neste contexto, justamente, que se explicita de modo inequívoco a viagem entendida como uma prática secularizadora do espaço e como um modo de temporalização dotado de propósitos igualmente secularizadores.

Em Camões não encontramos senão um mundo onde acontecimentos míticos e acontecimentos históricos se parecem suceder em moldes muito mais próximos daquilo a que Fabian designa por «tempo da Salvação» (Fabian 1983: 13), isto é, acontecimentos míticos e históricos tidos como significativos no quadro de uma narrativa sagrada. Poderemos vê-lo através das relações temporais circunscritas pelo épico. Em grande medida, apesar das inflexões humanistas e universalistas (que tingem de hibridez esta quadro em que faço situar a minha avaliação), Camões faz apelo a um paradigma temporal judaico-cristão e medieval, isto é, ele desdobra a narrativa tendo em conta o tempo inclusivo e incorporativo da salvação em que a alteridade (o pagão ou infiel) é conceptualizada como um potencial candidato a essa salvação. montaigne

A conquista e a dominação (senão mesmo o terror) que, desde logo, nos surgem como tacitamente assumidas na dedicatória a D. Sebastião  – «Em vós os olhos tem o Mouro frio [mouros apavorados], Em quem vê seu exício [extermínio, ruína total, destruição] afigurado; Só com vos ver, bárbaro Gentio Mostra o pescoço ao jugo já inclinado (I. v. 16)» – faziam-se suportar, como sabemos, numa ideologia da conversão à qual Camões não era alheio. Lembremo-nos apenas do mito do Preste João em que os exploradores se propunham «sitiar» o mundo  pagão de modo a confiná-lo aos seus domínios espaciais e simbólicos. Este mito, como refere Fabian (1983: 170n24), terá sido usado pelo Infante D. Henrique para justificar uma empresa destinada a flanquear o Islão através da circum-navegação de África.  Trata-se, em grande medida, de uma interpretação teológica do mundo (as inflexões humanistas e as declinações mitológicas não o desmentem, ainda que se nos afigurem, por vezes, insistentes com essa grande narrativa teológica) a que podemos encontrar em Os Lusíadas.

Tudo isto tem, também, uma inscrição no espaço. O centro desta geografia é Lisboa, a nova Roma: «Via estar todo o Céu determinado De fazer de Lisboa nova Roma […]» (VI, 7). Portugal é o reino dos «Cristãos atrevimentos» (VII, 14), ou como escreve ainda o poeta: «Vós Portugueses, poucos quanto fortes, Que o fraco poder vosso não pesais; Vós, que, à custa de vossas várias mortes, A lei da vida Eterna dilatais: Assim do Céu deitadas são as sortes Que vós, por muito poucos que sejais, Muito façais na santa Cristandade. Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!» (VII, 3).

Ou seja, é esta ideologia da conversão e os seus pressupostos temporalizadores e espacializadores que ressaltam na épica. Não encontramos aí verdadeiramente o tempo secular (universal e generalizador) em que se abastece uma imagem de uma natureza humana comum que irá ser pedra de toque à sensibilidade antropológica moderna, e na qual a viagem será o topos de uma aventura de outro tipo: uma demanda pelo conhecimento e pelo auto-conhecimento suportada num tempo secular tomado como variável independente dos acontecimentos assinalados.

A antropologia moderna é, neste sentido, uma empresa que, tal como já assinalei, exigiu uma outra matriz temporal em que um sistema cartesiano de coordenadas espácio-temporais veio permitir ao cientista organizar uma multiplicidade de dados não significativos (sob o ponto de vista de uma cosmologia sagrada), ou seja, situados num «tempo neutral». De outro modo, a antropologia moderna fez reclamar para si algo que só se encontra plenamente formado no Iluminismo: a ideia de um tempo naturalizado, independente dos acontecimentos míticos ou históricos considerados significativos.

Parece-me também evidente, pelo que já citei, a total ausência de atributos relativistas (de suspensão das «nossas» – seja lá qual for a natureza deste «nós»-  crenças mais caras) em Camões. O relativismo que na antropologia faz supor uma interlocução real entre sujeitos (e que tem profundas implicações no tipo de conhecimento que codificamos como antropológico) está nos antípodas do que encontro em Os Lusíadas.

Se quisermos descobri-lo no tempo que foi o de Camões, e tal como disse logo de entrada, o melhor é deslocarmos a nossa atenção para Montaigne onde a ideia de viagem enquanto sede de conhecimento, auto-conhecimento, e, sobretudo, de interlocução se encontra magnificamente trabalhada no seu famoso ensaio «Dos Canibais».

Este ensaio reporta-se aos nativos das costas do Brasil onde os franceses, em querela com os portugueses, pretendiam implantar aquilo a que Montaigne designa por «França Antárctica». Todo o ensaio faz apelo a uma tensão entre duas visões do mundo – a europeia e a ameríndia – que encarnam, respectivamente, a civilização e a barbárie. O que é fascinante no ensaio é o modo como Montaigne mostra como estes dois termos podem ser reversíveis. A civilização ser barbárie e a barbárie civilização. Escreve Montaigne sobre os portugueses na sua relação com estes povos ameríndios:

 «tendo visto que os Portugueses […] submetiam-nos a uma espécie diferente de morte quando os capturavam (a qual consistia em enterrá-los até à cintura e crivar de setas a parte exposta do corpo, enforcando-os a seguir), eles pensaram que esses homens do outro mundo, que tinham disseminado o conhecimento de muitos vícios por todas as redondezas e que eram bastante melhor mestres que eles em toda a sorte de maldades, não praticavam sem razão de causa tal espécie de vingança, devendo ela ser mais terrível que a deles, pelo que começaram a abandonar o seu antigo processo para adoptar o novo. Não me entristece que relevemos o barbárico horror da maneira de agir deles, mas, isso sim, muito me contrista que, sendo bons juízes dos seus crimes, sejamos cegos aos nossos. Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo que um morto; em dilacerar, por meio de tormentos e suplícios, um corpo ainda capaz de sentir, fazê-lo assar a pouco e pouco, e fazê-lo morder e estraçalhar por cães e porcos (coisa que não somente lemos que se praticava na Antiguidade entre inimigos mas que raramente vimos ser feita entre vizinhos e concidadãos nossos, e, o que é pior, sob o pretexto de uma devoção piedosa e de religião) que grelhá-lo e comê-lo após ter morrido.» (Montaigne 1998: 139).

E adiante remata: «Podemos, pois, chamar bárbaros a esses povos face à razão mas não face a nós, que os ultrapassamos em toda a sorte de barbárie» (ibid.).

Os Ensaios foram publicados pela primeira vez no ano da morte do nosso épico. Nada se encontra mais longe de Camões na sua presciente e perturbadora estratégia de fazer vacilar todas as consabidas certezas europeias sobre a diferença cultural e as fronteiras e partições entre barbárie e civilização.

[Texto apresentado no encontro «Camões e a Antropologia»; Coimbra, Museu da Ciência, 24 de Junho de 2009.]

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