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Dicionário Crítico por Intermitência: Movimentos Poéticos (III)

Posted in Dicionário, Poesia by Pamplinas on Terça-feira, 15-09-2009

Aquísmo (Também designado «Poesia Aquática», fins dos anos 90, Peniche, Figueira da Foz, Arganil, Santa Comba Dão, Peso da Régua). Constituem uma falange das mais radicais da cena poética portuguesa dos nossos dias, definindo-se pela sua feroz recusa da Obra e, mais ainda, da representação. O «aquísmo» foi no seu caso o estádio final de um processo de gradual abandono do registo e fixação do texto, a que se seguiu enfim o repúdio de qualquer forma de permanência ou durabilidade do escrito, em favor de uma escrita válida em si e no acto de vir a si mesma. Em fases recuadas, optaram por escrever poemas no céu por meio de avionetas lançando fumo para esse efeito, ou por técnicas de fogo-preso para poemas efémeros, sobretudo desenvolvidas pelas falanges transmontana e minhota. Insatisfeitos com todas essas tentativas, chegaram por fim à escrita na água, em eventos que se foram tornando cada vez mais concorridos de público. O «poeta aquático» típico escreve na água com um longo estilete (um ramo de árvore descascado e afiado), num ritual de gestos de precisão cirúrgica e amplitude dançante que faz inevitavelmente pensar na técnica da caligrafia oriental. Certos poetas escrevem com tinta colorida, de modo a que por breves segundos a palavra seja reconhecível na água, enquanto outros, menos contemporizadores, usam o estilete nu, confiando ao golpear da água toda a duração que admitem para a sua escrita. Sobre eles escreveu Peggy Phelan um texto cujo entusiasmo revela ter enfim a teórica da performance como o não-representável encontrado o seu Graal estético-político: «A única vida da poesia aquática é (n)o presente. Inscrevendo esse regime temporal no seu meio, a poesia aquática existe para derrotar a fixidez, e a própria possibilidade, de qualquer representação. Nela, a obra dá-se a ver como puro sublime». Como seria inevitável, porém, as actividades escriturais dos poetas aquáticos começaram a ser registadas quer por cidadãos anónimos, quer pelos média, quer por estudiosos e académicos. Se esses registos tiveram a virtude de permitir reconstituir e registar, por recurso ao super slow motion, os poemas admiráveis dos maiores cultores do movimento, hoje registados no fundamental, e monumental, A Escrita da Água, org. Gustavo Rubim e Clara Rowland, Lisboa, Relógio d’Água, 2007 (tomo de 900 pp. com 2 dvd’s), a verdade é que tais registos diferem a escrita numa imagem fixa – um escrito – que atraiçoa o essencial dos propósitos estéticos e políticos do movimento. Em reacção a estes desenvolvimentos, e também em sintonia com o profundo ecologismo de autores que acreditam numa poesia «desnuda» e «não tecnologicamente mediada», os poetas aquístas passaram a realizar as suas actividades de escrita em sítios cada vez mais recônditos e em situações mais ou menos espontâneas, desistindo de anunciar previamente a sua realização. Resta dizer que o movimento se dividiu desde o início em dois grupos, os «marinhos» e os «fluviais», sendo que a poesia dos primeiros tende a uma turbulência antropológica, estética e política de que a dos segundos se afasta, praticando certas formas de serenidade escritural muito próximas do zen.

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