O Chekhov dos subúrbios
Num registo diverso, gostaria de destacar a publicação recente deste magnífico volume de contos (a que se anuncia um segundo volume) de John Cheever. Cheever nasceu a 27 de Maio de 1912 e faleceu a 18 de Junho de 1982. Trata-se de um dos grandes escritores norte-americanos de contos do século XX, só comparável a Sherwood Anderson, Hemingway, ou, mais recentemente, a Raymond Carver.
Cheever é por vezes apelidado como «o Chekhov dos subúrbios», e podemos encontrar neste volume reunidas algumas das suas histórias mais conhecidas, entre as quais se encontram «Adeus, meu irmão», «O rádio enorme», «O comboio das cinco e quarenta e oito» e «O marido do campo».
Convém talvez acrescentar que os contos reunidos de Cheever obtiveram o Prémio Pulitzer de 1979 para ficção. (Tradução segura de José Lima).
John Cheever. Contos completos I, Lisboa, Sextante. [ISBN: 978-989-8093-87-5]
Darwin rules
Nos 200 anos do nascimento de Charles Darwin (nascido a 12 de Fevereiro de 1809) e nos 150 da publicação da Origem das espécies (24 de Novembro de 1859), a Esfera do Caos, uma editora que tem vindo a publicar excelente literatura de divulgação científica em Portugal, lança-se num projecto pioneiro sobre a grande constelação darwiniana de que são testemunho estes dois volumes, estando prometidos mais dois, Vida: origem e evolução e Homem: origem e evolução. A série, aliás, chama-se «Fundamentos e desafios do Evolucionismo», e vem colmatar uma enorme lacuna no espaço intelectual português que, em geral, ignora a importância de Darwin para o entendimento do que será porventura o nosso presente. Através destas páginas (que articulam textos clássicos traduzidos pela primeira vez com textos especialmente encomendados para o efeito) poderá eventualmente situar-se Darwin no contexto da modernidade.
Darwin é, a par de Freud e de Nietzsche, um dos pensadores que melhor emblematiza o legado intelectual, senão mesmo cognitivo, que é hoje o nosso.
André Levy et. al. Evolução: história e argumentos. Lisboa, Esfera do Caos. [ISBN: 978-989-8025-55-5]
André Levy et al. Evolução: conceitos e debates. Lisboa, Esfera do Caos. [ISBN: 978-989-8025-75-3].
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Melville ou o sublime
Será talvez o grande paradigma da ficção americana à sombra tutelar do qual se acolhem escritores tão diversos como Faulkner, Don Dellilo, Thomas Pynchon, ou John Barth.
O que não conhecíamos em português, até onde julgo saber, era o Melville poeta.
Esta lacuna está agora preenchida após estas traduções/versões de Mário Avelar publicadas na Assírio & Alvim. Os poemas de Melville reiteram um tema que é um dos seus tópicos mais inquietantes: a indiferença da natureza aos desígnios do humano. Isto pode ser ilustrado pelo poema magnífico que é «The berg (a dream)» / «O Icebergue (o sonho)», que é também um belo exemplo do que poderá ser a «estética do sublime». Deixo aqui a primeira estrofe (p. 55):
Vi um barco de porte marcial
(de flâmulas ao vento, engalanado)
Como por mera loucura dirigindo-se
Contra um impassível icebergue,
Sem o perturbar, embora o enfatuado barco se afundasse.
O impacto imensos cubos de gelo cair fez,
Soturnos, toneladas esmagando o convés;
Foi essa avalanche, apenas essa –
Nenhum outro movimento, o naufrágio apenas.
Herman Melville. Poemas, Assírio & Alvim. 2009, trad. de Mário Avelar [ISBN 978-972-37-1357-2].
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O visível e o invisível em Paulo Valverde
[Paulo Valverde. Fez agora em Abril passado, mais precisamente no dia 4, dez anos sobre a morte daquele que terá sido porventura um dos mais significativos antropólogos portugueses de sempre. Dir-se-á que é fácil atingir essa meta, porque a concorrência sempre foi de pequena monta. Sim, sem dúvida. Mas para quem alguma vez assistiu a uma aula deste homem que morreu com 37 anos, ou para quem teve o prazer de ler as suas páginas hoje tão esquecidas, a sua celebração é incontornável. Nesse sentido, gostaria de deixar aqui um ensaio meu já com alguns anos que desenvolve algumas linhas de interpretação do que poderá ser a sua escrita e a sua estratégia de recodificação desse «texto» que é a «cultura». O ensaio faz remissões ao livro póstumo que inclui muitos dos seus trabalhos mais teóricos e uma parte que creio substancial dos seus diários e notas de campo. Serve também o presente post para chamar a atenção para esse livro que deverá estar, estou certo disso, a apodrecer, exemplares muitos, nalgum canto escuro de um armazém de refugos. Triste sorte para um prosador extraordinário cuja escrita terá pouquíssimos antecedentes entre nós, e que, no seu melhor, ombreia com páginas de Malinowski e de Leiris. Ah, é verdade, aí vai a referência: Paulo Valverde, Máscara, Mato e Morte. Textos para uma etnografia de São Tomé, Oeiras, Celta, 2000.].
Entre a pequena comunidade de antropólogos sociais portugueses, é reconhecida a enorme perda intelectual e afectiva (sobretudo para aqueles que com ele privaram de perto) que representou o falecimento prematuro de Paulo Valverde (1961-1999). Vítima de malária contraída em São Tomé, Paulo Valverde afirmar-se-á cada vez mais como uma espécie de personificação trágica e mítica da figura do antropólogo enquanto herói. Não no sentido lévi-straussiano do termo, isto é, enquanto herói civilizador capaz de resgatar o fogo sagrado de culturas cujo recorte elegíaco ou crepuscular se tornou forçosamente aparente durante o século XX. Mas antes como aquele que, compreendendo o quanto há de culturamente perverso nas modalidades salavacionistas mais ou menos declaradas mais ou menos conscientes da disciplina, se afadiga em traçar-lhe novos rumos não apenas metodológicos (Paulo Valverde era alguém que, comprometido com uma dada tradição metodológica, o fieldwork situado e localista, parecia cada vez mais incomodado com os seus limites) , mas também, e com especial ênfase, novos rumos analíticos. O heroísmo, a haver um, está na determinação e no seu risco (um risco que ele assumira e que pode ser qualificado igualmente pela intimidade cultural, sem par entre os antropólogos sociais portugueses das últimas décadas, que foi assegurando no terreno). Paulo Valverde acreditava na possibilidade da disciplina se reconstituir enquanto analítica das metanarrativas modernas, entre as quais se encontrariam, certamente, os projectos salvacionistas e politicamente correctos evidenciados por tantos dos seus contemporâneos, e, de forma particularmente indiossincrática e inquestionavelmente sedutora, demonstrava-o através dos seus textos, aulas, e inúmeros momentos de discussão informal de que poderam beneficiar todos aqueles que foram seus alunos e colegas. (more…)
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Edgar Allan Poe sem intuição e sem acaso
Poe é um dos portais da modernidade literária. Sem ele, outra seria a nossa percepção do que foram/são Baudelaire, Mallarmé, Eliot, Pessoa, etc. Sem ele, não teríamos muito provavelmente, o drama da emoção e da razão tal como o viveram e expressaram os modernos.
Nos duzentos anos sobre o seu nascimento (Poe nasceu a 19 de Janeiro de 1809 e faleceu a 7 de Outubro de 1849), o mais traduzido dos autores americanos em Portugal, tem nesta Obra Poética Completa uma das suas homenagens mais significaticas.
Poe foi talvez um dos primeiros poetas a explicitar uma poesia por vir, marcada pelos desígnios maiores da ciência. A diluição dos «enigmas» da natureza e do humano, a convivência com um mundo «desencantado», a urgência de recodificação através das lições do gelo que a ciência comportava e comporta inexorovelmente: tudo temas que a poesia de Poe articula de um modo constante, ao mesmo tempo que pretende aceder a um patamar de reinvenção formal da escrita onde se apela a uma exigência de «método» (que o célebre ensaio «A Filosofia da Composição» enuncia).
Esta tensão entre o desencantamento do mundo e a sua requalificação pode ser ilustrada através do poema «Soneto – À Ciência»: «Ciência, ó filha do Tempo Velho! / Que, de olhos coruscantes, tudo espreitas, / Por que rasgas ao poeta o amplo peito, / Abutre de asa rude que se engelha? Como te pode amar, crer-te avisada, / Que o não deixaste andar, errante, ao vento, / Buscando as jóias que há no firmamento / Ainda que o singrasse de asa ousada? / Diana escorraçaste da quadriga, / Do bosque a Hamadríade (fugindo / Ela a abrigar-se em estrela mais amiga), / À Náiade tiraste a onda cava, / Ao elfo o prado, e a mim o tamarindo / Em cuja sombra eu no Verão sonhava.» (OPC, p. 80).
A edição é primorosa, com uma excelente tradução, introdução e notas de Margarida Vale de Gato (uma tradutora que merece referência pela qualidade e quantidade do seu trabalho de tradutora), e com notáveis ilustrações de Filpe Abranches.
Acresce ainda o já referido ensaio “A Filosofia da Composição” (pp. 273-288), onde Poe explicita a génese de «The Raven» (ler p. 277), e nos revela a intenção de uma poesia sem «acaso» e sem «intuição».
É pena que a edição não seja bilingue; porém é compreensível: tal projecto iria seguramente encarecer uma edição desta exigência gráfica.
Edgar Allen Poe, Obra Poética Completa. Tinta-da-China, 2009 [ISBN 978-972-8955-93-9].
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Manuel António Pina: Requiem por um sonho
Já foi nosso convidado e, num certo sentido, é-o sempre. Manuel António Pina, um dos cronistas de leitura obrigatória deste país, escreveu hoje um texto, no seu JN, que nos atrevemos a transcrever aqui na íntegra. Por razões de, digamos, solidariedade: com uma certa ideia de livro e com um certo ideal de «intervenção» na área cultural. Tudo isso que sofre mais um sério revés com a falência da Campo das Letras, uma editora que desde a primeira hora colaborou, de modo exemplar, com Os Livros Ardem Mal. Permita-nos, Manuel António, que façamos nossas, sem a reserva de sequer uma vírgula, as suas palavras.
No Livro Sexto da Eneida diz-se que os sonhos nos chegam por duas distintas portas, uma de marfim, a dos sonhos fantasiosos, e outra de corno, a dos sonhos proféticos. Os 15 anos de vida da editora Campo das Letras, cujo fim foi agora anunciado, foram uma permanente disputa entre um sonho desmesurado e fantasioso, o de que é possível uma editora sobreviver em Portugal publicando literatura sem ter que ser um mero entreposto de venda de livros, e a profecia de que um sonho desses acabaria mal.
A porta que Jorge Araújo, fundador da Campo das Letras, vê fechar-se sobre o seu sonho fecha-nos a todos, os que acreditam que um livro é mais do que uma mercadoria e que a literatura é mais do que um negócio, no pior dos pesadelos. A verdade é que o dolente reino português de hoje não merece homens como Jorge Araújo, gente que, como escreve Sebastião da Gama, pelo sonho é que vai. Se em vez de se ter gasto, e às suas economias, a oferecer-nos milhar e meio de títulos de poesia, ficção e teatro, tivesse investido em títulos bolsistas, Jorge Araújo estaria hoje mais rico. E nós estaríamos mais pobres.
Manuel António Pina
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