Os Livros Ardem Mal

Um preto, aos 80

Posted in Comentários, Fotografia, Música by Osvaldo Manuel Silvestre on Quarta-feira, 22-07-2009

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Ornette Coleman, na Wire de Junho. Na capa e a ilustrar a entrevista, fotos admiráveis de Mark Mahaney. Agora que o ícone global, Michael Jackson, morreu, estas imagens, com antecedência de um mês, dão-nos a versão recalcitrante do preto não reciclável. São, de um estranho modo, uma pedagogia da memória – a memória de algo como The Souls of Black Folk -, num momento em que a ascensão de Obama poderia sugerir a inutilidade, ou pelo menos a dispensabilidade, desta. A Wire, sempre esperta, chamou a este Ornette aos 80, Empire State Human. Lamento, mas não confere com as fotos. Nelas, desde a extraordinária foto da capa, em que o transcendente parece ser objecto de um olhar suspeitoso (por efeito de um chapéu que obriga a contemplá-lo de soslaio), Ornette parece antes distantemente encenar a longa teoria de máscaras do negro americano, desde o Louis Armstrong de rasgado sorriso alvo e lenço na mão ao interminável processo de recodificação de Jackson e, por fim, à «normalidade» de Obama, a mais difícil das recodificações. Ornette repropõe uma figura clownesca, alguém que joga com um chapéu de cabedal amolgado o difícil jogo céptico de quem não esquece a máscara que a ideologia sempre colou ao «preto americano»: o da sua irrelevância, apenas redimível por um efeito de simpatia, qual o que se sente por um velhote frágil posando com (ou por meio de) um chapéu. Um discreto, mas poderoso, efeito Tati, digamos. Quando irrompeu na cena jazz, sobretudo após Free Jazz, Ornette foi convidado para tocar em pelo menos um congresso como representante do «feio» (o saxofone de plástico ajudava…). Ornete não fazia grandes proclamações: tocava, sim, a sua música «feia», rodeado dos grandes músicos que o acompanhavam. Muitas décadas depois, e após ter operado o seu peculiar revisionismo sobre o «jazz», e mesmo sobre o «free», com o seu sistema «harmolódico», este Ornette parece desconfiar: do progresso, da redenção, da recodificação ou reciclagem do passado. A forma como opera é, algo paradoxalmente, por reciclagem: de uma iconografia do passado, de uma alma que perdura (a do preto americano) para lá de todas as recodificações. Mostrando – com uma muito especial autoridade, é caso para dizer – que as revoluções demoram muito tempo a chegar – e mais ainda a ter efeitos.

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30 anos depois, os Xutos ainda (nos) tocam? (II)

Posted in Livros, Música, Recensões by Osvaldo Manuel Silvestre on Sexta-feira, 29-05-2009

Significa isto que é difícil fazer a crítica de uma banda tão «representativa» sem, de algum modo, incorrer na crítica de toda a situação por ela representada. O livro de ACF informa-nos, por exemplo, de que no dia 8 de Maio de 1987, data do lendário concerto dos Xutos no pavilhão de Os Belenenses, a banda recebeu um telegrama de Rui Reininho que rezava apenas «Avante camaradas». Não custa ver neste incitamento irónico o reconhecimento não irónico de que muito do futuro do rock em Portugal passava, como depois se tornou visível, por esse concerto, ou por tudo o que nele tornou os Xutos maiores do que eles mesmos, conduzindo-os àquele lugar, aquém e além da crítica, que é próprio dos mitos (ou, o que é o mesmo na modernidade, das locomotivas).

O que faz também do livro de ACF um acontecimento no panorama pobre da nossa escrita rock é o facto de a autora ter intuído, com rara penetração, o predomínio da voz sobre a letra na cultura rock (ou na auto-representação que esta de si mesma produz). O livro, seguindo uma tradição forte no campo da escrita de livros de percurso de bandas rock, é construído como uma montagem de depoimentos, graficamente assinalados pelo itálico que se segue ao nome do depoente. O espaço preenchido pelos caracteres em redondo, atribuídos à (voz) escrita da autora, reduz-se significativamente e o leitor é tomado de assalto por toda a ilusão de presença cara à física e metafísica do rock – a performance pura e plena («autêntica»), sem qualquer mediação, isto é, o triunfo do corpo suado e, tantas vezes, tendendo ao nu – ou, noutro vocabulário teórico, mais aristotélico, pelo predomínio esmagador do showing sobre o telling, tão típico de formas de literatura de massas como o romance policial ou a FC, em que o diálogo abafa a narração e, mais ainda, a descrição, acelerando a leitura até à vertigem.

O que daqui resulta é, tecnicamente, «história oral», e, musicalmente, escrita rock, no sentido em que esta vive da produção de uma série de efeitos de auto-anulação da sua dimensão escritural em favor da manifestação forte da voz, uma voz que seria, idealmente, sem filtro e sem excessos de «produção». Vozes «cruas», como determinou, para as guitarras dos Xutos no seu primeiro disco, o radialista António Sérgio, promovido a produtor.

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30 anos depois, os Xutos ainda (nos) tocam? (I)

Posted in Livros, Música, Recensões by Osvaldo Manuel Silvestre on Quarta-feira, 27-05-2009

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«Os Xutos são o povo. Os Xutos são as pessoas» (p. 254); «Xutos é Portugal» (p. 285); «Os Xutos tocam-nos» (p. 249): três frases, ou três máximas, reveladoras do impacto dos Xutos & Pontapés, entre as várias contidas no livro de Ana Cristina Ferrão (ACF), Conta-me Histórias. Xutos & Pontapés, recentemente reeditado, sendo apenas uma delas, a última, da lavra da autora.

Mas, 30 anos depois do brevíssimo concerto do dia 19 de Janeiro de 1979 nos Alunos de Apolo pela banda então chamada Xutos & Pontapés Rock’n’Roll Band, como significam hoje estas máximas? Desde logo, como significa, como funciona hoje, o livro de ACF, 18 anos após a sua 1ª edição? Para quem, como o autor desta resenha, entende que os Xutos duraram 10 anos – os anos dos grandes temas que são «Sémen», «Esquadrão da Morte», «1º de Agosto», «Barcos Gregos», «Homem do Leme», «Remar, Remar», «Não sou o único», «N’América» e alguns mais -, o livro de 1991 saiu na altura certa, criando aliás uma possível genealogia local para o «livro sobre banda rock» que não teve, como é manifesto, descendência à altura. Olhando aliás para trás desde este ano de 2009, o que nos fica do género é escasso e algo inconsequente. Penso nos dois casos mais óbvios – o livro de Luís Maio sobre os GNR, de 1989, e o de Vítor Junqueira sobre os Mão Morta, de 2004 -, muito diferentes entre si e que contudo revelam a mesma dificuldade: não conseguem gerir os problemas que os objectos que tratam lhes colocam, ao contrário do sucedido no livro de ACF na edição de 1991.

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Sobre o prestígio de uma ideia

Posted in Livros, Música, Recensões by Osvaldo Manuel Silvestre on Domingo, 29-03-2009

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António Pinho Vargas começou como pianista, entre o jazz de inspiração free dos anos 60-70, o jazz-rock do mesmo período, e algumas colaborações pontuais na cena pop-rock. Depois evoluiu para uma formação e uma versão de câmara do jazz moderno, algo próxima da chamada sonoridade ECM, reconhecível pela riqueza melódica, singeleza harmónica (neste livro, o autor explica a sua recusa, nessa fase, das «extensões harmónicas» típicas do jazz) e contenção improvisativa, tendo gravado uma série de discos com bom acolhimento público, vários deles premiados. A certa altura, passou para o campo da «música contemporânea», na qual foi praticando e defendendo posições «eclécticas», mas sempre com uma referência matricial à questão da atonalidade. Compôs, entre várias peças, algumas delas editadas em disco, três óperas, uma ainda muito recente e com excelente acolhimento crítico. Este livro, que é o segundo do autor, que entretanto se tornou também professor e assessor nas mais importantes instituições da vida musical do país, membro da direcção da OrchestrUtopica e, ultimamente, investigador do CES, reúne 5 conferências realizadas na Culturgest em 2005, explicadas por um subtítulo muito justo: «Especulações críticas sobre a História da Música do século XX».

O registo do volume é oral e digressivo, não raro humorado e irónico, o tom é didáctico e muito apoiado em textos e excertos de peças musicais, o desenvolvimento dos argumentos e a composição das conferências são mais nítidos e performativos nas conferências iniciais e vão-se tornando algo mais derivativos nas finais, talvez por ao longo do livro ir crescendo uma certa crispação pessimista em torno do legado da música do século XX e da sua situação actual. Não surpreende, uma vez que a música do Século XX – a Nova Música de que falava o filósofo e musicólogo alemão Adorno – é uma questão em aberto e em ferida: sem comunicação, sem público, sem um futuro que se possa rever no essencial da sua matriz e do seu legado, condenada, enfim, a ser eternamente Nova, ou seja, nunca efectivamente popular. De Adorno, Pinho Vargas refere, logo a abrir, A Filosofia da Nova Música e a sua encenação do combate entre Schoenberg, ou o progresso, e Stravinsky, ou a restauração (a reacção, melhor dito). Mas não resiste a citar, logo na p. 20, a frase inicial da sua Teoria Estética, já postumamente editada em 1970, que também não resisto a retomar: «Tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente, tanto em si mesma como na sua relação ao todo, e até mesmo o seu direito à existência». É caso para dizer que, assim como a Filosofia da Nova Música é de facto a grande teoria estética do modernismo em todas as artes, a frase que abre a Teoria Estética aplica-se à música antes e acima de todas as outras artes, pois em nenhuma delas as consequências do modernismo foram tão radicais e, aparentemente, irreversíveis ou, se se preferir, danosas – desde logo porque tais consequências parecem funcionar, como que por necessidade, numa teleonomia que se diria inquebrável.

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Lux Interior: Alive & Kicking

Posted in Música by OLAMblogue on Quinta-feira, 05-02-2009

Os média informam que Lux Interior, vocalista emérito dos Cramps, morreu.  Ou, como se diz no mundo anglo, R.I.P. As nossas fontes, porém, garantem-nos que as notícias da morte de L.I. são prematuras, tanto como a sugestão de que Lux possa algum dia «repousar em paz» é pelo menos absurda (luz interior sempre ele teve em excesso…). A verdade, que revelamos apenas aos nossos fiéis mais próximos, e mediante password restritiva, é que Lux Interior se encontra algures, numa jam session com Elvis, Syd Barrett, Johnny Cash e Joe Strummer. «Alegadamente», esse algures é o Napa State Mental Hospital, onde Lux & muchachos tocaram para a lenda há mais de 30 anos.

De facto, que melhor local para uma encenação punkabilly do Juízo Final?

Hey, I’m on my way, on a journey outta this world…

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