O sentido é revisitação ou uma selva dentro da selva ou por que é que o cérebro não explica a arte ou só a explica parcialmente
Um dos aspectos mais interessantes das chamadas neurociências cognitivas contemporâneas prende-se com a relevância que aí assume uma imagem do cérebro enquanto estrutura dotada de uma complexidade e de uma plasticidade extraordinárias.
A arte pode ser pensada frutuosamente como um aspecto da cognição humana, isto é, como algo que resulta de um processo multiforme de aquisição de conhecimento, e, nesse sentido, como algo que radica em processos que poderíamos descrever como mentais.
O problema começa talvez aqui.
A minha tese é a de que sem cérebro não há mente (o que é, desde Thomas Willis e da «neurocentric age», uma evidência incontestável), mas que a mente não é o cérebro; penso, aliás, que não há consensos alargados sobre aquilo que a mente é, e de que forma é que podemos passar das ontologias na terceira pessoa para as ontologias na primeira pessoa, ou, de outro modo, da objectividade para a subjectividade, e vice versa. Estamos na fronteira, e toda a gente sabe como são as fronteiras que tornam a ciência fascinante, difícil, ou, de outro modo, de exercício quase improvável. Somos confrontados com aquilo que não sabemos, ou, eventualmente, com os limites do que sabemos.
De acordo com uma leitura wittgensteiniana do que se encontra aqui em causa, talvez estejamos perante um problema de linguagem ao dizermos que são os cérebros que pensam.
Wittgenstein ensinou-nos, como nenhum outro, a suspeitar da linguagem. As palavras podem trair-nos e levar-nos a olhar para certos problemas como problemas reais, quando eles não passam de puzzles que devem ser desmontados. Assim, se os estômagos não comem também é muito improvável que os cérebros pensem, ainda que, e volto a enfatizar este ponto, não possa haver pensamento (e todos os seus avatares: consciência, intenção, memória, etc.) sem cérebro.
A arte, neste sentido, sendo um produto do pensamento humano (e dessa infatigável exigência de atribuição de sentido que lhe subjaz), não pode ser «reduzida», no sentido forte do termo, às neuro-anatomias e neurofisiologias, por muitas e boas razões. O reconhecimento disto não é sequer algo que provém das designadas «ciências moles» (esse lugar onde flagrantemente me situo), mas antes das «ciências duras» e, em particular, das neurociências cognitivas e da neurobiologia, a «capela Sistina da ciência», para usar a magnífica expressão de JG Ballard em «Project for a Glossary of the Twentieth Century» (Jonathan Crary e Sanford Kwinter [ed.] Incorporations, Nova Iorque, Zone Books, p. 277).
Quaisquer mecanismos cognitivos radicam em apreciações contextuais que dependem não apenas da estrutura física chamada cérebro; isto é um dado que pode ser tomado em linha de conta quando lemos, por exemplo, António Damásio ou Gerald Edelman, só para falar de duas figuras destacadíssimas da neurobiologia contemporânea. Acresce ainda o reconhecimento do papel das emoções na cognição humana, o que faz supor também, e de forma muito específica, a recursividade ou relação dinâmica que se instala entre cérebro e corpo.
Dir-se-ia assim que pensar o que é a «arte» e pensar os mecanismos cognitivos em que a mesma se fundamenta, exige que consideremos qualquer coisa que ultrapasse (ou que relativize seriamente) a dicotomia inato/adquirido, ou, em inglês no original, nature/nurture divide. A necessidade e a urgência desta resposta, podemos encontrá-la, justamente, em Gerald Edelman.
É em Edelman que encontramos uma ponte entre a neurobiologia, a psicologia, e a sociologia, que nos poderá fazer integrar eficazmente a cognição e a afecção.
Parece-me, nesse sentido, decisivo fazer destacar o seguinte: uma das mais importantes descobertas das ciências do cérebro é a extrema diversidade de potenciais padrões de disparos neuronais no cérebro. Os humanos possuem aproximadamente trinta biliões de células nervosas, um milhão de biliões de conexões, sendo o número de padrões potenciais de disparo maior que o número de partículas em todo o universo conhecido! Segundo Edelman (ver, e.g., o seu Bright Air, Brilliant Fire, Londres, Penguin, 1994 [1992], ou Second Nature: Brain Science and Human Knowledge, New Haven e Londres, Yale U.P.), a aprendizagem é um processo de «selecção natural» que ocorre num contexto em que o número de padrões possíveis é virtualmente infinito. A sequência de desenvolvimento – a ontogénese – é o resultado quer do reforço de certos padrões de disparo através da experiência quer do enfraquecimento de outros padrões. A frase de Edelman enuncia-o muito claramente: «neurónios que disparam em conjunto ligam-se em conjunto»; ou, no original, «neurons that fire together wire together» (Edelman, 2006: 28).
O envolvimento do organismo com o meio não é afinal um processo de instrução, como crêem os cognitivistas, mas um processo darwiniano de selecção natural. Não vou entrar aqui em detalhes sobre o modo como isto é explicado, mas gostaria de reter aqui uma das lições maiores da neurobiologia de Edelman. As representações (a sua transmissão e relevância cognitiva) dependem integralmente da interacção entre o meio e os organismos. Dado que os aspectos «mais estimulantes» do meio humano são eminentemente sociais, e a arte é, tal como a ciência, um domínio onde toda a cognição é social (em boa verdade, não podemos sequer, e de acordo com Edelman, reivindicar quaisquer aspectos da cognição humana que não sejam sociais), isto quererá dizer também que a complexidade não pode ser eliminada – a complexidade neuronal e selectiva e a complexidade ecológica em simultâneo – em favor de uma explicação de recorte reducionista que tenda a contornar a multidimensionalidade da cognição humana onde o neurológico e o social se fazem inscrever mutuamente.
Edelman admite, por exemplo, que tal como no plano neuronal o que está em jogo é um processo de aprendizagem que se funda na selecção e não na instrução, também na vida social toda a aprendizagem é, ela própria, um processo de selecção e não de instrução. Isto quer dizer que não é apenas a vida social que é uma selva; a própria vida do cérebro é também uma selva. Uma selva dentro de uma selva, se quisermos.
Edelman vem mostrar que mesmo que nos atenhamos tão-só ao funcionamento do cérebro, seguramente ficaremos desconcertados com a extrema indeterminação dos estados neuronais. Numa magnífica entrevista publicada no jornal Públicoem 1991 (e que constituiu uma verdadeira epifania em termos pessoais para mim, um então jovem estudante de 23 anos), Edelman, numa recusa frontal da associação entre o sistema cérebro-mente e um computador, diz-nos o seguinte:
Acontecem muitas coisas cujo sentido não percebemos. Querem um exemplo? Num restaurante de Nova Iorque, há um cientista insuportável sentado a uma mesa. O cientista acabou de comer uma sandes de fiambre, mas estava tão preocupado com a entrevista que dois jornalistas lhe iam fazer daí a meia hora, que se foi embora sem pagar. Uma das empregadas diz à outra: «A sandes de fiambre saiu sem pagar». Isto chama-se polissemia. Contrariamente à sinonímia, que é o facto de várias palavras terem o mesmo significado, a polissemia é o facto de uma mesma palavra poder ter muitos significados diferentes – não necessariamente relacionados uns com os outros – que variam conforme o contexto em que a palavra é utilizada. […] E essa é a propriedade mais apaixonante dos sistemas biológicos – o facto de nada ser determinado «a priori». Mesmo que eu conhecesse todos os genes de um recém-nascido, não conseguiria saber qual vai ser o resultado. Os genes apenas constituem um conjunto de restrições, mas ninguém é capaz de predizer quais são os acontecimentos sobre os quais essas restrições irão actuar. (Público, Fim de semana, sexta-feira, 15 de Novembro de 1991, p. 15; ênfase minha).
E à observação dos entrevistadores de que o problema talvez resida na nossa incapacidade em ler toda a informação, Edelman responde:
Não. Lamento, mas não é isso. Somos justamente capazes de ler a informação toda. Essa é a grande tragédia da biologia, visto que levará muitos cientistas a cometerem muitos erros e a desperdiçarem muito dinheiro nos próximos dez anos. Podemos ler a informação toda, mas o problema é que haverá alturas em que cometeremos erros de leitura do ADN e nem sequer repararemos, porque não teremos formulado as perguntas importantes. É esse o problema: nunca haveremos de saber tudo, porque o conhecimento é uma coisa susceptível de ser corrigida, de mudar, porque podem acontecer coisas novas. (id.; ênfase minha)
E à pergunta «E o que é que acontece no cérebro, perante esse contexto em permanente mudança?», diz:
O cérebro também muda. O cérebro é muito mais parecido com uma selva – ou para dizer as coisas mais poeticamente, com um Jardim da Evolução – do que com uma central telefónica. O nosso cérebro, neste preciso instante, está a largar pequenas baforadas de óxido nítrico. O óxido nítrico é um gás extremamente tóxico – tão tóxico que uma parte num milhão bastaria para matar toda a gente que mora neste bairro. No entanto, o nosso cérebro fabrica-o e, quando o liberta, isso faz mudar, na vizinhança da zona atingida, a probabilidade de certas coisas acontecerem. E não posso dizer quais são exactamente essas coisas em cada caso individual, porque não conheço completamente a história de cada indivíduo. Apenas posso dar uma resposta grosseira: o cérebro faz comparações, selecciona coisas e vai mudando. É como se fosse uma selva e o ácido nítrico o grito de um macaco, ou um pássaro que desata a voar. E a ordem que reina na floresta vai mudando conforme estes acontecimentos. § O que é que tudo isso significa? Não sei, não sou um filósofo. Só sei que o processo resultante é mais parecido com a ordem que reina entre as espécies animais na Natureza do que com a lógica de um computador. Basta pensar nisso com um mínimo de honestidade: cada um de nós sabe que tem qualquer coisa de diferente dos outros, cada um de nós sabe que a sua história é única no mundo e que essa é a coisa mais importante que possuímos (id.).
Gilles Deleuze, o filósofo da complexidade que Edelman diz não ser, responderia a isto defendendo talvez que aquilo que está aqui em causa é a constante repetição da diferença, e que toda a cognição se sustenta afinal nesta permanente interacção – «um agenciamento», para usar a expressão famosa de Deleuze – entre os sistemas dinâmicos mente-cérebro-corpo e a ecologia social em que evoluem os organismos.
Assim, quando pensamos na arte é, justamente, o facto dela ser integralmente contextual, social, histórica e significativa, o que nos interpela. O que quererá dizer, em suma, que estamos, mais uma vez, na selva, e que é da selva que temos de partir para poder perceber o que é a cognição e o que é a arte.
A sermos rigorosos descobrimos que não podemos saber o sentido da «arte» previamente à sua recomposição ou reconstituição ou revisitação história; que não há um sentido intrínseco nas criações humanas, e que é por isso que, ainda que não possamos mudar o passado, podemos continuar a reinterpretá-lo, a remodelá-lo, a reconhecê-lo. Em grande medida, o sentido, sem o qual não há arte, nem ciência, nem qualquer criação humana, é revisitação. As coisas mudam, nós mudamos com elas. Repetição da diferença, mais uma vez.
A forma como as palavras mudam perante os contextos que se nos oferecem tem, aliás, uma inscrição decisiva no sentido que damos à palavra «arte».
Quando em 1917 Duchamp propôs a sua célebre «Fonte» à Sociedade dos Artistas Independentes sediada em Nova Iorque, que tinha por regra aceitar todas as peças submetidas, viu a Fonte ser recusada com o argumento de que não era arte, o que provocou um pandemónio entre os Dadaístas, levando Duchamp a abandonar a Sociedade. A arte e o que a define como arte muda e mudará de acordo com apreciações contextuais em que estão implicados processos cognitivos que não podem ser reduzidos a mecanismos neuronais, e mesmo quando nos debruçamos sobre tais mecanismos verificamos, por exemplo, que nada aí nos permite dizer que estes, para lá da extrema indeterminação e complexidade que os animam, nos permitem qualificar o que é a arte, em sentido estrito.
Poderemos, talvez, através desses mecanismos ter uma ideia acerca do carácter manifestamente multiforme do que chamamos de sentido, dos universos de sentido, poderemos ter uma janela que dê para o que mobiliza ou o que fundamenta a criação humana; mas dificilmente poderemos descortinar o sentido do que é a arte, do que é a ciência, do que é seja o que for. É o próprio cérebro, na sua complexidade neurobiológica, que nos parece avisar acerca disso mesmo, como Edelman defende. O que me faz lembrar também uma frase do grande antropólogo americano Clifford Geertz: «Talvez estivéssemos a pedir demais dos neurónios; ou, se não demais, pelo menos as coisas erradas» (The Interpretation of Cultures, Londres, Fontana, 1973, p.75).
Texto lido no Museu da Ciência de Coimbra no dia 19 de Março de 2009 às 16 horas.
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