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Kant na noite do Ártico (2), ou homenagem a Claude Lévi-Strauss

Posted in Crítica, Notas, Notícias, Oficina by Luís Quintais on Quinta-feira, 20-11-2008

1176309419_01[Retomo o meu Kant na noite do Ártico. Claude Lévi-Strauss fará no próximo dia 28 de Novembro cem anos. Aqui a celebração já começou há algum tempo. Esperemos que em Portugal se esqueçam desta vez da doxa, e nos dêem uma homenagem à altura do homem que abomina a doxa].

Uma homologia entre a multiplicidade de aspectos da vida social é reclamada em Lévi-Strauss. Tal homologia depende, em grande medida, dum nível profundo de invisibilidade que se traduziria num código universal, isto é, numa ur-matriz que definiria a semelhança entre estruturas linguísticas e simbólicas ou culturais. De outro modo ainda, dir-se-ia que Lévi-Strauss reclama uma congruência entre o exterior e o interior, entre a superfície e a profundidade. Para ele, existe uma ordem no mundo exterior e existe a nossa percepção e conceptualização dessa ordem. Entre estes dois universos, um exterior e outro interior, não existe qualquer incompatibilidade. Acresce ainda que tal congruência não é demonstrável. Reclama-se pois uma espécie de continuidade tácita entre o sensível e o inteligível.

A articulação entre o sensível e o inteligível terá de ser compatível com as leis universais que regem o espírito humano. A estratégia lévi-straussiana funda-se numa congruência entre exterior e interior que, de algum modo, é preservada pela linguagem e pelas culturas tomadas como instâncias de mediação do sensível e do inteligível. O mundo out-there pauta-se por princípios de ordem que a linguagem espelha e assume transversalmente: a eficácia das palavras e a eficácia dos princípios de ordem que as animam podem ser encontradas, por exemplo, nas trocas matrimoniais, e no modo como estas fazem preservar uma espécie de óptimo contratual básico sem o qual não é possível haver sociedade. E estes princípios de ordem dizem-nos tanto do funcionamento da sociedade quanto do funcionamento do «espírito humano» e da sua arquitectura neuronal: a sociedade, a mente, o cérebro, são assim avataras uns dos outros, avataras de uma natureza que se desdobra em «formas» que podem ser reconstituídas porque aquele que as reconstrói reconhece em si o trabalho e a inapagável presença de tais formas. A linguagem (entre o som e o sentido) é aqui transversal a esta recursividade entre ordens de complexidade diversa.

O confronto com a natureza – a selva amazónica – e com as suas formas é assim transposto, numa recursiva e constante viagem sem paralelo, para um confronto com aquilo que está inscrito na natureza profunda do humano que aqui é ainda o Homem. Os povos da Amazónia epitomizam, mas suas mito-lógicas, aquilo que de mais profundo e mais singular se faz inscrever nas produções culturais humanas: o espírito e as suas regras, que funcionam aí, ainda, numa transparência que a modernidade se encarregaria inelutavelmente de toldar.

O crepúsculo da cultura seria assim a turvação completa dessa Razão magnífica. Kant na noite do Ártico, mas também Kant na Amazónia. Porque as viagens de Lévi-Strauss seriam afinal uma demanda por um lugar onde o brilho escondido do humano poderia ainda ser contemplado, apreciado, como quem contempla ou aprecia uma paisagem ou uma peça de Racine ou uma página de Proust. Porque algures nessa heterotopia da Razão se poderia identificar ainda a essência mito-lógica da mente entregue a si mesma.

Dir-se-á que Lévi-Strauss incorre aqui numa espécie de invulgar primitivismo: a mente ameríndia é a epítome da Razão humana, por excelência; mais: a mente ameríndia presta-se – pela sua transparência – a uma incursão na mente tout court, já que a complexidade das cidades e das aquisições da vida moderna resvalam flagrantemente para a opacidade dos desígnios do humano, o mesmo é dizer, para o crepúsculo da cultura e da Razão. E veja-se o que Lévi-Strauss escreve sobre a arte moderna, para compreendermos este negrume que parece atravessar, para ele, as produções humanas que o cânone civilizacional ocidental foi propondo.

artigo3607_clip_image001A Amazónia é, em Lévi-Strauss, uma Arcádia da mente. E há vários modos de o descortinarmos. Em primeiro lugar, porque o mito detém um «valor intrínseco» que lhe é dado pela sua «estrutura permanente»: o mito suprime o tempo cronológico, reiterando, em simultâneo, passado, presente, e futuro. O mito é, neste sentido, encarado como como uma criação humana dotada de uma estrutura dupla, histórica e a-histórica. Ele releva da palavra e da língua, mas a sua singularidade prende-se com um terceiro nível que lhe confere o carácter de «objecto absoluto».

Acresce ainda que a permanência do mito, da sua singularidade, está também no facto de, para Lévi-Strauss, se tratar de um modo de discurso onde a tradução não é traição. Ao contrário da poesia, o mito é traduzível: as qualidades que lhe conferem a sua singularidade permanecem inalteráveis, pesem embora as inúmeras transformações (contingentes) que lhe possamos imprimir.

O voo do mito faz-se para dizer algo. O que dizem então os mitos?

Para Lévi-Strauss, os mitos – a arquitectura mito-lógica ameríndia – dizem a mente que os construiu. Ou seja, a mente cria e espelha os mitos que por sua vez criam e espelham a mente. A simetria e o carácter especular desta recursividade é enfatizada, podendo tal recursividade ser afinal traduzida numa ideia de um pensamento entregue a si mesmo, como se os mitos nos demonstrassem a operacionalidade de um pensamento que se sujeita, unicamente, às determinações intelectuais que o modelam e nada mais.

É assim esta Arcádia do pensamento: um lugar onde a Razão se conforma às lógicas que ela própria criou e cria continuamente no seu jogo complexo de correlações e oposições. Um lugar onde o tempo se suspendeu e a harmonia do pensar ocorre sem constrangimentos históricos.

imagesO «pensamento selvagem», pois.

É por se encontrar submetido apenas aos seus próprios propósitos lógicos que ele se afigura como a forma não domesticada do pensamento único, esse «espírito humano», grande orquestrador dos universos do simbólico. Já em «La structure des mythes», Lévi-Strauss havia admitido a possibilidade de um dia se chegar à conclusão de que entre o pensamento mítico e o pensamento científico, o homem não tinha senão pensado bem. E em La pensée sauvage, Lévi-Strauss virá a defender como o pensamento mítico, sendo uma forma intelectual de bricolage, encontra em si a possibilidade de ser, também ele, generalizador, logo científico.

Esta unidade do pensamento pode, porém, ser melhor apreciada através da transparência que o pensamento selvagem convoca na sua declinação mítica. Como se o «espírito humano» tivesse na selva amazónica o seu mais adequado laboratório. Como se ali, uma espécie de suspensão no tempo nos fosse possível, através do mito, aceder às propriedades que enformam e informam a Razão.

No meio da selva amazónica a transparência do pensamento único e sua a-historicidade poderiam ser resgatadas, não fosse ainda demasiado tarde: porque o comboio de Lúcifer da civilização moderna parecia imparável na sua rasura dos universais que a diferença cultural poderia ainda revelar, sendo a opacidade e o tempo tomadas como forças, talvez, inexoráveis.

O pensamento selvagem através do mito entrega-se a uma espécie de jogo sem paralelo, como se nada na história (na domesticação que a história presume) se lhe fizesse inscrever.

A Arcádia da mente é espelhada pelo mito, a mais acabada celebração de um inconsciente colectivo de recorte kantiano, e o mito sobredetermina as operações lógico-formais em que se funda todo o pensamento.

Não admira, portanto, que Lévi-Strauss, assumindo esta continuidade e contiguidade tácita entre modos de pensar diversos, nos diga exemplarmente que se o objectivo da antropologia é contribuir para um melhor entendimento destas propriedades formais subjacentes a todo o pensamento, então será certamente insubstancial saber se o pensamento dos grupos de ameríndios estudados toma forma através do seu – dele, Lévi-Strauss – pensamento, ou se, ao contrário, é o seu pensamento que é modelado pelo pensamento ameríndio.

Luís Quintais

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