Os Livros Ardem Mal

Amor líquido

Posted in Efemérides, Livros by Ana Bela Almeida on Domingo, 15-02-2009

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When i fall behind in the quest for pleasure
I shall treasure this short time with you

“Timewatching”, do álbum Liberation dos Divine Comedy.

Numa recente viagem de avião, folheando a revista oferecida pela companhia aérea, entre vários artigos dedicados ao “mês de São Valentim”, atentei num sobre os novos serviços de dating através da internet. Segundo o director de uma destas empresas de relacionamentos, parece que é nos países mais desenvolvidos economicamente que os clientes apresentam mais queixas sobre a relação entre a qualidade do “produto” e o tempo dispendido a procurá-lo. Pagam para encontrar o amor depressa e, se tal não sucede, reclamam. A singularidade desta reportagem provém do facto de não constituir, como as outras da revista – quase todas publicidade a destinos de viagem mascarados de “românticos” e todos situados na rota da referida companhia aérea – um apelo ao consumo de um produto em nome do amor, mas de expressar um entendimento do próprio amor como objecto de consumo. Ocorreu-me logo a canção de António Variações, um grito que vem do que em nós ainda é humano: “Não me consumas!”.

Para uma reflexão sobre a relação do consumidor, que todos somos, com o amor, sugiro a leitura de Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos de Zygmunt Bauman. O amor como produto de consumo rápido, em série, descartável, que faz de todos nós isso mesmo: produtos consumidos em série, descartáveis. A salvação, segundo Bauman, passará pelo regresso ao compromisso e à permanência nos relacionamentos, apresentada como a única possibilidade de resistência do indivíduo contra o império da fragilidade neste mundo liquido, de empregos e amores flexíveis e em part-time:

(…) libertar o sexo da soberania da racionalidade do consumidor (…) que essa racionalidade seja destituída da sua actual soberania sobre os motivos e estratégias da política da vida humana.” (pag.70)

Neste ano de recessão económica mundial, mas que já foi pródigo ao oferecer-nos aquele que é certamente um dos grandes textos deste novo século – o discurso de tomada de posse de Barack Obama – as palavras de Bauman adquirem um novo alcance. O apelo de Obama aos velhos valores da moderação, do sacrifício e da humildade, chegou ao coração de cada cidadão deste mundo, tal como o de Bauman poderia chegar ao de cada amante:

“(…) our power grows through its prudent use; our security emanates from the justness of our cause, the force of our example, the tempering qualities of humility and restraint.

A minha maior dificuldade na aceitação do pensamento de Bauman está no que nele intuo de nostalgia e desejo de regresso a um modelo de relacionamento do passado, sobretudo no que se refere à família:

As íntimas conexões do sexo com o amor, a segurança, a permanência e a imortalidade via continuação da família não eram, afinal, tão inúteis e constrangedoras como se imaginava, se sentia e se acusava que fossem. (…) Talvez essas restrições sejam proezas do engenho cultural em vez de símbolos de equívocos ou de fracassos nesse terreno. (p.69)

Bauman nasceu em 1925, é filho de um outro tempo, não partilha a nossa condição de náufragos neste mundo líquido dos relacionamentos “amorosos”. Observa a nossa luta a partir da praia, numa posição que, para o bem e para o mal, não é a nossa. Essa íntima conexão do sexo com o amor, via permanência e continuação da família, tal como existiu no passado, esteve longe de ser isenta de contradições e cruéis injustiças e eu, pelo menos, não a quero de volta.

O que não significa que, particularmente em dia dos Namorados, não seja sensível ao apelo deste amor que permanece, em detrimento da procura de consumo fácil e rápido de novos prazeres. O próprio dia dos Namorados é, cada vez mais, a celebração de um conceito em vias de extinção. Conheço poucos namorados. À minha volta, e passada a adolescência, só há parceiros, casos, aventuras, ligações, uniões de facto, companheiros, significant others de toda a espécie.

Quando ouço os versos de Neil Hannon dos Divine Comedy, com que iniciei este post, sinto sempre alguma pena dessa voz que fica para trás na busca do prazer, When i fall behind in the quest for pleasure. Amor Líquido é um livro que fala dos namorados que talvez ainda possamos voltar a ser. Namorados que não se deixam ficar para trás à procura do prazer seguinte. Namorados para quem o tempo é longo.

Zygmunt Bauman (2006), Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Lisboa: Relógio D’Água Editores. 189 pp. [ISBN 972-708-901-1] Trad. de Carlos Alberto Medeiros

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