Os Livros Ardem Mal

Scriptor ex machina (II)

Posted in Autores, Crítica by Manuel Portela on Sábado, 20-09-2008

Não conseguir dizer o que lhe acontece com os signos que inventou – para se dizer e para dizer o mundo – parece constituir a própria natureza dos signos e do ser simbólico que através deles lhe cabe ser. Nasce, cresce, reproduz-se, morre. A cada frase revive a insuficiência das palavras para o dizerem e para dizerem o mundo. O mundo é uma breve alucinação que não chega sequer a apreender, e o sujeito um produto dessa alucinação contaminada de signos. Escrever a escrita é seguir as frases até onde não sabe que elas o levam. É abrir com elas um caminho que não havia antes. Fazer aparecer, ao mesmo tempo, como que por magia, um ponto de vista sobre o mundo e o mundo que esse ponto de vista faz aparecer. E essa é uma das experiências que a leitura de Os Três Seios de Novélia lhe oferece: a experiência da singularidade do acto de fala da escrita, capaz de fazer acontecer o que diz, seja a escrita, seja o sujeito, seja o mundo. Novélia surge como a própria condição da novela e do romance, da ficção enquanto possibilidade de mundo. Não é apenas um nome que abre a possibilidade de um referente extratextual, isto é, a mulher que a escrita conjura nas ruas e lugares da cidade. Novélia é também – é sobretudo – o movimento incessante da própria escrita que aponta para si mesma e para a natureza do seu acto. O escritor escreve-se ao escrever. Produz a linguagem que lhe há-de permitir ver-se como produto da performatividade da escrita. A escrita faz acontecer a escrita e o mundo como efeito da escrita. É esta descoberta da escrita como acto de fala o que sobressai neste três primeiros textos de Manuel da Silva Ramos. Escrevendo-se (isto é, descrevendo-se e narrando-se a escrever), o narrador descobre a co-extensibilidade entre mundo e linguagem. Um e outra são o avesso e o direito da capacidade de representação e de expressão contida na escrita. Escrever é uma forma particular de criar mundo, de criar mundos no mundo: «Novélia (chamo-te Novélia) mostra as mãos. Agora sorri para eu sorrir. Para eu acreditar. Para tu viveres.» (18)

«Romance? Poema?» – a interrogação com que Óscar Lopes apresentava a edição de 1969, vale ainda, quarenta anos depois, para toda a obra posterior de Manuel da Silva Ramos. A tensão entre o desejo de narrativa e de hetero-referência do romance, por um lado, e o desejo de plenitude lírica do poema como lugar auto-suficiente de comoção com a beleza dolorosa mundo, por outro, continua a constituir o motor da combinatória linguística que a sua escrita inventou. Dessa tensão fazem parte a oscilação frequente entre clímax e anti-clímax, a combinação da pincelada psicológica com a caricatura social, a surrealização do registo realista, a paródia estilística (como no «Sermão de Santo António aos Astronautas») e uma lógica combinatória nas variações técnicas e temáticas (como os nomes de ruas e cafés n’ «Os Três Seios de Novélia», ou os meses do ano n’ «A Respiração», ou os aforismos em «Um Longo Nascimento»). Reconhece-se, retrospectivamente, o início da sua escrita maximalista e inclusiva, à maneira de James Joyce, de acumulação das múltiplas formas da experiência humana. Reconhece-se também a permutação gerativa, à maneira de Calvino. A técnica de justaposição desierarquizada, de que depende a lógica onírica do texto, contamina igualmente o registo realista, cuja sensorialidade surge assim intensificada.

Deitado. Nu. Vou pedalando pela modorra. Acordei há meia hora e vou. Minha bicicleta tentando a velocidade. Às vezes um furo. Um prego? Um grito duma mulher na rua. No guiador levo um embrulho antigo: a minha cabeça. Não há vento. A manhã vai turvando. Agora é dum verde reluzente. Pinga. A estrada pouco desce. É branca. Relincha. Dos lados há homens e mulheres amando-se. Risos, choros, gás, gaviões. Dolorosa fila indiana. Sangue, esperma, filhos, países. (34)

Manuel Portela

Manuel da Silva Ramos, Os Três Seios de Novélia, Dom Quixote, 2008 [3ª edição]. ISBN 978-972-20-3597-2 [1ª edição, Inova, 1969; 2ª edição, Fenda, 1996]

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