Os Livros Ardem Mal

A inveja do criador

Posted in Comentários by Miguel Cardina on Quinta-feira, 17-07-2008


Sabe-se que Flaubert manifestou um dia a vontade de escrever uma obra sem assunto. Uma obra que, desligada do real, fosse a confirmação da suprema independência da arte relativamente à vida. Para alguns, esta auto-suficiência da arte não significaria a legitimação do nonsense mas, pelo contrário, uma afirmação inequívoca da possibilidade do sentido. De um sentido que, «neste mundo abandonado pelos deuses», como disse Lukács, apenas teria revelação no interior da obra de arte. Numa madrugada televisiva, meses atrás, George Steiner contribuiu para esclarecer esta ideia. Lembrou uma frase de Flaubert, enquanto esperava que um cancro no estômago lhe retirasse os últimos nacos de vida: «Eu aqui a morrer como um cão e a puta da Madame Bovary a ter vida eterna». Ofuscado pela dor, o romancista voltou a exprimir a primazia do escrito em relação ao vivido. Ou, o que é ainda mais patético, a triste incapacidade dos austeros em pensar o sentido na sua relação com a finitude.

Miguel Cardina

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