30 anos depois, os Xutos ainda (nos) tocam? (II)
Significa isto que é difícil fazer a crítica de uma banda tão «representativa» sem, de algum modo, incorrer na crítica de toda a situação por ela representada. O livro de ACF informa-nos, por exemplo, de que no dia 8 de Maio de 1987, data do lendário concerto dos Xutos no pavilhão de Os Belenenses, a banda recebeu um telegrama de Rui Reininho que rezava apenas «Avante camaradas». Não custa ver neste incitamento irónico o reconhecimento não irónico de que muito do futuro do rock em Portugal passava, como depois se tornou visível, por esse concerto, ou por tudo o que nele tornou os Xutos maiores do que eles mesmos, conduzindo-os àquele lugar, aquém e além da crítica, que é próprio dos mitos (ou, o que é o mesmo na modernidade, das locomotivas).
O que faz também do livro de ACF um acontecimento no panorama pobre da nossa escrita rock é o facto de a autora ter intuído, com rara penetração, o predomínio da voz sobre a letra na cultura rock (ou na auto-representação que esta de si mesma produz). O livro, seguindo uma tradição forte no campo da escrita de livros de percurso de bandas rock, é construído como uma montagem de depoimentos, graficamente assinalados pelo itálico que se segue ao nome do depoente. O espaço preenchido pelos caracteres em redondo, atribuídos à (voz) escrita da autora, reduz-se significativamente e o leitor é tomado de assalto por toda a ilusão de presença cara à física e metafísica do rock – a performance pura e plena («autêntica»), sem qualquer mediação, isto é, o triunfo do corpo suado e, tantas vezes, tendendo ao nu – ou, noutro vocabulário teórico, mais aristotélico, pelo predomínio esmagador do showing sobre o telling, tão típico de formas de literatura de massas como o romance policial ou a FC, em que o diálogo abafa a narração e, mais ainda, a descrição, acelerando a leitura até à vertigem.
O que daqui resulta é, tecnicamente, «história oral», e, musicalmente, escrita rock, no sentido em que esta vive da produção de uma série de efeitos de auto-anulação da sua dimensão escritural em favor da manifestação forte da voz, uma voz que seria, idealmente, sem filtro e sem excessos de «produção». Vozes «cruas», como determinou, para as guitarras dos Xutos no seu primeiro disco, o radialista António Sérgio, promovido a produtor.
Este triunfo da voz na escrita sobre rock é, digamos, sistémica com uma música tendencialmente não-escrita (um dos grandes momentos do livro é a narração das provas dos músicos no Sindicato dos Músicos para obterem a carteira profissional, que Zé Pedro consegue à tangente e depois de propor a substituição do tango que deveria executar por «um bluezinho»…). Trata-se, de facto, não de uma antinomia mas de uma tensão constitutiva, pois é manifesto que um dos trunfos dos Xutos da sua grande fase são as letras (sobretudo as de Tim), «rock lyrics» como em Portugal não se fazia e raramente se voltou a fazer: penso, a título de exemplo maior, nos casos de «Sémen» e «1º de Agosto». São letras exactas, com as palavras justas, métrica perfeita para o formato e ritmo da canção rock e com o sentido de urgência que define a grande, e breve, tradição do punk. Por outras palavras, são textos muito escritos, quase sílaba a sílaba, e que conseguem o difícil efeito performativo de parecerem um puro efeito da voz gritada do rock. Exactamente como sucede no livro de ACT e na tradição rock, modelarmente anglófona, de livros sobre bandas rock.
18 anos depois, contudo, não é possível ocultar que esta nova edição pouco ou nada acrescenta à de 1991. Materialmente, o objecto sofreu a imposição de um efeito de escala paralelo ao do crescimento institucional dos Xutos: é bem maior do que o original, é bem mais pesado, e compensa o pouco que acrescenta com portefólios de fotos e reprodução de memorabilia. Graficamente, é um livro da Assírio, não chegando sequer a configurar um híbrido entre a sobriedade da editora e o grafismo típico da tradição rock em forma de livro: «sujo», perturbando até ao possível a estabilidade do objecto-livro e a linearidade da leitura. É, de forma inconvicta, uma solução de compromisso entre a actividade do «contador de histórias», que vê no livro um mero estratagema de comunicação (um mal menor), à falta do intercâmbio ao vivo e em co-presença que define o seu perfil oral, e a História depositada em tomos tipo catálogo, e tendendo ao Coffee Table Book. Para todos os efeitos, o livro acaba em 1991, uma vez que o que se segue são anexos, post scripta e uma cronologia à qual se confia o registo do que não suscita já uma vontade forte de «contar histórias». Nem mesmo de as ir ouvir.
É pena? Talvez não. Pois assim o livro, nesta nova encarnação, deixa ver, no vasto território de três décadas que tão desigualmente recobre, a marca de fogo daquilo que foi governado pelo império da urgência e da necessidade – bem como, um tanto melancolicamente, tudo aquilo que o fogo já não visitou, e que, em 2009, é já vasto.
P.S. Lamentavelmente, não é possível escamotear a forma apressada como a nova edição deste livro está feita. Não na paginação ou na recolha de materiais mas, antes disso, no vasto trabalho de revisão que manifestamente não foi feito (ou foi mal feito). Aqui e ali percebem-se os efeitos lapsares do scanner. Mas sobretudo não se entende que aquilo que já na primeira edição era flagrante – o facto de a pontuação ser o grande problema da escrita da autora – não ter sido convenientemente corrigido. Faltam dezenas e dezenas de vírgulas, há dezenas de vírgulas que deveriam ser ponto e vírgula ou ponto final, há aspas que abrem e não fecham, há problemas de acentuação, etc. Por que razão isto não ocorre nos livros mais marcantes que sobre rock nos chegam do Reino Unido ou dos EUA? Porque os autores, tendo frequentado todos as melhores escolas locais, não cometem lapsos gramaticais? Sejamos sérios. A razão disso é só uma: é que por lá existem, para os livros sobre rock ou sobre tudo o resto, os editores e revisores que cá não há. E isso, sim, é pena.
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