Os Livros Ardem Mal

As máscaras da fome no teatro da contemplação (I)

Posted in Artes, Crítica by Osvaldo Manuel Silvestre on Segunda-feira, 29-12-2008

mascaras-net

700 Máscaras à Procura de um Rosto ou Um Artista da Fome é o estranho título do último espectáculo em cena n’ A Escola da Noite. Inicialmente anunciado para um curto período em Dezembro (de 11 a 20), o espectáculo foi felizmente prolongado para o período de 6 a 17 de Janeiro. Digo «felizmente» por se tratar de um espectáculo de grande impacto visual e de assinalável inteligência «conceptual», que seria pena limitar a 9 dias, ainda que em sessões duplas. O impacto do espectáculo deve-se à exibição das 700 máscaras, além de outros objectos escultóricos, da autoria de António Jorge, actor, cenógrafo, aderecista da companhia e obsessivo artesão; a inteligência, essa está patente na proposta de articulação, não muito evidente à primeira vista, entre a «mostra museológica» de 700 máscaras e o texto de Kafka «Um artista da fome», um texto dotado da capacidade de perturbação dos  textos maiores do autor.

O espectáculo vem com uma indicação de género: «Instalação teatral». Ou seja, não é claro que seja teatro, mas também não é claro que o não seja. Podíamos resolver o problema, como é usual na cena contemporânea das artes, decretando a impertinência teórica da questão; não creio que ele fosse assim resolvido, antes «pontapeado para canto», sendo talvez mais pertinente sugerir que não se trata ainda – e, n’A Escola da Noite, seria caso para dizer que essa é uma fronteira sempre repelida – de «teatro pós-dramático», uma vez que o espectáculo, como sempre na companhia em causa, confia aos poderes do texto boa parte do seu sortilégio: a estratégia de recurso a um grande texto literário, propondo a sua recodificação dramática, é aliás reconhecível no código genético da companhia. Em todo o caso, estamos, com este espectáculo, num dos limites de qualquer noção, por mais alargada, de «teatro»: o limite da imobilidade e da (quase) ausência de representação. O que é o mesmo que dizer que não nos livramos da questão colocada com grande inteligência pela designação «Instalação teatral», sendo ainda minha convicção que, mesmo apesar do texto (e apesar do texto ser de quem é), não conseguimos também, por causa de tudo o que no espectáculo solicita e responde à designação «Instalação teatral», livrar-nos da questão a que Hans-Thies Lehmann deu o nome de «teatro pós-dramático».

Curiosamente, esta «instalação teatral» começa por propor um modo peripatético de «uso e apropriação» do espectáculo e, em rigor, do próprio edifício: o (enfim!) recém-estreado Teatro da Cerca de S. Bernardo. Uma personagem que poderia perfeitamente provir do universo de Kafka – alguém que oscila entre a«moderna» (e já anacrónica) figura do revisor e do guarda-freios, fardado e transportando uma lanterna que mais dá a ver o apagamento identitário do indivíduo, ligeiramente cómico na sua seriedade de funcionário – conduz os espectadores ao andar inferior do teatro, convidando-os a entrarem no edifício pela porta que leva aos serviços de secretariado da companhia. Entrados nesse hall, o revisor/guarda-freios faz uma pausa de espera e ouve-se o início do texto de Kafka: «O interesse por artistas da fome diminuiu muito nas últimas décadas…». Em seguida, fazendo sempre pausas para reunir os espectadores antes de avançar para uma nova zona do edifício, o bisonho mestre-de-cerimónias vai conduzindo os espectadores pelos vários compartimentos do vasto andar inferior do edifício, nos quais há sempre aparelhos ligados, mesmo se em baixa rotação, realizando-se assim, ainda que de modo ressalvado, a clássica «visita aos bastidores». É-me difícil não pensar nesta entrada no aparato institucional do espectáculo – na casa ou palácio do teatro – segundo aquela leitura proposta por Deleuze-Guattari para a obra de Kafka, e para a entrada nela: um rizoma, um dispositivo dotado de múltiplas entradas (portas, janelas, corredores), um esbatimento metódico da ideia de «entrada privilegiada». Assim como me é difícil não pensar nas máquinas ronronantes que animam a visita – computadores e candeeiros ligados, máquinas da roupa a funcionar, etc. – sem ver nelas uma sucessão aditiva de índices maquínicos que, como ainda Deleuze-Guattari sugeriram para a sua leitura dos romances de Kafka (por contraposição aos contos centrados na exploração do devir-animal), instauram um agenciamento maquínico em todo o edifício, fazendo-nos literalmente entrar na «máquina do teatro» e colocando, numa progressão pedagógica, todas as questões estéticas, ontológicas, teólógicas e políticas da máquina e do edifício-maquiníco: podemos chamar-lhes belos sem cair na impertinência ou na pretensão?; podemos não ter medo deles?; podemos não sentir na máquina-edifício sempre ligada o sopro de deus (ou do demónio)?; podemos não nos rir desta versão de deus (e do demónio) como truque?; podemos não admirar o trabalho subjacente e não reflectir sobre a operosidade ocultada pela cena?

A certa altura, na progressão pelo andar inferior do teatro, os espectadores deparam, não sem surpresa e algum susto (preferia dizer: terror), com o meio corpo de um homem supenso numa caixa cuja quarta parede está aberta: vêem-se pois as pernas do homem até à cintura, e é tudo. O «revisor» nada diz, ninguém lhe pergunta nada, pois o corpo/imagem – uma estranha palpitação de um teatro da crueldade – promete já a cena do espectáculo que o «explicará». Uma sala mais, umas escadas e os espectadores desembocam na sala pelo fundo, podendo ver, num panejamento que desce do tecto até ao chão, uma projecção vídeo: um filme acelerado, em plano fixo e numa duração alargada (dia e noite), da praça à frente da Câmara Muncipal, os transeuntes como personagens de um filme mudo vertiginoso e, de novo, involuntariamente cómico. Atrás do panejamento, encostada à parede junto às escadas, uma montanha de roupa em estado caótico. Junto dela senta-se o «revisor» durante quase todo o espectáculo. Quanto à sala, a parede da esquerda, para quem entra, negra com centenas de máscaras nela expostas; a parede da direita, vermelha, com idêntico número de máscaras. No chão, ao pé de cada parede, pares de sapatos. Ao centro, expostos e pendurados do tecto, objectos escultóricos. De cada lado dessa faixa central, bancos corridos para os espectadores se sentarem. Ao fundo, ao meio, uma caixa (a que se pudera ver pela metade no andar de baixo) com três paredes em tecido branco, despedaçadas a grandes golpes; lá dentro, com «palha» (ráfia) à sua volta, o actor que lê, desde que os espectadores entraram no edifício, mas sobretudo desde que começaram a subir as escadas para a sala, o texto de Kafka, e de quem só vemos a metade de cima do corpo. O espectáculo já começou, já vai aliás a meio, o espectáculo é, literalmente, tudo o que se vê e ouve, e é só isto. Ou seja: é só esta estranha sintaxe entre uma opsis que,  de tão espectacular, dir-se-ia que «não faz prisioneiros», e a leitura de um texto (o actor tem o texto à sua frente e lê-o) sobre um desgraçado «artista da fome». Bulimia e anorexia, seria caso para dizer.

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