Inquérito OLAM: Abel Barros Baptista
Abel Barros Baptista é professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde ensina literatura brasileira. É um dos grandes especialistas de hoje sobre Camilo Castelo Branco e Machado de Assis, autores a que dedicou obras de referência. No caso de Camilo, editou Camilo e a Revolução Camiliana, e O Inexorável Romancista, tendo ainda preparado uma edição anotada das Novelas do Minho. Quanto a Machado, é autor de duas obras de referência, ambas editadas também no Brasil. Com a segunda dessas obras, Autobibliografias, conquistou o Grande Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores. Além desses dois livros, publicou vários ensaios sobre Machado, preparou e prefaciou edições dos contos e romances do autor. Coordenou a mais notável colecção de literatura brasileira editada em Portugal, o Curso Breve de Literatura Brasileira, nos Livros Cotovia. Organizou ainda um volume colectivo sobre A Cidade e as Serras. É ainda cronista, actualmente com coluna na LER, tendo reunido as suas crónicas nos volumes A Infelicidade pela Bibliografia e Ensaios Facetos. Foi, até há pouco, director adjunto da Colóquio-Letras. Agradecemos a Abel Barros Baptista a disponibilidade para colaborar no nosso inquérito.
Time flies like an arrow, fruit flies like a banana.
Groucho Marx
A liberdade exige que se responda aos inquéritos com a insubordinação. A minha resposta é insubordinada em três instâncias.
1) Qual é, em seu entender, o melhor livro de ficção (romance, novela ou conto) portuguesa do século XX? Porquê?
Se calhar porque a palavra «inquérito», depois do 25 de Abril, se tornou tão frequente como odiosa (depois de associação a perseguições e investigações policiais, ficou associada a grandes acidentes ou grandes catástrofes ou grandes crimes…), inquéritos como este passaram de moda, e apenas se praticam por insistência a meu ver anacrónica. Os suplementos literários dos jornais, quando existiam, praticavam muito o género. Digo o género, porque disso se trata e daí a razão do anacronismo: o inquérito é um procedimento para saber ou fingir que se quer saber, mas este tipo de inquéritos visa mais mostrar que, sobre o que perguntam, há muito a dizer mas nada se pode saber em definitivo: o inquérito vale pela sucessão das respostas, plurais, diversificadas, irredutíveis. Ora eu pretendo justamente restabelecer o uso regular da palavra e declarar quais são os livros mais importantes e os melhores (digo já que não distingo importantes de melhores, pois coincidem), não porque eu assim o entenda, mas porque eles indiscutivelmente o são. Ou seja, vou declarar agora a verdade que tornará inútil o curso do inquérito, o havido e o por haver.
2) Qual é, em seu entender, o melhor livro de poesia portuguesa do século XX? Porquê?
A segunda insubordinação decorre da primeira: a verdade, evidente por si, não tem «porquê?», não se justifica, dispensa argumentos, que apenas a enfraquecem, coitada. Digo o que tenho a dizer, a verdade, e ei-la: os dois livros são, para a ficção, o Livro do Desassossego, que considero na edição de Jacinto do Prado Coelho (1982) por razões de prioridade bibliográfica e histórica, e para a poesia Ficções do Interlúdio, que considero na edição de Fernando Cabral Martins (1998), obviamente, dado ser a única. Quem discordar é porque simplesmente não sabe do que fala. (Esclareço apenas, dado que a edição tem outro estatuto editorial e é menos conhecida, que o livro organizado por Cabral Martins é uma antologia de todos os poemas em português que Pessoa publicou em vida, de 1914 a 1935, com excepção da Mensagem, agrupados por ortónimo e heterónimos e na ordem cronológica da publicação.)
3) Se a pergunta não fosse «qual o melhor» mas sim «qual o mais importante», as suas respostas seriam as mesmas ou seriam diferentes? Em quê, no segundo caso?
A terceira insubordinação enuncia-se com a formulação de Fernando Cabral Martins que totalmente justifica a antologia Ficções do Interlúdio: «Constrói-se, aqui, virtual, um livro que Pessoa não fez. Que nem por isso existe menos …» É isso mesmo que escapa ao inquérito: há livros que não deixam de existir pelo facto de não existirem. Ou livros em que o facto de não existirem é o elemento distintivo da própria existência. Daí a insubordinação diante do inquérito, que apenas presume livros que existem. Nelas se requer que os «melhores» e «importantes» respeitem o «objecto ‘livro’», e o inquérito diz de si mesmo que «pressupõe não apenas o objecto ‘livro’ mas também as implicações formais do livro, na sua sintaxe compositiva e na ortopedia do seu regime de manuseamento e leitura. Ou seja, parte-se do princípio de que na modernidade a literatura é indissociável da forma ‘livro’». Este último princípio é inegável: mas importa completá-lo com a ideia de que, justamente por essa razão, a modernidade é também inseparável da ausência do livro, da frustração do livro — da falha do livro. Daí que o livro que o seu autor nunca fez nem por isso exista menos: e os dois que menciono, não apenas são os melhores, não apenas são os mais importantes, como ainda por cima representam, cada um a seu modo, os problemas do próprio livro na modernidade, ou se quiserem, o problema de saber o que é um livro ou o que acontece ao livro na modernidade. Querem mais?
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