Os Livros Ardem Mal

A perigosa experiência da origem

Posted in Comentários by Luís Quintais on Segunda-feira, 25-02-2008

NubaLeni Riefenstahl interessou-se pelos Nuba depois do seu contacto com uma fotografia de George Rodger, um dos fundadores da Magnum. Nessa fotografia de lutadores Nuba publicada pela National Geographic em 1951, o vencedor surge-nos aos ombros do vencido, numa dramatização do poder e da derrota que nos poderá parecer destituída de qualquer mínimo civilizacional. Riefensthal terá talvez encontrado aí um índice perfeito da glorificação do corpo e da política-pelo-corpo que a perseguia desde o início da sua carreira de actriz-cineasta.

Para o que interessa aqui, importa dizer que Rodger foi o primeiro fotojornalista a entrar em Bergen-Belsen onde haveria de captar imagens que correram mundo através de revistas como a Time e a Life. Tais imagens mudaram seguramente a nossa percepção do que poderá ser o humano e o inumano, e fizeram-nos também pensar como nunca antes na necessidade e na urgência do infigurável.

Rodger conta-nos como durante a sua visita a Bergen-Belsen deu por si a compor imagens esteticamente atraentes de pilhas de corpos e de corpos espalhados entre árvores e edifícios do campo, como se se tratasse de naturezas-mortas. Perturbado com esta experiência, Rodger ter-se-á voltado para África e, em particular, para os Nuba, de forma a libertar-se do odor pestífero de tal experiência.

Conduzida pelo olhar de Rodger, Riefensthal fez dos Nuba a sua decisiva obsessão de cineasta e de fotógrafa no pós-guerra. A sua relação com os Nuba põe a descoberto um dos aspectos mais insidiosos do seu trabalho. Revela-nos, justamente, as perigosas encruzilhadas da exoticização e da projecção fantasiosa.

Se pensarmos que tal relação tem uma espécie de motivo original – a sua ur-doxa – na fotografia de Rodger, dir-se-ia que a exoticização e a esteticização andam quase sempre de braço dado. A experiência do exótico e a experiência do estético são experiências da origem, e, como sabemos, toda a experiência da origem é potencialmente perigosa, potencialmente intoxicante.

A insensibilidade contextual de Leni Riefensthal pode ser aferida através da sua primeira expedição em território Nuba. Em 1962, Riefensthal segue os passos da expedição Nansen coordenada pelo antropólogo Oskar Luz da Universidade de Tubingen, e o mal-estar entre os antropólogos da expedição torna-se muito evidente. Como sugere Steven Bach na sua biografia de Riefensthal já recenseada por mim aqui, o trabalho de Leni denunciava uma vontade de construção da realidade Nuba que os antropólogos só poderiam repudiar:

Como a única mulher entre os cientistas, ela pode ter gerado más vontades sexistas, mas a sua independência era disruptiva. A sua busca fervorosa de imagens «do que é belo, forte, saudável» conflituava com os objectivos dos antropólogos de obterem documentação metódica e não mediada. Ela era franca quanto ao seu desinteresse por nativos usando andrajosos calções de ginástica impostos pelo islamismo que «não os fazia parecer diferentes dos negros das grandes cidades». (…) O dramático sentido de imagética de Leni impregnou a versão que transmitiu ao seu diário sobre o que viu (…):«Mil ou duas mil pessoas caminham a balançar à luz do sol-poente num espaço aberto rodeado de muitas árvores. Pintados de uma forma estranha, fantasticamente adornados, parecem criaturas de outro planeta.» No relato mais calmo e menos colorido de Luz, a respeito do mesmo momento, os membros da expedição meramente se dirigiram a um cacho de cubatas e apresentaram-se aos mais velhos da aldeia com a ajuda de uma mensagem gravada que explicava o seu objectivo no dialecto local. (pp. 374-5)

A experiência da origem é coincidente com a experiência do encantamento. As inflexões modernas do trágico prendem-se, afinal, com o modo como esta experiência do encantamento não foi afinal rasurada, mas, pelo contrário, multiplicada através de «tecnologias do encantamento» muito particulares, para usar a expressão do antropólogo Alfred Gell. Aí avultam indubitavelmente a fotografia e o cinema, que são também, e se me permitem a expressão, tecnologias de reinvestimento na origem. Sem este reinvestimento, as condições históricas que conduziram ao extermínio seriam talvez improváveis – e Leni Riefensthal é o exemplo maior disso mesmo, e é por isso que o seu trabalho nos traz desconforto.

Terá sido a tomada de consciência da monstruosidade deste problema que levou um fotojornalista, George Rodger, a trocar a Europa pela África. Mas poluído por tal monstruosidade, haveria de ser por ela perseguido, como se os seus olhos não a dispensassem (talvez tivessem cegado em Bergen-Belsen se a tivessem dispensado).

Riefensthal haveria, por seu turno, de corresponder ao seu sopro e ao seu vestígio.

Luís Quintais

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