Os Livros Ardem Mal

Malhas do comunismo nacionalizado

Posted in Recensões by Miguel Cardina on Segunda-feira, 05-01-2009

znComunismo e Nacionalismo em Portugal abre com uma história curiosa contada por André Malraux: durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), nas proximidades de Toledo, abate-se sob as tropas republicanas mais um punhado de bombas do céu que, ao contrário de tantas outras, desta vez não explodem. Surpreendidos, os republicanos descobrem-lhes no dorso uma mensagem em português – «camarada, esta bomba não explodirá» – indiciando a sabotagem dos engenhos algures na passagem de Portugal para Espanha. Como nota José Neves, este exemplo permite dar conta da «tendência internacionalista que trespassou fronteiras estatais e identidades nacionais sem revelar grande consideração por qualquer tipo de ideologia nacionalista». O livro em causa, no entanto, analisa precisamente o reverso dessa disposição: o modo como o Partido Comunista Português, sobretudo a partir da «reorganização» empreendida nos anos 40, forjou um «nacionalismo comunista» oposto e em competição com o nacionalismo do Estado Novo.

Se é verdade que o internacionalismo proletário, por um lado, e o nacionalismo fascista, por outro, não deixaram de se confrontar – como aparece evidenciado no episódio contado por Malraux – não é menos verdade que a mundivisão comunista – nomeadamente, aquela oriunda dos partidos da Terceira Internacional – foi também animada por uma forte pulsão soberanista. Assim sendo, o nacionalismo comunista construiu-se como um nacionalismo alternativo ao do Estado Novo, mas nem por isso menos convicto na invenção de uma identidade nacional, a qual se deveria acomodar com a figura revolucionária do proletariado, numa dinâmica tensional em regra desequilibrada. Como assevera o autor: «Pretendendo-se um nacionalismo instrumental, um meio para um outro fim, o nacionalismo comunista acabou por assumir uma importância tal na história do PCP reorganizado que em nenhum momento este terá programaticamente proposto uma terra sem estados nacionais. Uma terra sem amos, sem dúvida que sim, mas não a Internacional».

Boa parte do livro consiste justamente em mostrar de que modo, na área do PCP, este imaginário nacionalista se foi construindo não apenas do terreno das proposições político-ideológicas, mas também no campo da literatura, da música, das imagens desportivas ou das interpretações da história. Na realidade, o autor mostra que a nacionalização do discurso comunista se afirma no PCP ainda antes da «reorganização», designadamente em textos de Bento Gonçalves e Pavel e nas acusações de «traição nacional» efectuadas pelo partido ao regime, no contexto da Guerra Civil de Espanha. O livro analisa ainda temas como a influência do comunismo francês no português, a relação complexa do PCP com a questão colonial e a invenção de uma cultura nacional, patente, por exemplo, na valorização do campo e na depreciação da cidade em autores como Lopes-Graça ou Maria Lamas. A última parte, dedicada à «patrimonialização comunista da história», debate-se com as leituras da história de Portugal feita por António Borges Coelho, Victor de Sá e Álvaro Cunhal, entre outros, e encerra com dois interessantes capítulos sobre «A Vanguarda e o Comum» e «O Militante», nos quais se convocam conceitos oriundos da reflexão autonomista italiana.

Com uma capacidade analítica notável e num registo narrativo elegante e cuidado – qualidades nem sempre comuns na historiografia produzida no nosso país – José Neves percorre inúmeras áreas nas quais se foi tecendo o encontro entre estes dois pólos magnéticos de sinal aparentemente contrário: comunismo e nacionalismo. Se aqui se usassem bolinhas avaliadoras para aferir a qualidade de uma obra, como é costume em alguns suplementos literários, não haveriam dúvidas: cinco estrelas.

José Neves (2008), Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, Cultura e História no século XX. Lisboa: Tinta-da-China, 502 pp. [ISBN 978-972-8955-73-1]

Também publicado em Caminhos da Memória

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