Os Livros Ardem Mal

Scriptor ex machina (III)

Posted in Autores, Crítica by Manuel Portela on Sábado, 20-09-2008

…no ano em que entrei para a escola o meu pai morreu. Foi uma tia, uma velha tia, solteira, perdida na memória das famílias que me levou para a sua casa e que me ensinou a correr com ela pela tabuada fora. Depressa aprendi o brilho dos números e a evidência das letras. Depressa descobri o lápis, a borracha, o desenho. Ficava longas horas a copiar o gato da minha tia. Nunca o consegui meter no papel. Um dia o gato morreu e como não tinha mais nada para desenhar comecei a olhar para a minha tia às escondidas. Ela ficava todo o dia sentada numa cadeira a experimentar, a multiplicar o fio, o frio, porque dali sairia uma camisola para o meu inverno. Eu espreitava pela porta entreaberta: o lápis nos dedos, o caderno no chão e com um grande incêndio nos olhos. (23-24)

A sensorialidade é a sensorialidade da máquina evocativa e rememorativa da escrita. Mas é sobretudo a própria materialidade da língua, nas associações sonoras e semânticas, na corporalidade perceptiva dos seus sons e sentidos, na dinâmica permutativa e recursiva das frases. Os Três Seios de Novélia contém o genoma da escrita como acto de escrita que exulta com a sua capacidade de invenção, que é capacidade de associação infinita e de ressignificação inesperada, de replicação regenerativa do código verbal. A oscilação entre impulso narrativo e impulso lírico produz, a nível discursivo, um ritmo imagético que ecoa o ritmo sincopado do fraseio sintáctico. E o riso, à beira de estalar a meio da frase -um dos efeitos viscerais da escrita no acto de leitura -,  logo se transmuda em devaneio surreal, em imagem fantástica, em acontecimento recordado, em acontecimento observado. É o histrionismo do acto de escrita que aqui se escreve a si mesmo, e que coloca em dúvida, no próprio momento em que a ela se entrega, a possibilidade de referência extratextual: «E ao fundo da décima sétima página, já na curva para a décima oitava encontro Novélia sentada.» (39)

Tal como a personagem, o escritor surge como um efeito da radiação ontológica da máquina da escrita que o produz como sujeito do seu acto de escrita: «13/ Só tenho uma única ambição na vida: conhecer o Alberto Caeiro. 14/ Dorme à vontade. O pão está já escrito.» (59) Dentro do texto, o mundo é o efeito do seu acto de fala particular, do acto de escrever, que é ao mesmo tempo o acto de fala que o produz como escritor fora do texto e lhe confere identidade social. A profunda consciência do acto da escrita e o encantamento sensorial com as possibilidades narrativas e estilísticas da língua são duas características definidoras da sua obra posterior – uma obra onde o plano do discurso e o plano da estória parecem encantar-se não só com a ficcionalidade da ficção, mas com a ficcionalidade da linguagem. Mais do que a sua dimensão representacional, é esta espécie de luxúria verbal ou de gozo com a língua que constitui a experiência de leitura nos romances de Manuel da Silva Ramos. A sensorialidade da palavra, a sua verbalidade, faz retroceder para segundo plano a arquitectura narrativa, fixando o leitor no desenrolar das próprias frases como essência da narratividade. E é essa função da palavra e da escrita que Os Três Seios de Novélia mostram através da consciência nascente do escritor enquanto scriptor ex machina. O verbo faz surgir o mundo, sim, mas faz surgir sobretudo o mundo do verbo. Um mundo onde é possível ao escritor inventar para os leitores a carnalidade da linguagem que os constitui – escritor e leitores – como produtos e sujeitos de actos de escrita e de actos de leitura particulares.

Manuel Portela

Manuel da Silva Ramos, Os Três Seios de Novélia, Dom Quixote, 2008 [3ª edição]. ISBN 978-972-20-3597-2 [1ª edição, Inova, 1969; 2ª edição, Fenda, 1996]

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