Os Livros Ardem Mal

Aquele querido mês de Agosto (I)

Posted in Crítica by Osvaldo Manuel Silvestre on Sexta-feira, 29-08-2008

Não estava à espera de ser, de modo tão ostensivo, convidado para uma sessão de leitura, quando comprei o bilhete para Aquele querido mês de Agosto, de Miguel Gomes (MG). Afinal, vai-se ao cinema ver um filme português para, entre outras coisas, não ler legendas – se bem que, entrando no fardo técnico do nosso cinema, muitas vezes elas dessem muito jeito (e aliás, estou há muito convencido de que diferenças de recepção entre público nacional e estrangeiro, como, ainda que em menor grau, entre crítica nacional e estrangeira, se devem em boa parte ao facto de estes últimos beneficiarem à partida de legendas…). Ora, o facto é que Miguel Gomes nos propõe uma vasta operação de leitura, a tal ponto que expressões semioticamente neutras, mas entretanto tornadas pedantes na sua proliferação incontida, como «Ler um filme» – quem não se lembra de Gabriel Alves a declarar «João Pinto está a ler a jogada»… -, se revelam subitamente muito adequadas.

Em geral, e por grosso, Miguel Gomes dá-nos a ler versos. Seria um longo debate saber se nos dá a ler poemas, pelo que me fico pela versão empírica ou, se se preferir, de mercearia: versos. Versos de canções pimba, esclareça-se. Porque o génio de MG não está apenas na utilização da música pimba como banda sonora do filme, e aliás muito para lá disso. Está sim na estranha operação, semiótica e estética, que consiste em inscrever nas imagens sempre tão justas do seu filme a letra das canções que o percorrem, ilustram e, ainda, o narram, suturam e dão a ver. O gesto afigura-se redundante, tanto mais que uma das especificidades desta música reside na dicção clara dos seus praticantes que, na descendência de mestres como Roberto Carlos, sempre se preocuparam com a escansão rigorosa de sílabas, hemistíquios, versos e encavalgamentos, muito ao invés, diga-se, de canções como – é apenas um exemplo – as dos Madredeus, que vivem da neblina ontológica da lusitanidade, justamente traduzida na dicção nebulosa de Teresa Salgueiro.

Esta redundância, contudo, é estratégica no filme e revela a inteligência com que MG compõe o plano, função não apenas de uma arte do enquadramento mas sobretudo da composição dentro do plano. Não se trata apenas de optar por uma estratégia de frontalidade, fazendo o plano durar até à exaustão da perspectiva. Como se vê no plano antológico do beijo em cima da ponte, trata-se sobretudo de uma arte da composição: o casal ao meio do ponte, a banda que entra no campo pela direita, o barco que surge a subir o rio pela esquerda. Exemplos destes sucedem-se. É para esta arte que concorre também a inscrição das letras das canções nas imagens do filme. Como sabemos, há uma longa genealogia experimental para este devir multissígnico e multimédia do cinema, das tabuletas e cartazes urbanos de Vertov n’ O Homem da Câmara de Filmar ao Godard da(s) História(s) do Cinema. Esta não parece ser, porém, a genealogia em que MG inscreve a sua prática da legenda neste filme. O gesto é mais deliberadamente primitivo, embora a sua forçosa contextualização por obras maiores da contemporaneidade como a do referido Godard, a que se poderia acrescentar um Greenaway, torne esse primitivismo uma ocorrência singular de fake. Mas apenas no sentido, diria, em que MG se propõe «brincar ao primitivo», decisão estruturante para todo o filme e que o coloca numa temporalidade estética pós-histórica – a da(s) história(s) do cinema que este filme pressupõe e que, à sua maneira, debita (por exemplo, na brincadeira inicial com o dominó que seria genérico do filme, algo entre a elaboração formal de Saul Bass e genéricos de 007). A legenda com a letra da canção não integra o arquivo do musical de Hollywood, a não ser em regime de excepção. Mas, para lá de ocorrer na tradição recente dos video clips mais conceptuais ou paródicos, ocorre nalguns casos maiores da tradição da animação americana, em que a legenda da canção é acompanhada de um outro trabalho de animação sobre as palavras inscritas na película. E, no filme de MG, tem ainda algo, por paradoxal que pareça, do funcionamento da legenda no cinema mudo, sobretudo naqueles casos em que a legenda «resume», sem de facto o fazer, um longo segmento de película que, na verdade, a dispensa; ou em que «traduz», sem o conseguir, o pathos de certos momentos da história, oferecendo o bónus de uma explicação que as imagens igualmente parecem dispensar (mas essa, admita-se, é uma leitura superficial).

As letras das canções do filme de MG produzem assim uma múltipla contradição dentro do plano, e dentro da nossa experiência de visionamento: por um lado, perturbam e distraem-nos da arte da composição, «dando razão» aos defensores eternos da dobragem como tradução mais fiel da experiência mais pura do visionamento fílmico (uma fidelidade na traição, curiosamente); por outro, criam um efeito múltiplo de redundância, já que (i) a dicção perfeita dos cantores dispensaria legendas, e (ii) estas produzem um efeito análogo ao das legendas que «não acrescentam» ao visível. Esta contradição é, contudo, uma das mais produtivas do filme e uma das mais evidentes marcas da inteligência de MG. Porque nela se joga, para começar, a ética deste filme, toda ela feita de uma atenção empenhada e de um esforço de reconhecimento (na acepção de Charles Taylor) que pede uma recodificação, estética e política, de práticas culturais como a «música pimba» (passo, por isso, a referi-la entre aspas). E porque a inscrição das letras das canções nos solicita a operação filológica da lectio stricta ou, se se preferir, o primado do sentido literal, outra forma de investimento ético. «Ler o que lá está», reconhecer que isso está cá e está cá porque, queiramos ou não, existe, com a força serena das evidências. Ler para ver, mas também, inevitavelmente, ler para crer. Mas, antes disso, ler para reconhecer (um gesto de bem-vinda correcção política). Por exemplo, reconhecer que esta música, estes textos, fazem mundo. E que sem os lermos com a atenção filológica ao literal, não entendemos a «estranheza cultural» deste mundo que é também – quem diria?  – Portugal. Resistir ao impulso para o salto para a interpretação, diferindo-o apenas para o momento posterior à decodificação/compreensão, já que sem essa diferição a interpretação é insustentada – e, inevitavelmente, sustentada apenas no preconceito.

Ou seja; não apenas uma filologia mas, em rigor, uma etnografia da leitura. Nunca as duas disciplinas – cuja intimidade Jorge Luis Borges explorou genialmente no conto «O etnógrafo» – estiveram tão próximas. E nunca foi pois tão justa, e tão imperativa, a expressão pimba «Ler um filme».

Osvaldo Manuel Silvestre

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