Os Livros Ardem Mal

Vulcão (II)

Posted in Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Segunda-feira, 24-03-2008

photomatonHá qualquer coisa simultaneamente da ordem do filológico e do fetichista no culto das «primeiras edições». O mesmo é dizer, há uma verdade do material no livro original que se perde nas reedições, sobretudo quando estas alteram, por exemplo (e é desse exemplo que quero começar por tratar), a capa original. Penso na edição original de Photomaton & Vox, de Herberto Helder, de 1979. Na capa, a famosa tela de Magritte «Reprodução proibida», em que um espelho devolve a imagem do indivíduo de costas, recusando-lhe o reflexo e a reprodução que não recusa ao livro que, no rebordo do espelho, marca o contraste mimético. A imagem da capa recusa, digamos, o título do livro; e o poeta encena, por seu intermédio, a sua Grande Recusa, que os anos viriam a intensificar. O Magritte da capa torna o livro indissociável de uma ideia, muito pregnante na modernidade, de negatividade (estética e não só): como já escrevi algures, é-me difícil não pensar em Adorno quando observo a capa do meu exemplar da 1ª edição de Photomaton & Vox. As edições subsequentes da obra subtraíram-nos a tela de Magritte em favor de um cromatismo puro e intenso que não consigo contemplar sem decepção (assim como, já agora, me decepcionam quase sempre as correcções que Helder introduziu nas versões subsequentes: uma versão helderiana, creio, daquela auto-correcção supostamente desastrada que em tempos, em Edoi lelia doura, o autor imputou à mão tardia de Pascoaes, preferindo as primeiras edições).

Um caso diverso ocorre quando os livros originais são subsumidos na figura da Obra Completa, tornando-se assim irrepetíveis e, logo, «raridades». É o que ocorre com Vulcão, editado na colecção de poesia da Quetzal, desenhada por Rogério Petinga, e entretanto incluído na Poesia Completa do autor, na D. Quixote. Gosto destas capas, desde logo porque aprecio capas «de colecção», sempre muito difíceis de criar, sobretudo quando conciliam o gráfico e o figurativo (e é difícil não pensar, a propósito disto, nas capas das colecções de poesia da Gallimard/nrf e da Faber, casos muito raros de felicidade gráfica e tipográfica, às quais associamos a grande poesia francesa e inglesa, pelo menos). Se não erro, a sorte da capa de poesia da Quetzal foi decretada quando, numa colectânea da poesia completa de Vasco Graça Moura, nos deparámos com a foto do autor: uma espécie de assassínio público de uma capa e de uma colecção.

[clique para ampliar]A ficha técnica de Vulcão informa-nos que se trata de «Capa de Rogério Petinga sobre quadro de Diego Rivera (1886-1957), ‘Vulcão em Erupção’ (1943)». Pouco sei de Rivera, cuja arte sempre me interessou moderadamente. Mas esta obra é uma escolha muito feliz para a capa de Vulcão. Não por, ao contrário do Magritte escolhido por Helder, ilustrar mimeticamente o livro cuja capa integra, mas por o ilustrar em sentido forte. Creio que só o facto de os amantes de literatura e poesia serem em geral pessoas desatentas aos aspectos gráficos do objecto-livro permitiu que se vulgarizasse uma interpretação de Vulcão ao arrepio da imagem proposta para sua ilustração. A tela de Rivera é um espécime tipicamente moderno e modernista. Não custa imaginar Clement Greenberg relevando a flatness desta representação de um vulcão cujo drama é essencialmente cromático: laranjas e roxos. Apesar do protocolo mimético das cinzas do primeiro plano – um primeiro plano por convenção, não pela profundidade que o quadro não gera e cuja ilusão denuncia, na sua agressiva indiferença à própria ideia de profundidade -, este vulcão é estranhamente festivo e, sobretudo, deve mais à arte do cenógrafo do que à do pintor (que, percebe-se, é bem mais muralista do que pintor). O que este vulcão de Rivera nos diz sobre o vulcão de Luís Miguel Nava é que a «profundidade» da/na representação é uma ilusão (da) técnica, qual ela se apreende na expressão «profundidade de campo», da terminologia do cinema, essa arte radicalmente desprovida de profundidade: imagens, falsamente animadas, projectadas sobre uma parede. Não há profundidade no mundo de Nava, tal como em Vulcão não há «cenas de exteriores» ou sequer «pintura do natural». Apenas cenas de estúdio, efeitos de cenário e, por vezes, efeitos especiais em regime quase sempre artesanal: às vezes Bacon (cujo encontro com Nava, Carlos Mendes de Sousa analisou admiravelmente) revisitado por um pintor da superfície como Rivera, às vezes Ballard ou Gibson filmados pelo Cronenberg de ExistenZ.

E, tal como no extraordinário filme de Cronenberg, nunca temos a certeza de estar definitivamente fora do filme ou, sequer, que ele alguma vez acabe.

Osvaldo Manuel Silvestre

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