¡No pasa nada!
Lá no seu assento etéreo Fernando Pessoa deve dar pulos de satisfação. O sistema ortográfico que ele nunca reconheceu nem utilizou tem os dias contados. Bem vistas as coisas nem era assim tão mau. Tinha apenas um grande defeito: era apenas o sistema ortográfico de um reduzido número de falantes da língua portuguesa.
Ou talvez não: para a meia dúzia de intelectuais irredutíveis, empoleirados numa turba ignara que julga que a ortografia portuguesa se mantém igual desde o Milagre de Ourique, o Português tem 200 milhões de falantes à segunda, à quarta e à sexta, e 10 milhões à terça, à quinta e ao sábado. Ao domingo não há cifras, pois é o dia do Senhor.
Do outro lado da barricada está o prof. Malaca Casteleiro. Ainda há dias o ilustre académico, envolvido desde o início do processo nas negociações com o Brasil, se lamentava da pouca vontade política dos governantes portugueses na ratificação do acordo ortográfico. Logo que o acordo foi ratificado, Malaca Casteleiro e a Texto Editora apressaram-se a colocar no mercado os primeiros dicionários adaptados à nova ortografia. Se a maior parte dos editores se lamentava pelos prejuízos que a reforma ortográfica lhes iria trazer, também há quem pense ganhar dinheiro com a reforma.
Vale a pena comprar desde já esses materiais bibliográficos actualizados? — perguntará o leitor ou a leitora. É claro que sim, se quiser surpreender a sua namorada ou o seu namorado com a primeira carta de amor na novíssima ortografia. Mas se já for casado ou não tiver namorado/a, não precisa de se precipitar. Tem pela frente seis anos de adaptação ao sistema ortográfico agora ratificado. E se o leitor passados vinte anos continuar a escrever como até aqui, desafiando a vergonha pública do seu filho, que não compreenderá que o seu progenitor escreva de uma maneira que «não tem nada a ver» — isto é, se fizer como o Fernando Pessoa —, pode crer que «no pasa nada».
Esta reforma ortográfica promete não ser imposta como a anterior: à palmada.
António Apolinário Lourenço
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