Os Livros Ardem Mal

Da liberdade de expressão

Posted in Diálogos by Pamplinas on Domingo, 06-09-2009

– …porque, meu caro Pamplinas, a liberdade de expressão é sagrada! E inegociável!
– Direi mesmo mais, meu caro Q.: a liberdade de expressão é sagrada e inegociável!
– Lembra-se da frase do Voltaire? Aquela em que ele diz que poderia discordar radicalmente de outro mas morreria pelo direito do outro a exprimir-se…
– Sim, claro (há coisas assim no Antero, sabe?). Muito comovente.
– …e cortante! É o que nos distingue do resto do mundo, é o que fundamenta o nosso direito etnocêntrico ao orgulho por vivermos na nossa civilização e não noutra. Ou você preferia viver na China? Ou na Rússia de Putin?
– Como sabe, não me imagino a viver numa pátria onde não haja bacalhau à Brás.
– Seja sério, carago! A gente a discutir os grandes princípios e você com o bacalhau! Bacalhau não faltava no tempo do Salazar!
– Bem melhor do que o de hoje, ao que me dizem! Seco ao sol em Aveiro e não em estufas na Noruega… Uma deriva lamentável.
– Como tudo o que ponha em causa a liberdade de expressão! Embora, sabe, a liberdade de expressão, entendida à letra e em rigor, seja dureza
– …
– Ah sim, não faça essa cara! Mas é nessa dureza que reside a sua beleza, sabe? Em termos de suportar coisas como, sei lá, os Larry Flint deste mundo!
– O benemérito da Hustler?
– Exacto. Um herói do combate pela liberdade de expressão, como sabe… Porque você tem de admitir que lutarmos pelo que não amamos é duro…
– Mas belo. Ser-se altruísta é sempre belo! E não é possível lutar-se pela liberdade de expressão sem se ser altruísta.
– Uma beleza dura, Pamplinas… Já pensou no rol dos abusos? A invasão e devassa da privacidade, a mentira, a calúnia, a difamação, o insulto…
– Ena…
– … o mau gosto, a boçalidade, a alarvidade, a total ausência de reserva e cuidado, a dessublimação de tudo, a começar pelo sexo e a terminar nos bons sentimentos e nos afectos puros, objectos de escárnio e cinismo…
– Eh lá! Você por esse andar está a suspirar pelo Diácono Remédios!
– Sabe que às vezes, de facto, sou tentado a…
– Vade retro! Mil vezes o Howard Stern!
– Hã?
– Vejo que você não assistiu à entrevista que ele em tempos fez à Traci Lords. Uma das minhas mais empolgantes memórias…
– Tou a ver para que lado cai o seu amor à liberdade de expressão…
– Isso é perfídia e calúnia, Q. Mas como sou seu amigo e defendo a liberdade de expressão sem peias, não lhe levo a mal.
– Bom, de facto…
– Sim, que eu defendo uma democracia radical, aquela democracia em que se possa dizer tudo! Perde-se sempre eticamente mais com a censura do que com os eventuais atropelos cometidos pela liberdade de expressão.
– Tem razão, claro. Onde tinha eu a cabeça? Esse é o argumento central e decisivo. É justamente por isso que a liberdade de expressão é sagrada!
– E inegociável! 
– Direi mesmo mais, Pamplinas: a liberdade de expressão é sagrada e inegociável!
– Nem mais! Se bem que…
– Então?
– É que quando leio o João Querido Manha no Record ou o José Manuel Delgado n’A Bola, ou quando vejo na TV «o comentador que o país consagrou»…
– O Marcelo?
– O Rui Santos, homem! Nessa altura pergunto-me se a liberdade de expressão de facto justifica tudo…
– Eh lá! Agora é a minha vez de frear essa deriva censória.
– A mim parece-me antes uma questão de gosto. De bom gosto…
– Daqui a bocado você quer também censurar o Tony Carreira!
– Não cometo a deselegência de pôr no mesmo plano um artista como o Tony Carreira e as figuras que referi…
– Mais uma vez se vê como as políticas do gosto tendem à censura!
– Você confunde bom gosto com censura?
– Oh meu caro, e há lá diferença entre a tirania do bom gosto e a censura? Olhe, é melhor é suspendermos este debate, que receio seja insanável, em torno de um café.
– Lá isso, concordo. O cafezinho é sagrado!
– E inegociável!

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