Os Livros Ardem Mal

O visível e o invisível em Paulo Valverde

Posted in Artes, Autores, Edição, Efemérides, Livros, Vária by Luís Quintais on Domingo, 10-05-2009

670954[Paulo Valverde. Fez agora em Abril passado, mais precisamente no dia 4, dez anos sobre a morte daquele que terá sido porventura um dos mais significativos antropólogos portugueses de sempre. Dir-se-á que é fácil atingir essa meta, porque a concorrência sempre foi de pequena monta. Sim, sem dúvida. Mas para quem alguma vez assistiu a uma aula deste homem que morreu com 37 anos, ou para quem teve o prazer de ler as suas páginas hoje tão esquecidas, a sua celebração é incontornável. Nesse sentido, gostaria de deixar aqui um ensaio meu já com alguns anos que desenvolve algumas linhas de interpretação do que poderá ser a sua escrita e a sua estratégia de recodificação desse «texto» que é a «cultura». O ensaio faz remissões ao livro póstumo que inclui muitos dos seus trabalhos mais teóricos e uma parte que creio substancial dos seus diários e notas de campo. Serve também o presente post para chamar a atenção para esse livro que deverá estar, estou certo disso, a apodrecer, exemplares muitos, nalgum canto escuro de um armazém de refugos. Triste sorte para um prosador extraordinário cuja escrita terá pouquíssimos antecedentes entre nós, e que, no seu melhor, ombreia com páginas de Malinowski e de Leiris. Ah, é verdade, aí vai a referência: Paulo Valverde, Máscara, Mato e Morte. Textos para uma etnografia de São Tomé, Oeiras, Celta, 2000.].

Entre a pequena comunidade de antropólogos sociais portugueses, é reconhecida a enorme perda intelectual e afectiva (sobretudo para aqueles que com ele privaram de perto) que representou o falecimento prematuro de Paulo Valverde (1961-1999). Vítima de malária contraída em São Tomé, Paulo Valverde afirmar-se-á cada vez mais como uma espécie de personificação trágica e mítica da figura do antropólogo enquanto herói. Não no sentido lévi-straussiano do termo, isto é, enquanto herói civilizador capaz de resgatar o fogo sagrado de culturas cujo recorte elegíaco ou crepuscular se tornou forçosamente aparente durante o século XX. Mas antes como aquele que, compreendendo o quanto há de culturamente perverso nas modalidades salavacionistas mais ou menos declaradas mais ou menos conscientes da disciplina, se afadiga em traçar-lhe novos rumos não apenas metodológicos (Paulo Valverde era alguém que, comprometido com uma dada tradição metodológica, o fieldwork situado e localista, parecia cada vez mais incomodado com os seus limites) , mas também, e com especial ênfase, novos rumos analíticos. O heroísmo, a haver um, está na determinação e no seu risco (um risco que ele assumira e que pode ser qualificado igualmente pela intimidade cultural, sem par entre os antropólogos sociais portugueses das últimas décadas, que foi assegurando no terreno). Paulo Valverde acreditava na possibilidade da disciplina se reconstituir enquanto analítica das metanarrativas modernas, entre as quais se encontrariam, certamente, os projectos salvacionistas e politicamente correctos evidenciados por tantos dos seus contemporâneos, e, de forma particularmente indiossincrática e inquestionavelmente sedutora, demonstrava-o através dos seus textos, aulas, e inúmeros momentos de discussão informal de que poderam beneficiar todos aqueles que foram seus alunos e colegas.

Mas não é sobre isto que quero falar.  Quero antes debruçar-me sobre um outro aspecto, aquele que se prende com a afirmação de um conhecimento poético nos seus textos. O que mais me move hoje é, indubitavelmente, o projecto de reencantamento do mundo que ele nos propõe em inúmeras passagens de Máscara, Mato e Morte. É a poética de Paulo Valverde que se encontra aqui em questão, e que será equacionada à luz de um dos seus eixos e algumas das suas variantes combinatórias. Paulo Valverde promovia a transfiguração do real através de uma função simbólica como aquela que só a melhor poesia pode revelar. Recordo-me, em particular, das apaixonadas discussões que travei com ele acerca da poesia como uma forma de conhecimento. Da poesia como uma forma de resistência. Da poesia como um modo de fazer mundos, a parafrasear o filósofo Nelson Goodman que ele tanto apreciava e que me deu a conhecer num dos seus constantes lances de generosidade intelectual. Falei de Goodman, mas poderia falar de Merleau Ponty, cujo Le Visible et l’ Invisible o tocou indelevelmente. A poética de Paulo Valverde é uma constante procura do ver e do não ver, dos limites do visível, dos interstícios e porosidades, transportes e ambiguidades, entre o visível e o invisível, entre o exterior e o interior. Não sei se lhe interessavam mais as categorias de per si – visível, invisível, exterior, interior -, se as fronteiras que regulam e desregulam (perturbadoramente) os princípios de ordem cultural e simbólica entre categorias. Há múltiplas formas de o compreender através dessa ruína magnífica que é Máscara, Mato e Morte. Atente-se na sua incursão em torno das metáforas visuais em São Tomé (pp. 259-263). Atente-se na poderosíssima análise de «Tudo o que tem nome existe» (pp. 142-156). Atente-se na sua reflexão sobre o pintor Pascoal Viegas (Canarim) (pp. 81-83). Atente-se ainda em alguns dos seus apontamentos mais obsessivos sobre a metafísica do olhar, de que deixo aqui registadas algumas das passagens mais sintomáticas:

«O olhar é investido de uma hiperelaboração simbólica e é considerado como um locus de agencialidade. Pelos olhos é possível transformar as relações sociais, reconfigurar o corpo e o eu de outras pessoas e, inclusive, reformular por extensão, os limites da realidade – ou seja, é possível ver seres e materiais inacessíveis ao indivíduo comum, captar uma dimensão metafísica que, nesta ontologia, é uma dimensão quotidiana, que nos envolve e que só a nossa miopia nos impede de apreender. § Nesta construção do olhar, está também inscrita uma lógica do poder, a presunção de que é possível exercitar poder sobre os outros de uma forma não táctil. Os olhos são repositórios de uma força latente, inapreensível – a não ser para o observador mais arguto ou para indivíduos identicamente dotados -, ‘invisível’, que, em determinadas circunstâncias, que nem sempre relevam da volição do indivíduo, podem ter uma materialização. A distância física, a espacialidade, são relativizadas pelas emanações do olhar que, de um modo intangível, comunicam entre o indivíduo que olha e o objecto do seu olhar» (p. 50).

Seja como for, é justamente o tchiloli, uma «teatralização de uma ontologia» (p. 7), que convoca de forma mais articulada as categorias de visível e invisível e as correlatas exterior e interior. A relevância analítica do tchiloli reside no facto das performances ritualizarem e reactualizarem constantemente valores caros à sociedade são-tomense. Numa incursão que recorda, pontualmente, as propostas de Geertz sobre o wajang balinês (em que Geertz vai exumar toda uma etnopsicologia a partir daquele teatro de sombras), Paulo Valverde refere «as imbricações mais ou menos subtis entre o tchiloli e a cultura e a cosmologia ‘tradicionais’ partilhadas por muitos são tomenses» (p. 17), deslindando através delas toda uma «reflexão sobre problemas e dilemas existenciais que são cruciais na experiência humana» (p. 18). A tragédia, forma de reflexividade e de inflexão distanciadora, forma de reinvenção de memórias corporais e vivenciais significativas, é um dos modos de «dramatizar um mundo muito diferente do mundo quotidiano», de «realização prática» de uma diferença e de uma impossibilidade no território da semelhança, ou, e a usar ainda as suas palavras, «da vinda de um lugar diferente» (p. 19). Um modo de «mudar o mundo mais imediato», de o fazer, a reiterar o ponto de vista goodmaniano em que Paulo Valverde se situava. Uma realização poética do mundo que, fazendo assentar as suas premissas no par visível : invisível :: exterior : interior, procura equacionar-lhe as fronteiras, as zonas de permeabilidade e de passagem, os momentos de indefinição classificatória, e os eventuais perigos e ameaças metafísicos a que se sujeitam os performers. Três momentos da sua investigação e definição destes jogos eventualmente comprometedores para a identidade dos sujeitos e da comunidade, podem ser detectados na reflexão que nos dá do tchiloli. tchiloli
Em primeiro lugar, a sua reflexão sobre o «hiperespaço» que a tragédia cria incessantemente através de uma movimentação difusa dos seus intervenientes em que os papéis de actores, figurantes, e espectadores são constantemente postos à prova (ainda que nem sempre abolidos). Escreve ele:

«o espaço da representação do tchiloli é, assim, um espaço sem fronteiras, em que são ténues e indefinidos os limites entre o interior e o exterior da representação. Em parte, a sobriedade e o minimalismo cenográficos levam a que, algumas vezes, o ‘interior’ da performance coincida com o corpo ou os corpos dos figurantes – ou com as zonas mais imediatas que os rodeiam – que, num determinado momento, actuam, o que poderia levar à reformulação do meu argumento sobre o carácter ténue e indefinido das fronteiras entre o interior e o exterior: as fronteiras do rectângulo são móveis, dinâmicas, permanentemente reconstruídas e renegociadas – em especial, através da inscrição dinâmica dos corpos dos figurantes no espaço» (p. 23).

E seguindo de perto Frederic Jameson:

«O espaço da tragédia tende a ser uma forma particular do ‘hiperespaço’, que Frederic Jameson considera distintivo de alguns edifícios pós-modernos: um espaço de ‘ambiguidades perturbadoras’ […] em que as descontinuidades entre o interior e o exterior são, subtis e, por vezes, confusas, em que são perturbadas ‘as capacidades de localização do corpo humano individual, da organização perceptual do ambiente que o envolve e da cartografia da sua posição num mundo exterior cartografável’. § É esta configuração hiperespacial que leva o espectador, conforme o seu saber da economia do tchiloli, à participação e à deambulação – o espectador flâneur está familiarizado com as subtilezas espaciais do tchiloli – ou ao desassossego e à perturbação. O espectador neófito, sobretudo o ocidental, desconhece as entradas, os percursos e as saídas possíveis – porque invisíveis e não monomentalizadas em portas, corredores, intervalos entre cadeiras, etc. –, não ousa penetrar no espaço da performance e, por vezes, pode confundir o espaço vazio do terreiro – quando, por exemplo, o centro dramático está oculto na Corte Alta – com um tempo performativo vazio. Um dia, um espectador português perguntava, neste momento, se era intervalo!» (pp. 23-4).

Em segundo lugar, a sua reflexão sobre a natureza dilemática entre as razões de sangue e as razões de Estado – que Paulo Valverde persegue através de uma economia interpretativa notável que tem por eixo as considerações que Isaiah Berlin tece sobre Maquiavel (pp.  29-30). O drama põe em jogo a insanável e insuperável dicotomia entre a identidade privada (associada ao sangue e à emoção) do sujeito e a sua identidade pública (associada aos desígnios da pólis). O Imperador Carlos Magno é aquele que, face ao homicídio do filho, o Príncipe Dom Carloto, deve optar entre as razões do sangue e as razões do Estado (que exigem reparação). O tchiloli é afinal a tragédia da decisão, enunciando a aporia (e deixando-a em grande medida em aberto) que se instala entre a identidade interior e invisível do indivíduo e a sua identidade exterior e visível. Aquela permance constantemente sob ameaça, e a esta última afirma-se pela sua natureza fortemente dramatúrgica, que, envolvendo sabiamente a primeira, a protege, a resguarda de perigos que endémica e difusamente se fazem inscrever nesse território móvel que é a cosmologia são-tomense (o que é replicado na dualidade dos nomes que escondem e dos nomes que revelam exemplarmente investigada em «Tudo o que tem nome existe» (pp. 142-156). As fronteiras entre estas duas ordens tem de estar constantemente a ser recriada e reiterada. E, neste sentido, o tchiloli é também uma instância de constituição e reconstituição de fronteiras simbólicas decisivas à vida social são-tomense, e um exercício de determinação e qualificação do poder:

«É o dilema entre os deveres ligados à família e os ligados ao exercício da política pública, “como parte da situação humana normal”, que o tchiloli dramatiza e, por isso, ele é uma tragédia ou uma poética desabusada do poder mais do que um cínico meeting político. Em situações-limite, o governante precisa de escolher, ou então, como algumas versões orais do tchiloli insinuam, tomar publicamente uma opção pela justiça e pela lei e, clandestinamente, fazer com que outros, sequazes e apaniguados, garantam a defesa da família e das suas lealdades, mesmo que por meios escusos e criminosos» (p. 30).

S7000683Em terceiro lugar, reportar-me-ia a uma das noções mais axiais do trabalho de Paulo Valverde, a noção de «máscara». É aí que percebemos como o tchiloli, tal como o wajang balinês, faz inscrever no seu tecido dramatúrgico uma etnopsicologia de geometria variável. Ele é, como refere o nosso autor, uma «teatralização de valores morais cruciais, de diferentes concepções da pessoa humana» (p. 31), desencadeando «uma reflexão em acto, a presentificação e a recriação de uma ontologia», entendendo Paulo Valverde por ontologia, «muito esquematicamente», todo “um conjunto de reflexões, mais ou menos contraditórias, sobre a qualidade da pessoa humana, os seus limites e o seu lugar no mundo, e sobre o próprio mundo e as suas fronteiras». O exercício dramatúrgico de invenção (descorberta e criação) de fronteiras que o tchiloli promove é assim um exercício carregado de perigos que a máscara evidencia. Ela tematiza e ritualiza, por um lado, «a ilusão e o perigo das aparências – dos seres humanos ou do mundo físico que pode conter ciladas ocultas» (p.35), e, por outro, assume-se como um mecanismo de protecção sem o qual a mise en abîme da vida social poderá ser eventualmente letal. Como escreve Paulo Valverde:

«Mais do que conclusões politizadas, a lição que a tragédia oferece incessantemente é um comentário sobre o modo como deve ser a experiência criativa da pessoa humana neste mundo difícil e injusto: se o figurante, e, em geral, o ser humano, prescindir da sua máscara, real ou simbólica, pode expor-se fatalmente, ao tornar-se vulnerável face aos rivais e à própria morte, a suprema cilada do mundo» (p.37).

A poética contida nas páginas dos ensaios e notas etnográficas contidas em Máscara, Mato e Morte, é assim uma poética do invisível que nos revela constantemente a multidimensionalidade da experiência humana. Um dos seus contributos mais generosos prende-se, a meu ver, com a forma como etnograficamente nos demonstra os incomensuráveis em que se funda esta experiência. Assim, Paulo Valverde tendo por esteio da sua antropologia da experiência, as dicotomias visível : invisível :: interior : exterior,  mostra-nos como não há reflexão sobre o poder que anule uma reflexão sobre a ontologia, e que é na recursividade entre a primeira e a segunda que poderemos, talvez, aceder a esta multidimensionalidade e também aos sortilégios que ela convoca.

[Texto originalmente publicado em Antropologia Portuguesa, 20/21, 2003/2004, pp. 3-9.]

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