Os Livros Ardem Mal

Et in Arcadia ego: o corvo de Rui Lage (VI)

Posted in Crítica, Poesia, Recensões by Osvaldo Manuel Silvestre on Quinta-feira, 26-03-2009

A Arcádia transmontana, como vimos antes, é tanto uma retórica da terra como uma retórica da temporalidade. Em «Vida moderna», antepenúltimo poema do livro, o sujeito senta-se numa pedra, «ciente de que a pedra / jamais se recompôs / do poema de Carlos Drummond» e desembrulha uma sandes de queijo que come devagar «enquanto os cavalos olham desconfiados / sem que deixem por isso de pastar». A cuidada disposição da cena evidencia o entre-lugar deste sujeito, que contempla signos oraculares da imobilidade de um mundo enquanto se entrega a uma prática que define a aceleração da vida moderna: a fast food (em versão domesticamente aceitável, digamos). O módico de idílio da cena é porém «comentado», de forma irónica, por um telemóvel que «expulsa» os pássaros:

Mas devia ter deixado
o telemóvel em casa:
trouxe-o comigo,
não tenho por isso agora
pássaros a cantar.

Os pássaros não parecem ser expulsos do mundo, mas antes do poema ou, pelo menos, do mundo que atravessando o sujeito se faz poema: é porque o telemóvel preenche o espaço fenomenal reservado à escuta que os pássaros não conseguem ser (ascender a) matéria textual. Não se trata tanto de declarar «A Arcádia não mora aqui» mas antes de admitir, com o upgrade induzido pelo telemóvel, a constituição tecno-pastoral deste sujeito «transmontano»: uma prótese da (e de) origem, que faz da proximidade ao mundo pastoral uma hipótese diferida por uma infindável série de mediações (a pedra que é afinal, e necessariamente, a de Drummond, o telemóvel que está pelas aves canoras).

Na sintaxe do livro, dir-se-ia que este poema, e a sua tonalidade propositadamente desfasada em relação ao universo do livro (e aos anteriores poemas), comenta, por contraste, aqueles poemas que introduzem no livro um elemento conatural à pastoral transmontana, tal como ele nos foi legado pelo Pai Fundador na nossa literatura moderna – Torga, obviamente – e não mais que modulado, em regime de «variação sobre um tópico cultural» à distância (uma distância não equidistante nos dois casos), pelos já referidos Pires Cabral e Joaquim Manuel Magalhães: o cinegético. Refiro-me aos poemas «No caminho do caçador» e «Caça grossa», que prestam reverência nominal a um universo que serve, desde logo, o propósito de aferir a distância cultural a que nos encontramos hoje do tempo em que o cinegético definia a pastoral transmontana. Não se trata agora de fazer, como em modo menor também se faz em «Vida moderna», com que a tecnologia instile, na pastoral, o desfasamento da sua representação na modernidade, o que seria uma versão curta, porque meramente histórica e sociológica, de tudo aquilo que a Arcádia diz neste livro. Trata-se, sim, de fazer habitar a Arcádia transmontana por uma ferida matricial e fatal: a do memento mori. Em «Caça grossa», o poema dispõe-se numa composição admirável na sua temporalidade invertida, digamos: «duas raposas recém-nascidas» … «sacodem dejectos de sol». Essas raposas que

Indiferentes ao milhafre
e à doninha,
em qualquer colo felizes
de qualquer leite beberiam.

O fim do poema, porém, mostra-nos, por um efeito não de suspense mas de surpresa, que estas raposas «em qualquer colo felizes», são já órfãs, pois «numa porta de estábulo / imunda e carunchosa / o sangue secou no ruivo pêlo / e na materna cabeça a pólvora / onde a bala deu entrada». O verso que, do «Corvo» de Poe na tradução de Pessoa, o poema incorpora – «no Éden / de outra vida» – revela assim a sua amarga verdade: a Pastoral transmontana como não-Éden, a Arcádia como universo regido pela predação e pela verdade profunda da orfandade do ser.

«No caminho do caçador» poderia ser visto como uma ode ao caçador e ao modo cinegético de apropriação do mundo natural, em versos tão transfiguradores, e tão pastorais, como estes: «Cardumes de nuvens passam / há vitrais no chão da floresta. // Subiste os degraus que o fim da tarde / lançou entre colinas e pastagens, / escutaste a música sacra / dos rebanhos regressando pela fresca». A ode devém contudo elegia no final do poema, quando entra em cena o corvo:

Mas já vês sangue
no bico fendido do corvo
– estava no caminho do caçador
e tem apenas
alguns segundos de vida.

O sangue «no bico fendido do corvo» é talvez o signo maior da ferida que habita a pastoral deste livro. O corvo está no caminho do caçador e esta intromissão e perturbação do cinegético não parece ser explicável ou gerível senão por uma temporalidade mítica. O pitoresco cinegético revela aqui a sua face hipocrática enquanto cena da predação; e esta habita a temporalidade mítica da Arcádia, tal como o bico fendido do corvo estilhaça e engole, no seu abismo de trevas e sangue, o Éden de outra vida que é sempre (o mesmo é dizer: que nunca é) o da Arcádia. Não é só o corvo quem tem «apenas / alguns segundos de vida». É a própria coisa pastoral que é vitimada pela falsa vítima que é o corvo, esse ilusório cordeiro do sacrifício que gralha o seu áspero «Nevermore» como quem inscreve no portão do «reino maravilhoso» a verdade da (sua) mentira.

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