Os Livros Ardem Mal

Inquérito OLAM: Alexandre Andrade

Posted in Inquérito by OLAMblogue on Quinta-feira, 05-03-2009

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Alexandre Andrade é professor no Instituto de Biofísica e Engenharia Biomédica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Estreou-se em 1997 com o romance Benoni, tendo publicado em seguida os volumes de contos As Não-Metamorfoses (2004) e Cinco Contos sobre Fracasso e Sucesso (2005) e, ainda, o romance Aqui Vem o Sol (2005). É autor de umblogsobrekleist. Agradecemos a Alexandre Andrade a disponibilidade para colaborar no nosso inquérito.

1) Qual é, em seu entender, o melhor livro de ficção (romance, novela ou conto) portuguesa do século XX? Porquê?
 
Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio. Esta escolha diz tanto da excelência que reconheço a este romance como à constatação de que os autores essenciais da ficção portuguesa moderna construíram uma obra espalhada no tempo, por meio de aproximações, acrescentos, declinações sucessivas, teses e antíteses respondendo umas às outras através dos anos, aparentemente livres da ambição de redigir A Obra Definitiva que resumisse e dispensasse as restantes. Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira, Maria Velho da Costa – todos eles escreveram o “melhor livro de ficção” do século XX, mas a prestações, ao longo de uma vida. Se o objectivo é o de associar um superlativo a um único livro, os candidatos, parece-me, não são legião. Para além do que elegi, ocorrem-me A Casa Grande de Romarigães, Uma Abelha na Chuva, e poucos mais.

Mau Tempo no Canal consegue conter, sem entrar em colapso, uma absoluta limpidez e uma consciência profunda do que de movediço e insondável encerram os seres humanos. Edificado em moldes essencialmente clássicos, esvazia de sentido qualquer discussão em torno da sua posição na literatura portuguesa, em torno de eventuais dissonâncias com tendências ou correntes, contemporâneas ou por vir. Este romance limita-se a existir, soberbo, mas sem reivindicar. A literatura portuguesa continuaria a ser o que é, com ou sem ele. O facto de não se encontrar em nenhuma encruzilhada dos rumos da ficção nacional é uma virtude inestimável. Ninguém o encontra pela frente como resultado de ter seguido um itinerário, ou por afinidade. Inteiro e agreste, só o encontra quem o deseja encontrar.

2) Qual é, em seu entender, o melhor livro de poesia portuguesa do século XX? Porquê?

Poesias, de Álvaro de Campos. O título é o da edição da Ática, aquela que primeiro me passou pelas mãos. As edições da Assírio & Alvim são já do século XXI, o que as desqualificaria para os efeitos deste inquérito. Bizantinices à parte, a minha escolha incide sobre o corpo de versos do “Engenheiro”, seja qual for o avatar impresso que se queira citar. Desejaria que a brevidade da minha justificação contrastasse com as efusões palavrosas que, sobre estes poemas, tantos já debitaram. Nos versos de Campos, lê-se com dolorosa nitidez a ambição de criar uma literatura completa, ainda que isso implique precipitá-la no seu inevitável abismo. A vitalidade e a generosidade criativa já transportam a ressaca de acédia funesta, de vazio e de morte. Esta encenação de uma pulsão poética que se ergue e soçobra nunca foi ultrapassada, nem em intensidade nem em subtileza. Aquilo que, num autor menor, seria receita garantida para um malogro ridículo – falo da tentação confessional modulada e potenciada pelo intelecto – resulta, aqui, em algo de grandioso, inquietante, intemporal.

3) Se a pergunta não fosse «qual o melhor» mas sim «qual o mais importante», as suas respostas seriam as mesmas ou seriam diferentes? Em quê, no segundo caso?

Fazer intervir o conceito de “importância” implica ampliar o campo semântico de “valor”, olhar para lá de cânones pessoais ou consensuais, acrescentar outras dimensões à da excelência literária. A multiplicação das vias que se abrem justificaria uma resposta interminável, que cobriria as vertentes social, geracional, historiográfica, íntima, ideológica… Se se obrigasse a ser minimamente exaustivo, ao entrevistado não restaria outra alternativa que não fosse entregar-se à exploração daquilo que confere importância à literatura, e, por arrasto, à exposição da sua vida e daquilo que o move e empolga. O interesse das perguntas 1) e 2) concentra-se, a meu ver, na latitude de interpretação que cada entrevistado se permite quando se trata de hierarquizar livros segundo a sua qualidade, na ousadia de que dá mostras perante a imposição. A pergunta 3) redunda num convite tácito para escrever uma história pessoal da literatura portuguesa.

A “importância” é um cavalo de Tróia que eu faço questão de manter fora das muralhas. Em jeito de Cassandra vagamente desapontada com o seu próprio excesso de zelo, limito-me a confirmar que, pois claro que sim, as minhas respostas teriam sido diferentes. Alegria Breve, A Corte do Norte, Obra Breve, A Gata e a Fábula, algum José Rodrigues Miguéis, O Anjo Ancorado, Lisboaleipzig, Quatro Caprichos, oiço-me a mencionar. Porque importam.

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