Et in Arcadia ego: o corvo de Rui Lage (IV)
Talvez não seja necessário fazer disto um elogio da coerência interna da obra de Rui Lage, mas é difícil não reconhecer, em alguns poemas de Revólver, o anúncio, se não o programa, de Corvo. Refiro-me à secção III do livro, «Caça Furtiva», e ao poema que a abre, «Mad Max», um «filme de percurso» enunciado no dístico inicial: «Farei o caminho que leva / da cidade à floresta». A cidade é aqui a marcada pelo subúrbio e pela conurbação, numa sucessão de paisagens que diríamos ballardianas – «Altares de sucata, retábulos de pneus / carros com simpósios de heras e rosas» -, não se desse o caso de a descrição ser ainda comandada pelos códigos do «realismo social» que prescrevem um sentido político a um ponto de partida muito situado: «o caminho que começa / em bairros sociais».
O sentido vai-se porém perdendo no percurso, que desemboca em «pinhais duvidosos» e na paisagem de uma continuada perda de referências: «porque parti de sítio nenhum / (parti, por exemplo, de ti) / com imensa saudade / da cidade que esqueci.» O poema seguinte, «Hominídeos (ode ao Vale do Rift)», desloca o «filme de percurso» para a filogénese, concluindo, após o espectáculo terminal do «longínquo temor das coisas longínquas / no ecrã que faz dançar o sofá / com estranha luz de plasma e alta definição», que
Morreremos sem pisar de novo
a terra firme da savana.
Esqueceremos Lucy, seus frágeis,
ternos ossos,
esqueceremos também o apelido
do pai, Leakey,
e onde quer que nos deitemos
estaremos sempre muito longe de casa.
Os últimos dois versos são uma herança do drama ontológico da grande poesia moderna portuguesa, entre Pessoa e Belo, mas a forma como Lage alarga o panorama da moderna perda do Ser, enquadrando-a na hominização, transfere a crise da metafísica para o quadro pós-humanista (e pós-moderno) do parque humano. A «terra firme» desaparece e, na sua vez, surge uma ecologia assegurada por uma série de hipertécnicas que fazem vacilar justamente o nosso nicho ecológico ou «sofá»: o ecrã de plasma, o modo pontilhista da imagem televisiva, dizem agora a nossa condição, não apenas ontológica mas também tecnologicamente evanescente (é difícil não pensar no filme que resume genialmente toda esta fenomenologia: Poltergeist, de Tobe Hooper).
Não é decerto um acaso, o facto de as secções III e IV («O Revólver Vazio») serem, com grande nitidez, as mais conseguidas do penúltimo livro de Lage, tanto quanto a II, «Carreira de Tiro», dedicada ao circunstancial portuense e cultural, é a menos conseguida (excepto no poema belíssimo, e técnica e cinematograficamente perfeito, que é «Jardins do Palácio de Cristal»). Lage é sempre mais convincente quando a asa de corvo da «morte, fiel amiga» («Da parte do mar») aflora as suas páginas – e, mesmo em Corvo, o proustianismo grácil de poemas como «As bicicletas do Vidago», «Termas de Pedras Salgadas», «Para acabar de vez com a Primavera», não consegue a reverberação dos seus melhores momentos. É o caso, em Revólver, dos magníficos poemas que são «Enquanto o mundo dormia» e «O que diz o vento». No primeiro, o verso inicial – «Acordo cedo para ver as magnólias» – reduz e recalca o humano à brevidade de um sono interrompido na noite do mundo, responsável pela sensação de uma espécie de avaria: «Como avaria na manhã, chegava / a notícia de que partiras / de madrugada». Esta redução do tropo à comparação, ou seja, algo que não consegue sequer o estatuto da metáfora, é uma admirável formulação retórica daquilo que, no outro poema referido, coalesce numa imagem matricial na poesia do autor, o vento: «Como se não passasses de vento», diz-se de quem, no verso inicial, «[Está] deitado na morgue». Vale a pena transcrever toda a segunda estrofe:
Como se não passasses de vento
agitando as flores nos muros,
inclinando as árvores,
fazendo voar a roupa estendida na varanda,
o saco de plástico na calçada:
uma voz que não diz nada
mas fala de tudo em toda a parte.
A morte não vai além, pois, de uma espécie de avaria num mundo cuja verdade profunda mora antes no vento, i.e., numa voz «que não diz nada / mas fala de tudo em toda a parte». O vento que é uma voz sem agente, aliteração do nada que fala em toda a parte, é talvez a (problemática) imagem central desta obra e exprime toda a sua economia retórica, na qual, como percebemos também em «Ode a uma urna portuguesa», as imagens triunfam sobre os tropos ou, no máximo, os autorizam a um funcionamento em baixa rotação, já que aos segundos não é pedido muito mais do que a confirmação desse nada que tudo habita. Apenas uma imagem, nada mais do que uma imagem: porque só ela, como a urna funerária de «Ode a uma urna portuguesa», ou essa outra versão da «urna» que é «o saco de plástico [esvoaçando] na calçada», nos certifica de que, por um breve instante sonâmbulo (ou mental), não houve o nada. A pergunta «Se deixarmos de pensar em ti como saberemos / se algum dia exististe (…) ?», é tudo menos retórica, já que de facto introduz a verdade do idealismo enquanto «fenomenologia da imagem»: se, post mortem, existimos apenas se e no momento em que pensam em nós, então o nosso resíduo fenomenal é da ordem da imagem mental que a «urna» (uma urna que vem de longe, na poesia europeia) aqui emblematiza e, digamos, conduz à sua verdade terminal – que é também a verdade profunda da imagem enquanto tradução da nossa existência em outrem. O desenvolvimento da última estrofe conduz aliás este idealismo à crueldade do seu solipsismo, pela revelação de um episódio que dá a ver, digamos, o esse est percipi:
Se deixarmos de pensar em ti como saberemos
se algum dia exististe, se tomaste café,
se compraste o jornal,
e se passeaste na praia
naquele dia em que eu estava lá
mas não me viste?
«Eu estava lá mas não me viste» quer dizer exactamente aquilo que Revólver, primeiro, e agora Corvo, desejam fazer: dar testemunho. Com uma decisiva qualificação: o «argumento ontológico» em favor da minha existência por meio de quem me vê sem que eu saiba disso, é, de modo indissociável, o argumento ontológico da minha rigorosa condenação à inexistência. O que o testemunho certifica é uma geral pré-existência da morte em mim, intermitência que sou de um testemunho que de mim faz o seu espectro. Mas não só em mim e, mais radicalmente, no próprio mundo, que vive por isso sob o signo do revólver: estampido e nada.
A questão está ainda no poema de Revólver em que Lage reencena não apenas a filogénese mas o não-sentido do mundo sem (ou antes de) nós: «Quem antes de nós para ver as estrelas, / ter a certeza e baptizar o real?» (p. 27). E, mais decisivamente, «Mas quem, faltando nós, poderia ver, / e dar um sentido a tanta morte?» (p. 28) Num certo sentido, sugere-nos o poema, o mundo existe sempre sem e antes ou depois de nós: e é esse o sentido exacto da «tanta morte» a que o humanismo tenta dar um sentido tão curto quanto vão. É aqui que a cena primitiva de Revólver, «descrita» no poema inicial do livro, liberta as ondas de choque da sua detonação. Convém transcrever esse poema belíssimo:
Revólver
Agradeço-te a lembrança, avô:
deixaste-me o revólver na mão,
está empenado o gatilho,
tem ferrugem o cão,
o serviço, com balas deste calibre,
não é garantido
(escusavas de o ter comprado ao cigano
que bebia contigo),
mas criança alguma poderá estragar
o pessimismo deste poema,
ou vir a tempo de evitar o seu desfecho
– rindo, por exemplo, no recreio da escola.
De certo curioso modo, Corvo tenta resgatar, por meio de uma «fiável espingarda / de calibre infância» («Cantilena da pedra») aquilo que Revólver declara não poder ser estragado por «criança alguma»: a detonação do vetusto revólver do avô, espécie de inscrição do vertiginoso rewind a que a ontogénese submete a filogénese com a mesma conclusão de sempre. Nenhuma anamnese infantil, mesmo essa do verso final, que nos devolve a cena primitiva de um Ruy Belo, pode alterar um desfecho escrito desde sempre e mal descrito, neste poema inicial de Revólver, como «pessimismo». O resto do livro, porém, apura-se na correcção desta errónea descrição inicial, tanto quanto o verso de Lage se apura numa contenção e cadência métrica e estrófica que consegue ser cuidadamente pensada e pesada sem ser nunca artiste. O último poema de Revólver, «Moral da história», é uma encenação, à primeira vista perversa, da infância – «como meninos / livres para brincar junto do poço / enquanto a mãe não está a olhar / ou fala ao telefone, / ou prepara o almoço.» – mas de facto para lá do bem e do mal, como quem promete (ou melhor: garante) o poço aos infantes que nunca deixamos de ser.
Não é tanto, parafraseando (não) livremente, «Eu estava lá mas não me viste, mãe!», e sim «Eu estava lá mas não me vejo, mãe!».
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