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Et in Arcadia ego: o corvo de Rui Lage (III)

Posted in Livros, Poesia, Recensões by Osvaldo Manuel Silvestre on Quarta-feira, 25-02-2009

Rui Lage expõe os problemas do seu projecto neste livro num poema magnífico, intitulado «Auto da Horta Destruída». O poeta, como a cultura portuguesa a que pertence, está dividido entre uma herança miserável – «Que triste, país, é a moral / da fábula campestre / que longos séculos nos deste / a ler» -, a sua recodificação tardocapitalista – «o teu luto / dá pelo nome de turismo rural» – e o destino litorâneo e surfista da nação, «obesa / prancha ocidental». O poema abre com um verso que é, nem de propósito, um espécime que diríamos revisionista: não custa imaginar que, sem as vírgulas, ou seja, reescrito assim – «Que triste país é a moral» -, este pudesse ser um verso de Joaquim Manuel Magalhães e da linha de revindicação ético-política que dele provém (ou de uma utilização expansiva do ético-moral que o faz mesmo coincidir com o político, numa linha muito «setentista» e foucaldiana), na poesia portuguesa contemporânea. A «versão» de Rui Lage recupera a possibilidade de um endereçamento positivo a uma entidade colectiva de que a geração, ou melhor, o «grupo» de JMM, desistira, quer por ter passado a um uso tropado de «país» como «moral» – maioritária, repressiva, etc. –, quer por, em função dessa desistência, ter optado por endereçamentos a entidades parcelares, numa tradução da hysteresis contemporânea das identidades.

Deste ponto de vista, os dois ascendentes maiores do projecto de Lage neste livro – A. M. Pires Cabral e Joaquim Manuel Magalhães – apresentam de facto duas vias incoincidentes de tematização do território transmontano na poesia portuguesa. O primeiro, no corpus que coincide com o momento inicial da sua obra, até à interrupção de 1982 – os cinco livros que vão de Algures a Nordeste (1974) até Os Cavalos da Noite (1982) – coloca a questão da «terra» de uma forma que inicialmente oscila entre ecos de Torga e do primeiro Carlos de Oliveira, bem patentes no título («Terra Mater») e nos versos que abrem o primeiro poema da sua obra: «Desço à terra. Invento a resistência / e o cântico diurno». Para logo em seguida acompanhar aquele processo, muito pregnante na sua geração, e exponenciado na obra breve mas por vezes fulgurante de Nuno Guimarães, de alegorização infindável da terra em Solo Arável, título do seu segundo livro, de 1976, obra na qual uma certa serialização de processos se nota, na regularidade estrófica e na indexação dos poemas por ordem numérica, num trabalho sobre possibilidades limitadas que faz lembrar já, por vezes, o segundo Carlos de Oliveira, e mais o de Entre Duas Memórias que o de Micropaisagem. Boleto em Constantim (1981) e Os Cavalos da Noite (1982) são já um recuo em relação a essas pré-determinações de ordem conceptual de que o autor se afastará cada vez mais, reaproximando-se, para o que nos interessa, das coordenadas iniciais, bem patentes no gosto da nomeação toponímica – «Eu podia falar de muitas terras. Escolho Malta», de «Malta Revisitada», no livro inicial; ou a Constantim referida no livro que a acolhe no título – ou no «Catálogo de Feios, Simples e Humildes» que subtitula esse primeiro livro (que Joaquim Manuel Magalhães, se não erro, aproximou de Lowell), responsável por poemas magníficos. Um exemplo: «Os ciganos», do livro inicial.

Tudo é bastante diferente em JMM, já que o «levantamento» desse território de origem que Pires Cabral produz nos seus livros iniciais, e que se subordina voluntariamente a um parti pris do mundo, e do mundo transmontano, é por sistema objecto, em JMM, de uma subjectivação feroz ao serviço de uma visão trágica do mundo e da poesia. Num poema de Vestígios, de 1977, hoje reunido em Consequência do Lugar, reencontramos o gosto pela nomeação toponímica – «A poeira, a lama cai sobre Godim. / O muro mais sombrio desce para a Régua» -, mas agora o «levantamento topográfico» soçobra ante a anamnese e esta recua até à reminiscência infantil – «vai mais à sombra, meu menino, / não te piques nesses espinheiros.» -, forma de a relação com o mundo ser mediada (bloqueada?) por uma memória não só pessoal como, paradoxo maior da lírica, intransmissível, qual seria a nossa memória infantil. Decisiva é porém aqui a nota introduzida pelo último verso – «Lembrar-me dessa desolação» – que arrasta este poema e esta poesia de rememoração transmontana para um horizonte trágico ou, se se preferir, para aquilo que poderíamos descrever como a «pastoral da desolação» que caracteriza este corpus na obra do autor (e não apenas, como é sabido).

Refiro-me sobretudo a poemas incluídos no livro de 1981, Segredos, Sebes, Aluviões, de forma mais concentrada na última secção. São poemas que integram, desde logo, uma certa configuração sociológica e geracional. Por exemplo, na inconfessada filiação da sua poesia numa ainda ressoante tradição popular: «Sentava-se com as mãos em nada, / com as histórias da avó, com os recados / em verso das festas da aldeia» (p. 59). Ou ainda, os versos de «[Tão altas as primeiras árvores»]: «A alma pisada de caminhos, / o meigo revólver do olhar / vêem-te partir. / Por essa cidade, perdido / na suavidade da chuva». Versos que nos dizem, na poesia portuguesa de início de 80, do fenómeno da migração campo-cidade que pouco depois António Variações, uma personagem emblemática deste processo, abordará numa canção memorável. Por fim, o elemento talvez decisivo na divergência da representação das origens entre JMM e Pires Cabral: a perturbação da cena da representação pelo corpo e, mais nitidamente, por um corpo dominado por uma regra provinciana, em sentido lato: «Era eu, um corpo amortecido / pela pequena-burguesia das origens / segada na regra das províncias» (p. 37). Sobre isto, nada como contrastar JMM com a secção «Corpo» de Solo Arável.

De resto, são poemas em que JMM comete ao léxico regional (mas também à música da aliteração: «Pedras e pinhas e o colmo do milho», p. 60) a tarefa de edificar um mundo memorial – «Xara, murtinheiro, gados manadios.» (p. 81) -, ainda mágico – «Em frente o rio até ao salgueiral. / Animais sobrevivem ao naufrágio: / corças, unicórnios, o trigueirão.» (p. 59) – e arcaico: «A arcaica utensilagem caseira» (p. 64). O problema não é tanto o facto de se escrever na perspectiva da ruína – «Tudo em ruínas, / a infância, o país perdido» (p. 69) -, cuja dura consciência se joga contra o vício da nostalgia daquilo que talvez a não mereça: «Eram lugares miseráveis. Mas ouvia-se, / tão perto, um riacho a correr. / Tábuas que nos pregam o coração» (p. 82). O problema, digamos, se assim o podemos nomear, reside antes no facto de praticamente nenhuma recuperação da infância transmontana se processar fora de um quadro em que um «tu» razoavelmente impreciso (tanto um desdobramento retórico do sujeito quanto um tu trazido, quase sempre «por amor», à boca do poema) faz subordinar às «razões do coração» (para usar a palavra com que o livro fecha e a que JMM comete quase sempre funções poético-críticas de teor aliás regressivo ou, se se preferir, anti-moderno) essas cenas que, mais do que «cenas de representação», devêm «cenas afectivas» em que no tu endereçado se delega a capacidade para resgatar ou não aquilo que do passado é afectivamente resgatável. É o que ocorre no poema mais «perfeito» do livro, «Era de inverno, em Vila Real. A neve», em que a cena amorosa «explica» e legitima esta estratégia retórica que contudo regressa em grande número de poemas, em versos estratégicos, e quase sempre em posição final ou para-final, como «Tanta coisa de ti que nada sei» (p. 15), «estas palavras, estes sons perdidos / onde não me vais reconhecer.» (p. 60), ou «Ainda sabes o nome do galgo malhado?» (p. 77).

Tudo é bastante diferente em Rui Lage e no poema que me suscita estas considerações, «Auto da horta destruída». Enquanto em JMM todos os poemas de inspiração transmontana são colocados sob a égide de uma impossibilidade do sentido, como no «soneto» «Podei as sardinheiras de seis anos», em que a «meda dos ramos no telheiro» se apresenta como um enigma («[enredado] nos torcidos nós») que, no final do poema, deriva numa imagem trágica, de motivação bíblica: «Línguas de ar sanguinolento / correm nos sulcos calcinados. / Nada. Nada quer dizer.»; e enquanto, no mesmo autor, o país (e a pátria) são subsumidos numa questão ético-moral que é, indissociavelmente, a questão do corpo e do (direito ao) prazer: «A mistura de sorte e de prazer / a que chamamos o bem.» (p. 31); em Rui Lage, a recuperação de um endereçamento a uma entidade colectiva – «país» – arrasta também o direito a uma interrogação em que o ético-moral não subsume o político ou, se se preferir, em que o «corpo político» não deriva nesse quiasmo, típico das antes referidas narrativas de emancipação, que destina o todo da questão a uma «política do corpo» que, em sede inteiramente histórica, promete a recuperação da perspectiva alargada do «corpo político» apenas se e quando uma política realmente emancipadora tiver assegurado a não-repressão de cada corpo ou máquina desejante.

O que deriva daqui é toda a gama da diferença histórica e poética de Corvo, em relação a esses ascendentes. Por exemplo, quando o poema de Lage invoca, também ele, no léxico, a vetustez do território cultural em causa – «frautas e penhas, / Arroios e fráguas»; «Quem te virá demandar / cheiros pera a panela?» -, não se trata agora de produzir diferença (e opacidade) a partir de um irredutível biográfico, mais ou menos infanto-juvenil, mas sim de recorrer a um património depositado em dicionários e cânone (o Gil Vicente do «Auto do Velho da Horta», citado em itálico, como explicitamente se declara nas notas finais que Lage, bom aprendiz de Eliot & Co. Modernista, aprecia incluir no final dos seus livros, por manifesta gentileza de quem não faz de cartas na manga um trunfo poético; um Gil Vicente d’après Eliot, dir-se-ia). O biográfico é aqui intermediado por uma língua comunitária (léxico & literatura) que desbasta o seu irredutível em favor de «país» e «moral (arcaica) de fábula campestre»: digamos que o biográfico é em Lage uma forma de «serviço», ou de «se colocar ao serviço», o que parece exigir uma convocação da memória cultural, e especificamente poético-literária, com toda a espessura da sua historicidade. Uma geração depois do livro de JMM a que me refiro, Corvo parece recuar propedeuticamente ao arcaico da fábula campestre para poder ainda persistir na interrogação do corpo político, fazendo-o numa língua tão histórica quanto, por isso mesmo, ainda alargadamente comunitária.

O recurso a um léxico muito marcadamente local por JMM em Segredos, Sebes, Aluviões, assinalava, em 1981, não apenas a morte de um mundo, mas também a dificuldade, tipicamente moderna, de integrar esse território longínquo na imaginação comunitária da nação (ou, o que dá no mesmo, na didáctica da língua: não por acaso, um dos mais belos poemas desse livro de JMM, «Sentava-me num banco corrido», recupera a cena primitiva da instrução primária). Esta, como sabemos, sonha-se, desde o século XIX, como um lugar de desterritorialização de particularismos. Do particularismo idiomático-cultural à particularização do corpo político num corpo que se representa como questão política, porque sexual, vai um passo, que JMM dá com toda a naturalidade, colocando-se do lado de fora do país e da sua moral, e, sobretudo, reduzindo o país à sua moral («bronca»). A obra, poética ou crítica, do autor, tanto a sequente como já a anterior, evidencia todas as aporias deste devir, em que uma «posição trágica» muitas vezes se não distingue, de facto, de uma política reaccionária – porque, à sua maneira, ainda eliotiana (cf. o poema «Rooms by the Sea», de Uma Exposição, hoje em Consequência do Lugar, p. 215).

No poema de Rui Lage, o arcaico parece ser a forma retórica de recolocar hipóteses sobre o país. Desde logo, a hipótese do seu «renascimento» enquanto, também e ainda, «ser rural», passada a tormenta da modernização: «Acaso, / velho, te acharás menino / a caminho da horta, depois / de abertas as comportas?» Hipótese pouco provável, já que o país se encontra viúvo – «Ficas viúvo, país, até que falem / de novo os animais» -, ela sofre a contrastação anti-épica do final, em que um antropomorfismo pela metade («sobra /a metade mais salgada / e pífia de Portugal») se confronta comicamente com a memória das camonianas naus: «mas perde o pé, e às arrecuas /se firma no cómico areal, / veleiro roto, crustáceo, / heróico baixio, obesa / prancha ocidental». O arcaico, i.e., a moral da fábula, denuncia no poema de Lage a vontade de não desistir de uma entidade colectiva, seja ela território, cultura ou moral. Trata-se agora de reintegrar no corpo político essa parcela que a europeização obliterou, amputando-o no mesmo passo, ainda que de modo inconsciente (é a questão do Portugal «pela metade», a mais salgada e pífia, que contudo se auto-representa como emancipada e feliz, porque moderna).

Se JMM sugeria que só faz sentido colocar a questão do «corpo político» quando nenhum corpo particular se possa sentir ou dizer espezinhado pela moral dominante, Lage vem sugerir, na medida em que desloca drasticamente a perspectiva, que o «corpo político» existe para lá das suas determinações particulares, sendo estas, em rigor, na sua agenda reivindicativa, função da pré-existência daquele – que aliás corroboram sempre que lhe endereçam acusações, queixas ou reivindicações. Desse ponto de vista, o abandono do país, ou de um «país» chamado Trás-os-Montes, em nome de uma moral emancipada e não-repressiva, coincide histórica e sociologicamente com o abandono do campo, tanto mais que é na cidade, ou em topografias muito localizadas dela, que certas identidades podem historicamente florescer. Seja como for, tudo parece conspirar no sentido de um abandono, historicamente definitivo, do campo, em favor da cidade: reivindicação identitária, sociologia das migrações, etc.

E é nisso que um livro como Corvo revela uma assinalável coragem, já que o que propõe, afinal, é re-interrogar «A retórica da terra na poesia contemporânea», título «programático» de um estranho poema que termina pela palavra «sepultura» – o que o poderia aproximar da visão trágica de JMM – e que, para o que de momento importa, aproxima de facto Corvo do outro paradigma contemporâneo da poesia sobre a região transmontana: A. M. Pires Cabral. Porque a insistência – ética, estética e política – numa «retórica da terra» é uma marca da poesia (e da ficção) de Pires Cabral, desde os inícios. E porque é aqui que percebemos como a reivindicação de uma «retórica da terra» é, nos dois autores, indissociável de uma convocação do «corpo político», para lá de todas as identidades particulares e mais ou menos codificáveis pela doxa como «marginais». Nada melhor, para o percebermos, do que os últimos quatro versos de «Os ciganos», um dos grandes poemas de Pires Cabral nesse seu livro inicial: «Dizem isso dos ciganos. Eu não sei. / Vejo-os vir dos lados de Grijó / e estão todos de frente para mim / e parecem-me gente – nada mais».  Também em Corvo os transmontanos estão todos de frente para nós – e não apenas parecem gente, como se parecem terrivelmente connosco.

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