Et in Arcadia ego: o corvo de Rui Lage (II)
Sobre os caminhos tortuosos da fidelidade, muito haveria porém a dizer a propósito deste livro. Uma nota apenas, por agora: o livro vem acompanhado de uma «Playlist» – «39 temas para 39 poemas» -, que é difícil não contrastar com o poema «Música Portuguesa (Best Portuguese Act)» do anterior Revólver (2006), ominosamente dedicado, entre outros, a João Aguardela. Nele podemos ler, na estrofe central:
A rádio toca lá dentro música barata,
ninguém o desliga, porém,
e deixamos poluir os ouvidos
com anglo-saxónicos acentos
saídos de parolas, provincianas,
extasiadas gargantas portuguesas
(tigres lendários com que Blake
nem sonhava).
A Playlist de Corvo, porém, oferece apenas 7 temas de música portuguesa (pop, tradicional, clássica e contemporânea) entre 39, distribuídos pela pop, que domina, e a clássica e contemporânea, sendo que quem de facto domina é a indústria anglo-americana. Ou seja, este corvo que é, na origem, Raven, não pressupõe a fidelidade idiomático-musical que faria coincidir expressivamente território, sujeito colectivo, língua-materna e neo-realismo mimético. Pelo contrário, na medida em que propõe para banda sonora um constructo que oscila entre o internacional e o cosmopolita, desloca a questão da fidelidade, de um só golpe, para um outro plano que não o de uma «estética orgânica», tal como se tende sempre a pensar as questões da representação, a partir do momento em que elas são de algum modo territorializadas – desloca-o, digamos, para aquela «conformidade rítmica com o original» (e só isso, que aliás é muito) que Pessoa declarava como critério da sua tradução de The Raven, de Poe.
A própria figura da Playlist só na aparência faz recordar «A rádio [que] toca lá dentro música barata», pois de facto basta a sua contemplação para percebermos que se trata, porventura contra o autor, não tanto de «música de programa», mas antes de um menu, em acepção gastronómica ou – sobretudo – informática, de entre o qual o leitor selecciona apenas aquilo que mais lhe apraz, podendo mesmo (suprema blasfémia de «utilizador» de um programa user friendly) redispor as correspondências poema-tema musical sem cuidar de saber da autoridade do criador do menu, autoridade que em rigor lhe reconhecemos no domínio do poema mas não forçosamente, ou não identicamente, no da música: de facto, «Rui Lage» é assinatura de um autor de versos e não de canções.
Note-se, aliás, que assim como num livro de poemas o leitor, tantas vezes contra o desígnio autoral, elege aqueles que lhe interessam, esquecendo quase sempre a figura do todo a que o livro aspira (quando aspira), também aqui as preocupações de adequação da música ao texto são corroídas pela duvidosa capacidade referencial da música, que aliás a música com texto só corrobora, na medida em que convenciona aí essa referencialidade hipotética. Ou seja, a Playlist, que se pretenderia um dispositivo de reforço da estratégia mimética da obra – por exemplo, «Um Falcão no Punho», de Amílcar Vasques Dias, como banda sonora algo óbvia do poema «Ave Preta» -, vem antes intensificar o efeito de deslocação, ou evanescência, que, em termos de uma «teoria da correspondência», a obra produz em relação ao seu objecto. Porque, desde logo, não se vê como um tema de Tom Waits, ou dos Depeche Mode, ou dos Cocteau Twins, etc., pode mimetizar Trás-os-Montes, a não ser que admitamos à partida (ou durante a leitura deste livro), que o pode de facto fazer dentro daquilo que, na parte I do poema «Plano nacional de prevenção de fogos florestais», é formulado como a incoincidência entre mundo (míope) e representação (telescopada), ou entre coisa e ideologia – «o meu nome é terra / o teu é país» – ou ainda, o que é todo um programa mimético, que o estado civil de quem fala (e não é fácil saber que sujeito é este) é «queimado». Como o gato escaldado que da água tem medo, também aqui uma certa sinopse de incoincidências entre «terra» e «país», ou, ao longo do livro, entre topónimos e reminiscências, parece desembocar necessariamente neste «estado civil: / queimado» que integra o BI do interior transmontano mas, mais além disso, o BI deste poeta hiper-consciente da forma como a linguagem queima o mundo. E o poeta, ou pelo menos este poeta, seria assim o pirómano que se vai alimentando do espectáculo das cinzas do (seu) passado.
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