Os Livros Ardem Mal

Primo Levi, um «best seller clássico»

Posted in Comentários by Osvaldo Manuel Silvestre on Sábado, 14-02-2009

Saiu, suponho que muito recentemente, uma nova edição de Se isto é um homem, o inclassificável livro de Primo Levi sobre os campos de extermínio. Mais exactamente, sobre Auschwitz. Nesta nova edição na editora de sempre, a Teorema, o nome do autor aparece em tamanho garrafal e em relevo, impresso a verniz e, não fôssemos nós não alcançar o dramatismo da obra (e deste nome de autor), a vermelho. Na capa, uma foto de um campo que em nenhum lado do livro é referenciada. Ao cimo, antes mesmo do nome do autor, uma frase promocional: «Uma das mais lúcidas e impressionantes visões dos campos de extermínio nazis». Ainda assim, a coisa parece não ter sido bastante, pois abaixo do título, e entre dois filetes a preto, surge a frase que realmente importa: «Best Seller clássico da literatura mundial».

Eu, que até me considero um «realista» em matéria de mercado, o que quer dizer que tenho estômago para muito, não consigo deixar de olhar para esta capa sem sentir que há aqui algo da ordem da profanação. E estou a conter-me. E, por favor, não me venham endoutrinar sobre o carácter não-sagrado dos livros, puros bens no mercado… Porque, como se aprende no mercado, há bens e bens, assim como há livros e livros. Coisa que obviamente todos os editores sabem muito bem, mesmo quando pretendem o contrário. E este é um desses livros, tal como Auschwitz é um dos nomes impronunciáveis, porque pestíferos, do século XX. De facto, não há «generosidade de consumidor» que me faça aceitar a espúria junção de «best seller» e «clássico» no mesmo sintagma, para este livro; junção que, diga-se, outros editores avisados fariam bem em reivindicar. Por exemplo, a Bertrand poderia com toda a justiça anunciar a 79ª edição da obra de Dan Brown, O Código Da Vinci, com idêntico rótulo: «Best Seller clássico…», tanto mais que a noção de clássico sofre hoje também do efeito de aceleração contemporâneo, pelo que 4 ou 5 anos de vestustez equivalem hoje a 40 ou 50 há meio século. 

Menos ainda consigo aceitar esta necessidade de pôr 2 rótulos 2 na capa de um livro como este, um deles simplesmente chocante (é caso para nos pormos a imaginar o que faria esta editora com a capa de Os Lusíadas…). Porque, e passo a discriminar razões, (i) Se isto é um homem é um livro cuja inscrição na «Literatura» é o seu problema maior, desde logo porque esta é uma obra que afecta radicalmente a própria ideia de literatura – qualquer ideia de literatura – ou tão-só de escrita. Levi falou infindavelmente disto, à sua maneira: que ordem discursiva pode acolher aquilo para que não há, não pode haver, discurso? Estará a literatura alguma vez à altura da radicalidade de tal experiência? Pode ela ser mais do que uma «barriga de aluguer» para o que aqui se escreve? E, a ser isto «literatura», não haveria imediatamente bibliotecas inteiras que deveriam deixar de o ser? Porque (ii) esta dificuldade faz, também por isso, do seu estatuto de «clássico» um outro problema, já que colocá-lo assim, com esta assepsia de rotulagem, na estante dos «clássicos», equivale aqui a colocar também muito bem arrumados na estante o nazismo e o extermínio judaico, como «coisas do passado» – e, já agora, quando em livro, como «best sellers clássicos» com direito a idêntico rótulo declarativo. Que tal: «Mein Kampf, best seller clássico da política mundial»? Porque (iii) juntar a tudo isto a noção de «best seller», que não é uma fórmula ideologicamente neutra, é o pior dos insultos a Levi, não só porque a história editorial do livro é tortuosa, mas sobretudo porque cada livro seu foi para Levi uma experiência do abismo, da qual aliás, como é sabido, não recuperou. E, finalmente, porque (iv) ao rotulá-lo dessa forma, se está a colocá-lo implicitamente a par de Paulo Coelho, que, esse sim, é literalmente um «Best seller clássico da literatura mundial», se admitirmos, como acho que podemos, que a «literatura mundial» por nenhuns autores está hoje tão bem representada como pelo batalhão dos da «literatura de aeroporto».

Ora, há uma certa diferença entre editar Primo Levi e Paulo Coelho. E nada melhor, para perceber a evolução cínica do capitalismo livreiro nas últimas décadas, do que assistir a fenómenos como o desta recodificação de um fundo de catálogo que não corresponde já hoje à editora que o produziu. É certo que não está só – mas isso não é razão para a(s) acompanharmos. Muito pelo contrário.

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