Et in Arcadia ego: o corvo de Rui Lage (I)
Uma certa visão da nossa cena poética como estruturada em posições muito marcadas e mais ou menos antagónicas, com papéis distribuídos por actores muito conscientes deles, tem como consequência que um livro tão importante para a poesia portuguesa actual como este Corvo, de Rui Lage, que não tem um lugar nítido nessa lógica distribucional, tenha sido objecto, até ao momento, e tanto quanto me é dado perceber, de um silêncio unânime. Ao seu quarto título, Rui Lage escreveu um livro que fazia falta à poesia, à literatura e ao país que neste momento somos, pois o seu objecto e propósito é, digamos, «escrever um livro sobre Trás-os-Montes» ou, se se preferir, «escrever Trás-os-Montes» em verso, como se declara na epígrafe inicial: «Para os transmontanos que sobreviveram ao deserto e para aqueles que não lhe puderam resistir».
Sobrevivência e resistência num interior desertificado: a forma muito auto-consciente, e muito saturada de boa consciência ideológica, com que a poesia hoje (e, em rigor, desde os alvores da modernidade) se representa a si mesma, é aqui transferida para um objecto que a poesia deveria não só evocar mas, mais ambiciosamente, ressuscitar. A estranheza do propósito passa seguramente por esta territorialização não apenas do objecto como do sujeito que lhe dá sentido: essa entidade à qual o livro é endereçado e que se torna co-extensiva ao «corvo» que a recobre (e que ela acolhe). Não estamos já habituados a estes gestos que inscrevem a poesia numa lógica representacional, em acepção mimética e política, e que a poética contemporânea tende a segregar como «pré-modernos», quer porque o seu bom leitor visado tende ou ao desencantado universal baudelairiano («hypocrite lecteur, etc.») ou ao produzido por particularização «identitária» pós-moderna (o «gay», o marginal, etc.), quer porque todos os poetas são hoje hiper-conscientes do cunho não-mimético da linguagem poética (todos sabem, digamos, que a poesia não pode ser sobre Trás-os-Montes).
Logo, o livro de Rui Lage seria um forte candidato a uma imputação genérica de «anacronismo», não fora o caso de se colocar, desde o título, sob a égide de um grande Moderno – deslocando-se, por isso, muito sabiamente para o patamar de uma ironia transcendental, a partir do qual contempla, com o corvo pairante, todo o cortejo de Diktat’s (ou «nevermore’s») da poesia contemporânea, que se permite infringir a partir dessa posição a um tempo moral e extra-moral. Porque o propósito do poeta começa por ser intensamente ético-moral, como percebemos pela dedicatória, traduzível talvez num termo (e valor) como «fidelidade». Não em acepção baixamente mimética, ou «fotográfica», mas antes no imperativo de «dar voz» a quem desapareceu da cena da representação portuguesa (falo da poesia e da república). Há uns anos, durante uns terríveis incêndios em Agosto, pudemos constatar que os média nos devolviam, não sem estupor, o retrato do Portugal interior que o outro Portugal, o «europeu», conseguira com tanto sucesso apagar da cena da representação: velhos pobres, agarrados a quatro paredes, uma horta e umas galinhas, que os bombeiros salvavam como quem resgata, momentaneamente, o «lixo da História». É deste lixo (dispensemos a correcção política das aspas) que se faz este Corvo, e é desta «ética de bombeiro» que se alimenta prima facie o gesto moral do livro.
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