Os Livros Ardem Mal

«O meu fim é o meu começo»

Posted in Notas, Notícias by Osvaldo Manuel Silvestre on Sábado, 15-11-2008

coliveira

«O meu fim é o meu começo»: de Machaut a Eliot ou a Carlos de Oliveira, o fim parece ser indissociável da questão do «depois do fim», ou melhor, de um depois do fim tematizado como uma necessária figura do recomeço. Seria tentador ver aqui a funcionar a perfeição de um anel de Moebius que nos lançasse em permanência na outra face de um tempo sem fim, mas essa teratologia não está, felizmente, ao nosso alcance. E no fundo, talvez a literatura exista apenas para nos dizer isso: que depois do fim só a palavra (escrita).

A melhor maneira de entrar nesta questão parece-me ser um episódio biográfico que em tempos me foi contado por Ângela de Oliveira, figura da obra e Grande Oficiante da escrita/reescrita de Carlos de Oliveira. Pouco tempo após a edição de Finisterra. Paisagem e Povoamento, Carlos de Oliveira foi visitado por Eduardo Lourenço, no que seria o último episódio de um encontro cujo episódio inicial terá ocorrido nesta cidade de Coimbra e nesta Faculdade de Letras, três décadas e meia antes. A certa altura da conversa, Eduardo Lourenço terá perguntado a Carlos de Oliveira: «E depois de Finisterra, Carlos?» Ao que o autor terá respondido: «Depois de Finisterra, nada. Acabou.» Depois de Finisterra, ou melhor, depois do par Finisterra/Pastoral, estaríamos nesse momento quando nada vem já depois do fim. E contudo, a própria biografia nos dá uma versão outra desse momento depois do fim. Porque sabemos que de facto Finisterra não foi o fim, assim como depois de Pastoral houve ainda 3 ou 4 poemas extraordinários enquanto justamente versões do fim. O fim, em rigor o depois do fim que Finisterra teria sido, foi um recomeço, isto é, a reescrita de Alcateia, obra expurgada pelo próprio autor desde cedo e a que, surpreendentemente, regressa nesse fim já póstumo em relação a Finisterra. Sabemos, também por Ângela, dos pormenores dessa última anti-epopeia: a reescrita, as versões, a obsessão mortificante contra a contaminação da prosa pelo decassílabo, por exemplo. Mas sabemos sobretudo do fim dessa história semipóstuma: poucos dias antes de morrer, o escritor pede/ordena a Ângela que ponha todo o trabalho num saco e o vá deitar ao lixo. Restam 2 ou 3 páginas desse episódio final.

Um episódio de exemplum, se me permitem. Porque mostra que qualquer declaração de fim é diferida pela escrita para um depois do fim indelimitável; porque mostra que a escrita é fim (é o que inscreve o nosso fim), ausência necessária de fim e recomeço sem fim; porque mostra ainda que a reescrita não é uma reconquista mas antes a forma narcísica, ou possível, de inscrição da perda (numa outra formulação, mais moderna, diríamos que a reescrita dá a ver o desgaste dos materiais e que, nesse sentido, é reciclagem, ou seja, consumo e perda de energia e mundo, emagrecimento). Ou ainda, e resumindo: enquanto há vida, enquanto há sopro, vivemos depois do fim. O que vem após esse depois do fim já não nos diz respeito. Já não faz mundo com a força de quem luta depois do fim por um sentido – esse sentido que mora na margem demasiado estreita entre a «peregrinação« e a «finis terrae», para me referir à extraordinária cena do capítulo VIII em que o filme da História é projectado no «fundo rugoso» da parede da casa.

É nesse fundo rugoso do tempo que lemos Finisterra. Paisagem e Povoamento. É por isso, por o ecrã ser de má qualidade, que lemos mal; que estamos sempre a recomeçar a ler, ou melhor, a reescrever a nossa leitura. Às vezes, uma rajada de vento percorre o jardim abandonado da casa de Finisterra e percebemos a inútil paixão da nossa existência ante a precedência do osso de baleia, essa versão da natureza enquanto epitáfio para nós, que ornamenta o jardim. Outras vezes, damos graças por não conseguir penetrar a névoa e o enigma que rodeiam a casa e a isolam do mundo. Mas como seres que lêem, isto é, que não conseguem parar de ler, pois é essa a nossa forma de viver depois do fim, sabemos que todos os livros são Finisterra. Paisagem e Povoamento, assim como todos os títulos cabem neste não-título.

Resta-me agradecer. Aos colegas que estão aqui hoje para connosco lerem em voz alta Finisterra. Paisagem e Povoamento, todos eles já parte integrante e relevante da Obra de Carlos de Oliveira; ao CLP, na pessoa do director da linha de investigação «Literatura sem Fronteiras» em que este colóquio tem lugar, António Apolinário Lourenço; e ainda na do Director do CLP, José Augusto Cardoso Bernardes e, nele, a toda a direcção; ao ILLP, na pessoa do seu director, João Nuno Corrêa Cardoso; à minha colega e amiga Maria Helena Santana, que aceitou presidir a esta sessão; a todos os que aqui estão hoje; por fim, e antes e muito depois de todos os fins, a uma pessoa ausente mas sempre presente em todos os que, nalgum ponto do seu interesse pela obra de Carlos de Oliveira, se cruzaram um dia com ela: Ângela de Oliveira, Gelnaa, Anne Gall, personagem maior de um edifício construído a quatro mãos.

[Texto lido na abertura do colóquio «Depois do Fim: nos 30 anos da edição de Finisterra. Paisagem e Povoamento, de Carlos de Oliveira»]

Osvaldo Manuel Silvestre

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